Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Estudo na Unicamp indica janela psicoterapêutica aberta pelo LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/#respond Mon, 01 Nov 2021 21:50:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/LuciaKochInhotim-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=727 Nova pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas pôs mais uma pedra no edifício em reconstrução da ciência psicodélica: se o LSD for usado como adjuvante de psicoterapia, o momento propício para a chamada terapia psicolítica provavelmente recairia quatro horas após a ingestão da substância.

“Baixa Dose de LSD e Corrente do Pensamento: Descontinuidade Aumentada da Mente, Pensamento Profundo e Fluxo Abstrato”, diz o título do segundo artigo publicado pelo grupo de Luís Fernando Tófoli. O trabalho saiu no periódico Psychopharmacology, tendo como primeira autora a alemã Isabel Wießner, orientanda de doutorado de Tófoli, e colaboradores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

O primeiro estudo dos autores havia sido publicado em julho, como noticiou o blog. Ambos os trabalhos tomam por base observações com 24 voluntários saudáveis que participaram de duas sessões experimentais.

Num dos encontros, a pessoa tomava 50 microgramas de LSD, e, no outro, um placebo, mas sem saber em qual deles tomava o quê. Wießner e o psiquiatra Marcelo Falchi, presentes na sala com os participantes por cerca de dez horas, tampouco sabiam.

Durante esse tempo, os voluntários respondiam a perguntas verbais, marcavam em escalas a intensidade das alterações mentais experimentadas e realizam testes num computador. Neste segundo artigo, a equipe deu destaque para alterações no fluxo de pensamento ao longo do tempo, algo ainda pouco conhecido no efeito lisérgico.

É bom mencionar que o LSD só foi proibido para usos não científicos na década de 1970. Antes disso, distribuído pelo laboratório suíço Sandoz com a marca Delysid, teve largo emprego em consultórios e estudos para tratar transtornos mentais e dependência de álcool, mas não com as metodologias e os controles rigorosos hoje usuais em pesquisa biomédica. Com a proibição e a demonização, o psicodélico quase desapareceu da pesquisa científica.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

No desenho da investigação liderada pela Unicamp, o controle residiu na comparação entre os efeitos medidos nos dias de ácido com os do dia de placebo. É o método conhecido como “cross-over”.

Num dos testes, o voluntário tinha de encadear a cada duas horas uma lista de palavras que lhe viessem à cabeça sob estímulo de um vocábulo-semente de três tipos (animais, objetos e palavras abstratas). Posteriormente, o time usou medidas de distância semântica para caracterizar o fluxo de pensamento –por exemplo, a separação entre “gado” e “vaca” é menor do que entre “gado” e “jornada”.

Para mensurar a divagação mental (“mind wandering”), empregou-se o Questionário Amsterdã de Estado de Repouso (ARSQ, na sigla em inglês). São 55 questões, por exemplo sobre descontinuidade da mente, planejamento, sonolência, conforto, percepção do corpo, preocupação com saúde e pensamento visual ou verbal que o participante tinha de responder no computador logo após passar cinco minutos de olhos fechados. Cada item solicitava que a pessoa indicasse seu grau de concordância/discordância numa escala de cinco pontos.

Resumindo muito a profusão de dados, o grupo constatou que o LSD, comparado com placebo,     acentuou aspectos caóticos, significativos e sensoriais do pensamento, como seria de esperar. Quanto ao fluxo da mente, curiosamente, as distâncias semânticas foram maiores quando as sementes eram palavras abstratas, mais que animais ou objetos.

Observaram-se também diferenças temporais. No pico inicial da experiência lisérgica, mesmo com a dose baixa de 50 mcg (1/5 a 1/4 de uma dose psicodélica plena), o caos dificultava até a comunicação e aumentava a arbitrariedade aparente das respostas aos testes.

 

Por volta das quatro horas de experimento, porém, a entropia mental causada pela LSD arrefecia e passava do polo caótico para um estado caracterizado por um fluxo mais livre nas associações, criativas e flexíveis. O oposto do fluxo disfuncional de pensamento caraterizado pela rigidez e fixação de certos transtornos mentais, como a ruminação presente em casos graves de depressão.

Eis o que os autores, tentativamente, apontaram como possível janela terapêutica. “A principal conclusão seria que vários elementos dos resultados (aumento de significado, fluxo abstrato) indicam que uma tal janela após quatro horas parece juntar vários efeitos interessantes com potencial terapêutico nessa dose relativamente baixa”, diz Wießner.

“Porém, nosso estudo avaliou participantes saudáveis, então outros estudos com pacientes serão necessários para dizer algo mais concreto em termos de benefícios terapêuticos durante essa janela.”

A pesquisadora se diz surpresa com o fluxo mais livre de pensamento estimulado por palavras abstratas. “Uma potencial interpretação é que palavras abstratas estimulam um pensamento amplo, em termos de distâncias semânticas, mais viagens mentais e na linguagem”, especula Wießner.

Uma interpretação alternativa seria que termos abstratos são mais difíceis de processar no cérebro, se comparados com animais e objetos, que evocariam processos mais automáticos. “Essa segunda interpretação iria na linha da redução de controle frontal: pode ser que o cérebro não consiga controlar suficientemente os processos cognitivos, e, assim, quando chegam estímulos mais difíceis, essa perda de controle se reflete num ‘caos’ de distâncias semânticas aumentadas na cadeia de palavras.”

A continuidade natural do estudo, propõe a pesquisadora alemã, seria investigar o potencial do LSD para quebrar esses padrões de fluxos de pensamento disfuncionais em pacientes ou demonstrar e ensinar outros fluxos possíveis, por exemplo mais orientados a coisas que ganharam um significado especial durante o estado lisérgico.

Isso, evidentemente, se um dia o LSD –que não causa overdose nem dependência– for um dia retirado da lista de substâncias proibidas em que foi parar como bode expiatório da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1970. Até lá, a janela terapêutica que ele e outros psicodélicos banidos podem abrir continuará fechada.

Tófoli, o autor sênior da pesquisa, chama a atenção para o fato de “o LSD ser proposto hoje em dia menos como molécula terapêutica e mais como ferramenta para caracterizar o efeito subjetivo”. Isso porque com outros psicodélicos, como a psilocibina (cogumelos) e a dimetiltriptamina (DMT), o efeito tem duração mais curta.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

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Brasileiros reforçam pesquisa com o psicodélico ibogaína para dependência https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/#respond Mon, 23 Aug 2021 22:03:32 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=579 “Chega uma hora que a gente cansa de usar, muitas vezes ficava com o cachimbo [de crack] na mão, chorando e pensando: ‘Não tô querendo, mas tô usando’. Nossa, é uma tristeza, um sofrimento mesmo.”

Os depoimentos de dependentes de crack, como este de Luan (nome fictício), são sempre doloridos e penosos de ouvir. Não foi recolhido pelo blog, mas pelo psicólogo Bruno Ramos Gomes, para a tese de doutorado defendida em maio na Unicamp (houve breve referência ao trabalho aqui no blog, em post anterior, “Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida”.

Título da tese: “O Uso da Ibogaína no Manejo da Dependência de Drogas no Brasil: Um Estudo Qualitativo de Seguimento por Um Ano” (ainda não está disponível em biblioteca digital, mas o link será incluído aqui assim que aparecer). Eis uma contribuição importante para saber em que contextos o Brasil se tornou o país com talvez a maior experiência na aplicação do composto de origem africana para tratar abuso de substâncias.

Gomes faz parte de uma das equipes que preparam testes clínicos controlados com ibogaína em terapia para dependentes brasileiros, com epicentro no Instituto de Psiquiatria da USP em São Paulo e capitaneada pelo psiquiatra André Brooking Negrão. O outro grupo tem Rafael Guimarães dos Santos e Jaime Hallak à frente, na USP de Ribeirão Preto.

Santos e Hallak acabam de lançar no periódico Psychopharmacology, com colaboradores da Espanha, uma revisão internacional de 18 estudos publicados entre 2015 e 2020 sobre efeitos adversos da ibogaína. O levantamento agrega um caso novo de morte aos 33 arrolados em revisões anteriores (há outro óbito ocorrido no Brasil, não publicado).

O estudo dá detalhes dos problemas cardíacos, convulsões e sintomas menores (zumbido, vômito, diarreia) que podem acompanhar a viagem onírica com extratos da planta Tabernanthe iboga. Arritmias ocorrem em casos raros, mas são controláveis se o paciente estiver monitorado por pessoal médico. O artigo conclui pela necessidade de testes clínicos de fase 1 para refinar o conhecimento sobre uso seguro da ibogaína.

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Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Esse é um dos problemas da popularização de terapias para dependentes com iboga no Brasil, como relata Gomes: nem todo atendimento se dá em condições favoráveis.

É provável que boa parte deles tenha sido tratado com segurança pelo médico Bruno Rasmussen Chaves, com internação por 24 horas e monitoramento cardíaco contínuo. Esse foi o primeiro dos contextos documentados na tese de doutorado da Unicamp orientada pelo psiquiatra Luís Fernando Tófoli.

Chaves já tratou mais de 2.000 pessoas em um quarto de século de experiência com terapia psicodélica em Santa Cruz do Rio Pardo e depois Ourinhos, no interior paulista. Ele segue à risca normas da Anvisa para importar a droga com alto grau de pureza, processo burocrático específico para cada paciente. Nunca teve um caso fatal.

A segunda situação de pacientes entrevistados por Gomes na tese é parecida, mas com diferenças importantes. O autor não nomeia a instituição, mas meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora) indica que se trata do Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), de Paulínia, outra cidade paulista, que alega o dobro de atendimentos de Chaves e registrou em 2016 uma morte horas após aplicação de ibogaína.

Menos controlado se mostra o uso do composto nos outros contextos exemplificados na tese, indivíduos e grupos que o utilizam como recurso contra dependência química numa zona cinzenta entre terapias e cerimônias religiosas com a ayahuasca. O perigo aumenta, e não se descarta que outras mortes tenham acontecido nesse circuito paralelo da ibogaína, não documentadas.

Gomes conclui que “alguns dos problemas enfrentados pelos participantes mostram riscos que devem ser levados em conta no uso da ibogaína e também em futuras regulamentações do seu uso, principalmente em relação a triagem e preparo do paciente, administração e dosagem da ibogaína e suporte durante o efeito agudo”.

O forte da tese, para interessados no aspecto subjetivo (“fenomenológico”, no jargão da ciência psicodélica), são os cinco relatos de dependentes que o psicólogo acompanhou por um ano, com entrevistas trimestrais. Um dos mitos que se desfaz com a leitura é o da ibogaína como panaceia ou bala de prata para exterminar a dependência.

Os pacientes saem melhores da experiência e descrevem como passaram por uma renovação da própria vida, mas não se livram do crack num passe de mágica. Chico (nome fictício), por exemplo, chegou a crer que encontrara a cura, como descreveu na primeira entrevista três meses de acompanhamento:

“Eu falei que me vi no uso [de crack], no dia da dose alta [de ibogaína]. Fiquei com dó de mim mesmo… Me vi desde pequenininho. Como me tornei isso?” –relatou a Gomes. “Venho de 12 internações, 20 anos de uso de crack. Eu às vezes lembro, mas não dá um trisco de vontade, nada! A memória não vem muito também. É como se eu nunca tivesse usado.”

Depois disso Chico teve recaídas esparsas, tomou ibogaína mais algumas vezes, porém com menos efeito. Procurou ajuda também na ayahuasca. Nas conversas subsequentes, já não dizia acreditar estar curado da dependência, mas sim amadurecido:

“Me tornei uma pessoa melhor, mais regrada. Nunca fui desonesto, nunca fui de mexer nas coisas do outro, mas agora tô até meio chato nessa parte. Fiquei até meio velho… Acho que amadureci. Pude me sentir uma pessoa que se resolveu com ela mesma. Ficava esperando felicidade e perguntando de onde ela ia vir… E ela tá aqui comigo. Consegui ficar feliz com o que eu já tinha.”

É de mais histórias e relatos como esse, tocantes e lúcidos, que a ciência psicodélica nacional precisa. Além, claro, de resultados sólidos da pesquisa rigorosa que pôs o Brasil na terceira posição entre os que produzem mais artigos científicos de alto impacto.

Só assim será possível vencer o preconceito que joga os psicodélicos na vala comum das drogas “demoníacas” e impede o avanço que alguns de nosso melhores cientistas perseguem, em favor da saúde mental, não sem risco para a própria carreira e reputação.

PARA SABER MAIS

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Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/#respond Mon, 16 Aug 2021 19:49:30 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/IbogaGiselleCamargo-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=568 Aos 37 anos, a catarinense Giselle Camargo não tem do que reclamar, ao menos em aparência: jornalista bem-sucedida fora do eixo SP-RJ-DF, diretora e apresentadora do podcast pioneiro Anticast (criado em 2011, está na origem da série de TV “Caso Evandro”), mãe de um menino de cinco anos morando numa das capitais com melhor qualidade de vida (Curitiba).

Em 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro, angustiada com a situação política e fantasmas próprios, passou a beber, entornando mais de uma garrafa de vinho por dia. Sentia esvair-se o controle da própria vida, do peso, do sono, da depressão. Tomou a decisão de reagir, e buscou na ibogaína ajuda para tirar o pé do lodo existencial em que chafurda o país: “Estamos todos doentes no Brasil”.

Cresceu numa família adventista de São Francisco do Sul (SC), onde o pai era sindicalista. Drogas não faltavam na cidade portuária. Conviveu com mais de um parente dependente químico.

Aos 23 anos partiu sozinha para São Paulo, onde teve contato com maconha, ecstasy e cocaína, sem apegar-se a nenhuma delas. “Tomei um quarto de LSD e foi horrível, muito medo.” Remédios para emagrecer eram uma constante desde os 14 anos. Em 2009 começou a tomar antidepressivos.

Com o casamento e a gravidez, a jovem de 1m72 engordou e chegou aos 127 kg. Uma cirurgia bariátrica a devolveu para 69 kg, mas ela começou a beber, algo não incomum em quem faz a cirurgia de redução do estômago. O ponteiro da balança voltou a subir: 72, 74, 78 kg.

Na pior fase, estava bebendo já de manhã, mesmo de ressaca. Seguia trabalhando normalmente e decidiu que ia mudar a vida de “alcoolista funcional”, como se define. Não se animou com tratamentos convencionais, pouco eficazes. Aí se lembrou da recomendação de um psiquiatra a um parente, anos antes, de terapia com ibogaína para dependência química.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta africana de cuja raiz se extrai a ibogaína(Marco Schmidt/Creative Commons)

“Estou velha, no sentido de mais madura. Fui atrás. Já deu. Não tem como não dar [certo]”, contou Giselle ao blog no final de maio. Essa primeira conversa ocorreu quatro dias antes de sua sessão com ibogaína em Ourinhos (SP), aos cuidados do médico Bruno Rasmussen Chaves e do psicólogo Bruno Ramos Gomes, aos quais chegou depois de muita pesquisa, como convém a uma jornalista.

O primeiro passo foram consultas remotas de preparação, com Gomes. Falou de seu medo de morrer e deixar o filho sozinho, caso algo acontecesse com ela e o marido em trânsito para o interior paulista.

Recebeu esclarecimentos sobre o baixo risco do procedimento, que Chaves compara com o de uma pequena cirurgia, e preferiu deixar uma carta para o menino explicando o propósito da viagem. No dia 1º de junho tornou-se uma entre mais de 2.000 pacientes tratados com ibogaína pelo médico.

Chaves, um gastroenterologista, começou a ministrar o composto da planta africana Tabernanthe iboga em 1994. Travou contato com o potencial terapêutico do extrato em encontro casual com Howard Lotsof, ex-dependente que abandonou a heroína e se tornou apóstolo da ibogaína nos Estados Unidos, onde ela permanece proibida (no Brasil se veda o comércio, mas a Anvisa admite importação, caso a caso, da droga não regulamentada).

Um pouco dessa história vai contada no quarto capítulo do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora), em que falo também do uso da iboga no culto Bwiti do Gabão. Nos próximos dias a newsletter MAPS Bulletin  publicará artigo sobre iniciativas pioneiras de pesquisadores brasileiros com ibogaína para drogadição.

O leitor também pode informar-se diretamente com Chaves, Gomes e o psiquiatra André Brooking Negrão, colaboradores num ensaio clínico da USP sobre dependência de crack e cocaína que participaram em 15 de julho de uma conversa sobre ibogaína organizada por Chacruna Latinoamérica.

Giselle tomou às 8h30 uma dose moderada de hidrocloreto de ibogaína (12 mg por quilo de peso), na versão semissintética com 99% de pureza da empresa Phytostan utilizada por Chaves, que mantém seus pacientes em observação por 24 horas na Santa Casa de Ourinhos. Em ambiente hospitalar, com monitoramento contínuo, fica mais fácil intervir no caso de raras arritmias cardíacas, que podem ser fatais.

Há registro de 33 mortes no mundo após ingestão de ibogaína, em geral associadas com doenças cardíacas preexistentes ou uso concomitante de outras drogas, como heroína e cocaína. Chaves nunca teve um caso de complicação grave assim.

A jornalista passou então pelas três fases características do efeito do alcaloide. Após uma hora, começou a sentir uma vibração intensa e, em seguida, tontura e zunido no ouvido, recebendo a recomendação de permanecer deitada.

Precisou de ajuda de uma enfermeira para caminhar até o banheiro. Batimentos cardíacos subiram para 89 por minuto, quando seu normal é 65-70, mas achou que era muito mais. “Aí eu caí, uma sensação no estômago, caindo no escuro, como num filme do Tim Burton.”

Era a segunda etapa, comumente descrita como inundação de pensamentos. “Eu chamaria de loucura, loucura, loucura”, conta Giselle. As primeiras imagens a passar na tela dos olhos fechados foi do marido, depois irmã, mãe e, apesar de poucas imagens da infância relatadas por outros psiconautas, uma senhora negra centenária de quando era criança, dona Alaíde.

“Pessoas para quem tenho de pedir perdão”, diz. “Chorei muito, muito. Estava sofrendo de olhos fechados. Experiências premonitórias muito doloridas.” Mas Giselle se sentia no comando da própria viagem, que lhe rendeu lampejos felizes: “Tive a sorte de ter uma mãe que gargalha”.

A bebida não apareceu em primeiro plano. Como diz Gomes, que defendeu em maio uma tese de doutorado na Unicamp sobre 12 pacientes tratados com ibogaína, ela não traz o que a pessoa quer, mas sim o que a pessoa precisa.

Giselle entrou na terceira etapa, de reflexão, que se estendeu por pelo menos 72 horas, com duas convicções. Uma: “Sou uma pessoa muito boa, apesar de ter magoado muita gente. Antes era muito crítica, achava ruim tudo que fazia”. Outra: “O que passou, passou; não vou conseguir voltar no tempo”.

Ela não encontra palavras para descrever o pico do efeito. “É inefável, não consigo dizer. Surreal. Pesado. Difícil”, afirma. “Espero nunca mais fazer isso de novo. É foda, foda, foda. Se não estiver muito preparada, é de endoidecer. Já saltei de paraquedas, e é mais difícil, é se jogar no desconhecido.”

Dois meses e meio depois da sessão, o blog faz novo contato com Giselle. Como está? “Sigo firme e forte nos propósitos que tinha ao tomar a ibogaína.” E a bebida? “Não voltei a beber e quase nunca penso nisso. Já o cigarro é mais traiçoeiro. Não tem um dia desde então em que não pense em fumar. Sonho que estou fumando.”

Um de seus receios, agora, antecipa o dia em que a Covid passar –se passar: “Quanto ao álcool, tenho medo de que a retomada da vida social, algo que ainda está em suspenso por causa da pandemia, torne a decisão de parar mais difícil. De batismo a velório, temos rituais que envolvem a bebida alcoólica”.

Um dia desses Giselle abriu um vinho branco para fazer risoto. A garrafa segue aberta na geladeira.“Não chego nem a olhar.” O porém: “Tem essa coisa de tira a droga, no meu caso álcool, e resolve o problema. Não, né? O problema só muda de lugar.”

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Enquete global confirma força da ayahuasca contra álcool e drogas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/08/enquete-global-confirma-forca-da-ayahuasca-contra-alcool-e-drogas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/08/enquete-global-confirma-forca-da-ayahuasca-contra-alcool-e-drogas/#respond Sun, 08 Aug 2021 19:31:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/InnerVisionsCapa-300x186.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=560 Pesquisa na internet realizada por pesquisadores na Austrália, Brasil e Espanha atesta com base numa grande amostra aquilo que evidências anedóticas de igrejas da ayahuasca já indicavam: o chá psicodélico está diretamente relacionado com menor incidência de uso problemático de drogas, em particular o álcool.

O Projeto Ayahuasca Global colheu em 40 países testemunhos de 10.836 usuários do chá, dos quais 8.629 relataram uso de álcool ou drogas e foram incluídos na análise publicada em 25 de julho no periódico Drug and Alcohol Review. Dos oito autores, três atuam no Brasil: Emerita S. Opaleye (Unifesp), Luís Fernando Tófoli (Unicamp) e Nicole L. Galvão-Coelho (UFRN).

Alguns vão torcer o nariz para a ideia de tratar abuso de drogas com outra droga, mas a DMT da ayahuasca, o LSD e a psilocibina de cogumelos são especiais. Pouco tóxicos, não causam dependência química e estão de volta à pesquisa de tratamentos psiquiátricos, após meio século de proibicionismo, com o ímpeto de um renascimento psicodélico.

De depressão a anorexia, vários são os transtornos para os quais ensaios clínicos apontam aplicações terapêuticas promissoras. Tão promissoras que instituições acadêmicas como Imperial College, Johns Hopkins, Harvard, o hospital Mount Sinai e as universidades de Nova York e da Califórnia abriram centros de estudos específicos para psicodelia. Pipocam investimentos privados bilionários na novidade psicofarmacológica.

O centro mais recente surgiu em Melbourne, Austrália: Instituto Psychae, voltado a testes clínicos de compostos farmacêuticos para medicina psicodélica. Segundo noticiou o jornal The Sydney Morning Herald, o centro de pesquisa nasce com dotação de 40 milhões de dólares australianos (R$ 154 milhões) doados por empresa americana de biotecnologia que prefere não ser identificada.

O Psychae terá como co-diretores Jerome Sarris, da Universidade Western Sydney, e Daniel Perkins, da Universidade de Melbourne. Não por acaso são respectivamente primeiro e último autores do artigo na Drug and Alcohol Review sobre ayahuasca, pois a dimetiltriptamina (DMT, principal psicoativo do chá) está nos planos de ensaios clínicos do novo instituto, por exemplo para tratar transtorno de uso de drogas (abuso e dependência).

Testemunhos obtidos pela internet implicam vieses de seleção, pois usuários de ayahuasca com más experiências provavelmente estariam menos motivados a preencher uma série de formulários padronizados. O forte dessa enquete, por outro lado, está no tamanho avantajado da amostra e na composição multicultural.

A análise revelou que há correlação estatística significativa entre frequência no uso da ayahuasca e menor incidência de uso ou abuso de álcool e outras drogas. E mostrou que esse benefício de saúde mental independe, em certa medida, de beber o chá em rituais religiosos (embora o uso em contexto cerimonial pareça, sim, robustecer o efeito terapêutico).

A presença destacada de brasileiros entre autores e participantes não é coincidência. O estudo da ayahuasca foi facilitado aqui pela legalização do chá para uso religioso a partir de 2004, o que tornou o Brasil o terceiro maior produtor de pesquisas de impacto em ciência psicodélica.

O estudo brasileiro de maior repercussão foi justamente um teste clínico randomizado controlado por grupo placebo com ayahuasca para depressão resistente a medicamentos, de 2018. Chefiado por Dráulio Araújo e Fernanda Palhano-Fontes, o ensaio pioneiro contou com participação de Nicole Galvão-Coelho (todos da UFRN).

Nicole Leite Galvão-Coelho em seu laboratório na UFRN. (UFRN/Divulgação)

A fisiologista retornou há poucos meses de um sabático na Austrália. Sua especialidade são marcadores relacionados com transtornos, como inflamação, cortisol e BDNF (fator cerebral importante na formação de sinapses).

Nicole acaba de publicar artigo sobre os perfis bioquímicos em pacientes com diferentes estágios de depressão, de recém-diagnosticados àqueles que não melhoram com antidepressivos disponíveis. Esse detalhamento poderá ajudar na sintonia fina de terapias com substâncias como a ayahuasca (que normaliza níveis de cortisol em pacientes graves resistentes, por exemplo).

O time potiguar trabalha no planejamento de testes clínicos mais ambiciosos de psicodélicos, com as dificuldades usuais enfrentadas por pesquisadores brasileiros. Grupos da USP também preparam ensaios controlados com o psicodélico ibogaína para dependência química (crack e álcool), mas ainda não abriram recrutamento.

Com frequência este blog recebe consultas sobre oportunidades para participar desses estudos e, quem sabe, beneficiar-se dos efeitos terapêuticos que a ciência vem constatando. Não cabe aqui fazer qualquer recomendação, porque a maioria dos psicodélicos permanece proibida e porque não sou médico nem psicólogo. Psicodélicos não são panaceia emocional, têm contraindição para muitas pessoas e não estão isentos de efeitos adversos, como qualquer substância.

Dito isso, cabe assinalar que havia no final de 2020 pelo menos 70 testes clínicos de psicodélicos com registro ativo no mundo. Entre eles, 56 estavam recrutando voluntários ainda no mês passado.

Seria ótimo se a parceria de pesquisadores nacionais com o milionário Instituto Psychae da Austrália colaborasse para impulsionar mais e maiores ensaios como esses no Brasil, necessitado como está o país de sacudir a depressão galopante (para não dizer ruminante), e manter sua posição de destaque em ciência psicodélica.

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Experimento brasileiro mapeia curas e loucuras na terra incógnita do LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/#respond Tue, 13 Jul 2021 02:15:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/BISPOROSARIOfolhapressRicardoBorges-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Quem já tomou LSD conhece bem a mistura de clareza e perturbação mental induzida pela droga psicodélica. Graças a um grupo brasileiro de pesquisa com epicentro na Unicamp o mapa desse paradoxo ganha mais detalhes, contribuindo para esclarecer como uma experiência que tem algo de psicótica pode também ser terapêutica.

O trabalho, obtido com exclusividade pelo blog, sai publicado nesta terça-feira (13) no periódico Psychological Medicine sob o título “LSD, Loucura e Cura: Experiências Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutico”. É o primeiro estudo no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, quando se interromperam pesquisas feitas por exemplo na USP.

Participaram do experimento de Isabel Wießner, psicóloga alemã que faz doutorado na universidade paulista, 24 adultos com contato anterior com a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na abreviação original do alemão). O orientador de Isabel na Unicamp, psiquiatra Luís Fernando Tófoli, figura como autor sênior do artigo.

Cada pessoa tomou 50 microgramas da droga numa sessão e placebo na outra, separadas por 14 dias, sem saber em qual delas ingeriu o quê. Ao longo de oito horas, fazia testes e preenchia questionários na presença da psicóloga e de um psiquiatra, Marcelo Falchi, que também desconheciam qual substância o participante havia ingerido. No dia seguinte de cada sessão, mais uma bateria com duas horas de testes.

Os outros autores são Fernanda Palhano-Fontes e Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Amanda Feilding, da Fundação Beckley (Reino Unido), uma condessa britânica que ajudou a financiar o estudo.

A ferramenta para destrinchar o componente loucura do LSD foi um questionário que mede saliência aberrante, a tendência a destacar e emprestar sentido especial a objetos e pensamentos que normalmente não receberiam a mesma atenção. É o que psiquiatras chamam de atribuição patológica de significado, uma distorção cognitiva que a viagem psicodélica compartilha com estágios iniciais de psicose.

Mesmo trabalhando com uma dose baixa de LSD, chamada de “psicolítica” nos tempos pré-proibição (décadas de 1950/60) em que a droga era empregada em psicoterapia, o experimento confirmou aumento da saliência aberrante na comparação com o dia de placebo. O questionário se compõe de perguntas sobre a pessoa ter experimentado emoções agudas relacionadas com coisas ou ideias, ou a sensação de que algo importante está para acontecer, a iminência de compreender significados elusivos.

(Ilustração: Rodrigo Visca)

Outros testes também indicaram as alterações lisérgicas da percepção características do estado psicodélico, sobretudo visuais. Esta é uma diferença marcante com as alucinações de esquizofrênicos crônicos, em que predomina o sentido da audição (“ouvir vozes”) e a convicção de que se trata de manifestação real, engendrando o que se chama de ideia delirante.

“Os pesquisadores viram que, de fato, nos voluntários o LSD foi capaz de provocar uma diferença nas respostas, na escala de saliência aberrante, quando comparado ao placebo. Tal observação pode contribuir para explicar o mecanismo pelo qual pessoas com depressão ou sintomas de traumas passados mudaram suas crenças e atitudes após experiência pontuais ou repetidas de psicodélicos”, diz André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Negrão não participou do estudo, mas integrou a banca de qualificação de Isabel para o doutorado. Em sua avaliação, “o artigo é mais um atestado da produtividade e da sofisticação dos estudos feitos por pesquisadores dos dois centros, Unicamp e Natal.”

O componente terapêutico foi escrutinado no estudo por meio do conceito de sugestionabilidade. De olhos fechados, o participante era convidado a imaginar tão fielmente quanto conseguisse situações como o peso de livros empilhados sobre uma das mãos, ou o cheiro e sabor de uma fruta, e depois avaliava quão realista havia sido a sensação.

Como seria de esperar, as diferenças entre o estado alterado e o estado placebo foram estatisticamente significativas. Esse fenômeno pode ser útil em psicoterapia porque facilitaria a superação de barreiras, na medida em que o paciente se mostra mais inclinado a acatar sugestões para se aprofundar em cenas, pessoas ou temas marcantes ou dolorosos de sua biografia, por exemplo buscando imagens que possam representar os sentimentos associados.

“A sugestão é um processo fundamental na hipnoterapia, em que o paciente entra em estado de transe e consegue experimentar de modo mais fácil e vívido o que o terapeuta sugere, por exemplo visualizar uma relação difícil com a mãe, criar um símbolo para concretizar essa relação e trabalhar com esse símbolo”, exemplifica Isabel, que pesquisou hipnose para tratamento de dor em seu mestrado na Universidade de Jena.

Ela queria investigar outros estados alterados de consciência desencadeados por substâncias com potencial curativo, mas psicodélicos são proibidos na Alemanha. Depois de fazer um curso com Tófoli sobre ayahuasca, chá psicoativo legalizado no Brasil para uso religioso, decidiu-se por um doutorado na Unicamp.

A pesquisadora buscou também possíveis correlações entre a intensidade da experiência psicodélica (como distorções nos sentidos de tempo e espaço) e os resultados obtidos com as diferentes escalas empregadas no estudo, incluindo as que medem aspectos “místicos” (dissolução do ego, sentimento de unidade com uma totalidade maior que o indivíduo, ou o que algumas descrevem como participação no divino). Cabe aqui lembrar o óbvio: correlação não implica causalidade, mas pode ser uma pista.

Encontraram-se correlações fortes entre o grau relatado do estado psicodélico e saliência aberrante, mas não com sugestionabilidade. Ou seja, embora a capacidade de sugestionar-se tenha aumentado, assim como no caso da saliência (a medida mais associada com o caráter subjetivo “místico”), os dois incrementos não ocorreram necessária e proporcionalmente nos mesmos indivíduos, nem se detectou paralelismo estatístico significativo no grupo.

“O fato de experiências místicas terem importância em diversas áreas, da ‘loucura’ (experiências psicóticas) até a ‘cura’ (efeito terapêutico) indica que essas experiências possivelmente têm papel importante na saúde mental”, conjetura Isabel. Com efeito, a correlação entre o nível de qualidade “mística” na viagem psicodélica e o benefício terapêutico foi apresentada num trabalho célebre de Roland Griffiths em 2006.

“Um candidato ou candidata a terapeuta psicodélico deveria estar ciente de que os psicodélicos parecem ser capazes de induzir os dois lados (‘cura’ e ‘locura’) que parecem ter uma faceta de experiência mística em comum, estar preparado para ajudar o paciente a aceitar os dois lados e tentar promover e guiar a conexão entre esses dois aspectos para entender e melhorar a saúde mental.”

Para Tófoli, “a ideia não é criar uma ‘psicose artificial’ para estudar a esquizofrenia (que apresenta muitos outros sintomas além daqueles apresentados pelo LSD), e sim estudar um estado ‘caótico’, de aumento de entropia, que tem algumas semelhanças com a psicose”. Produzir uma psicose artificial em ambiente controlado  era o objetivo de pesquisadores como Clóvis Martins, cuja tese de livre docência na USP em 1964 se enquadrava no chamado paradigma “psicotomimético”.

“No nosso caso, estamos chamando a atenção da correlação da saliência aberrante com experiências que estão associadas com respostas a sintomas mentais, especificamente no caso das experiências místicas.”

O psiquiatra chama atenção para a necessidade de, no eventual uso do LSD para psicoterapia, dedicar atenção crucial para a dose, a cautela do terapeuta ao manejar a sugestionabilidade, a disposição mental do paciente (set) e as condições em que a sessão de dosagem acontecer (setting): ao invés de patologizar o que os psicodélicos provocam, propõe-se que o estado de entropia aumentado pode, desde que em set e setting adequados, desencadear experiências potencialmente positivas.

“Estar atento ao que se sugere em um futuro uso terapêutico de doses psicolíticas de LSD é muito importante, assim como acolher eventuais experiências místicas e de atribuição especial de significados –por vezes, inclusive, precisando ancorar alguma ‘viagem exagerada’ do paciente, principalmente em sessões de integração.”

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Tófoli lembra que uma das indicações do Delysid (nome comercial do LSD distribuído pelo laboratório suíço Sandoz até os anos 1960) era justamente indicá-lo para que psiquiatras e terapeutas o tomassem para entender melhor os estados psicóticos.

“Embora pouco discutida atualmente, eu considero essa indicação extremamente válida, desde que os profissionais em questão não estejam em grupos de risco, ou seja, não tenham tendências ou histórico de psicose. Pessoalmente, a experiência com psicodélicos certamente me abriu os olhos para entender melhor e desenvolver maior empatia pelo que passam os pacientes psicóticos.”

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Este blog está precisando de férias. Volta sem falta em agosto.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)

 

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USP de Ribeirão testa ayahuasca para medo de falar em público e fobia social https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/#respond Mon, 28 Jun 2021 15:50:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/FobiaSocialGettyImages-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Não são poucas as pessoas que tremem, suam e chegam a ter dor de barriga ou vontade de urinar quando precisam se apresentar diante de uma plateia. Para 2% a 7% da população de cada país, esse medo cresce a ponto de impedir qualquer atividade pública, com óbvio prejuízo na escola ou no trabalho, mas a ayahuasca pode dar-lhes alguma ajuda.

Ayahuasca? Sim, propõe estudo recém-publicado de Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). “Ayahuasca melhora autopercepção de desempenho discursivo em participantes com transtorno de ansiedade social”, afirma já no título artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology.

Transtorno de ansiedade social (TAS) e fobia social são nomes pomposos dados por psiquiatras para o famigerado medo de falar em público quando ele se torna paralisante, irracional. É o tipo de ansiedade mais comum, o terceiro transtorno psiquiátrico mais frequente, embora subnotificado (menos de 6% dos casos são diagnosticados), e costuma associar-se com outros distúrbios, como depressão e abuso de álcool.

Antidepressivos e psicoterapia podem ajudar, mas a maioria das pessoas com o problema segue tropeçando pela vida, até que algumas terminam abandonando a escola ou perdendo o emprego. Estima-se que até 25% dos estudantes universitários sofram com isso.

A ayahuasca foi escolhida por ser uma substância psicodélica muito estudada no grupo de Rafael dos Santos e ter conhecido efeito benéfico sobre depressão e ansiedade. O chá sacramentado em rituais de Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) leva folhas do arbusto chacrona, fonte do alcaloide dimetiltriptamina (DMT), e o cipó mariri ou jagube, fonte de compostos que inibem a decomposição da DMT.

Depois de recrutar 894 possíveis voluntários entre alunos da USP de Ribeirão, o grupo de pesquisa chefiado pelo psiquiatra Jaime Hallak terminou com apenas 17 que satisfizeram todos os requisitos para inclusão na pesquisa e compareceram para entrevistas e questionários padronizados de diagnóstico.

Cinco horas após tomar –pela primeira vez na vida– uma dose baixa de ayahuasca ou placebo (2 mililitros por quilo de peso), os voluntários tinham de fazer apresentação com tema pré-definido diante de uma tela, enquanto eram filmados, como numa conferência por zoom.

Antes e depois da experiência simulando a fala em público, precisavam preencher questionários para determinar o grau de ansiedade e autopercepção negativa (desconfiança sobre a própria capacidade, que contribui para piorar o desempenho).

Uma das limitações do estudo esteve em que os estudantes selecionados apresentavam níveis relativamente baixos de ansiedade antes mesmo do experimento. Talvez por isso os pesquisadores não tenham conseguido detectar diminuições significativas nos escores padronizados, embora os participantes tenham relatado sentir calma maior que usual durante o discurso.

“Não observamos efeitos significativos nas escalas de ansiedade, mas sim nos relatos e nas observações dos pesquisadores”, admite Santos. “A ausência de resultados significativos pode ser porque essas pessoas não tinham níveis elevados de ansiedade, mesmo preenchendo o diagnóstico, ou pela amostra pequena.”

Por outro lado, o experimento revelou que os voluntários melhoraram significativamente a autopercepção. Ou seja, mostraram-se menos desconfiadas quanto à capacidade de desempenhar adequadamente um papel social.

“Os pesquisadores aliaram o histórico internacional dessa equipe em avaliar o potencial terapêutico da ayahuasca nas pessoas e fizeram uso de um teste bem ‘calibrado’ para avaliar sua intensidade nos cuidados de pessoas com fobia social”, avalia o psiquiatra André Brooking Negrão, que não participou do estudo e investiga psicodélicos noutra unidade da USP, o paulistano Instituto de Psiquiatria.

“Os resultados são promissores porque mostraram que esse tipo de ensaio clínico é factível e, especificamente para pessoas com problemas associados à fobia social, pode ser um recurso valioso no futuro. Os pesquisadores terão agora o desafio de expandir esta metodologia para amostras mais numerosas.”

Concorda com Negrão a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autora de um pioneiro teste clínico duplo cego de ayahuasca para depressão: “O estudo é interessante por avaliar a ayahuasca em uma condição como a fobia social, para qual não há um tratamento farmacológico específico, e mostrando uma melhora em como os indivíduos que beberam ayahuasca percebem a performance deles nessa tarefa de falar em público”.

Dilema moral à frente

A fobia social vem, assim, somar-se a uma longa lista de condições que, segundo estudos ainda experimentais, poderiam eventualmente ser tratadas com psicodélicos. Cabem nela depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade, alguns transtornos do espectro autista, dependência química, anorexia, síndrome pós-concussional (danos cerebrais em boxeadores e jogadores de hóquei) e até Alzheimer, AVC, enxaqueca ou prevenção de suicídios.

Além disso, vários desses problemas de saúde mental são objeto de ensaios clínicos por diferentes substâncias psicodélicas. Por exemplo a depressão, sobre a qual há testes em andamento com psilocibina de cogumelos, DMT de ayahuasca, 5-MeO-DMT de veneno de sapo, LSD e mescalina.

Tamanha inespecificidade seria decorrente do modo básico de atuação desses psicodélicos clássicos. Todos eles são moléculas capazes de se encaixar no receptor de células cerebrais para o neurotransmissor serotonina.

Essa via bioquímica parece relaxar a rede de modo padrão (DMN, em inglês) hiperativa na ruminação (predominância circular de pensamentos negativos). Também seria capaz de aumentar a empatia e a socialidade, dissolver a ditadura do ego e estimular tanto a neuroplasticidade (formação de novas conexões entre neurônios) quanto processos anti-inflamatórios no cérebro.

Não deixa de ser um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico. A multiplicação combinatória de alvos e drogas pode suscitar entusiasmo injustificado para o estágio preliminar das pesquisas, dado que só o MDMA alcançou a fase 3 em testes clínicos e ainda carece de aprovação como adjuvante de psicoterapia. A imensa maioria dos estudos envolve poucas dezenas de participantes, como esse da USP de Ribeirão.

Além disso, não é pequeno o risco de que a imagem de panaceia para todos os males do mundo mental desperte reação conservadora similar à que virtualmente baniu os psicodélicos das farmácias e das pesquisas acadêmicas após sua adoção pelo movimento hippie e contestador da contracultura. Faltam ainda anos de pesquisa a acumular dados suficientes para ancorar os tratamentos na melhor ciência e romper preconceitos de órgãos reguladores, médicos e terapeutas.

Outro obstáculo no caminho de quem se filia à tradição clássica da psicoterapia mediada por psicodélicos é a proposta por alguns neurocientistas de livrar as pesquisas justamente da psicodelia, da psicoterapia ou de ambas. Sua ideia é desenvolver moléculas similares com poder de desarmar a DMN e a ruminação, mas que não desencadeiem estados alterados de consciência, as “viagens”.

O modelo, nesse caso, seria o dos antidepressivos surgidos a partir dos anos 1980, como a classe de inibidores seletivos de receptação de serotonina (ISRS) inaugurada pela fluoxetina (Prozac). Pílulas para as pessoas tomarem todos os dias, no intuito de se livrarem da depressão sem laboriosos processos de psicoterapia, mas que a realidade mostrou não funcionar para pelo menos um terço dos deprimidos graves.

(Reprodução)

A controvérsia sobre “psicodélicos não-psicodélicos” já apareceu no blog (aqui, aqui e aqui) e ganhou destaque há poucos dias na revista Forbes.

A reportagem de Will Yakowicz apresenta o trabalho de Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, para escrutinar incontáveis moléculas aparentadas à DMT &cia. “O objetivo é encontrar compostos que sejam terapêuticos e não psicodélicos”, disse o neurofarmacologista a Yakowicz.

Roth está abastecido com US$ 27 milhões da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa, em inglês) dos EUA para desenvolver uma nova geração de medicamentos candidatos a reduzir depressão e TEPT com a rapidez dos psicodélicos, em comparação com os lentos antidepressivos disponíveis, mas sem alucinações ou dissolução do ego e sem os efeitos adversos dos ISRS (como insônia, zonzeiras e redução da libido).

O financiamento corresponde ao valor aproximado que a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) levou muitos anos a levantar para conseguir empreender estudos de fase 3 com MDMA (ecstasy) contra TEPT. Esses testes clínicos devem render autorização para uso geral da droga como adjuvante em psicoterapia, e não para uso contínuo, até 2023.

A aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA) é a grande esperança de tratamento para veteranos de guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Em 2016, havia 868 mil ex-combatentes recebendo benefícios por incapacidade provocada por TEPT, ao custo de US$ 17 bilhões anuais aos cofres americanos.

Entende-se, assim, o interesse do Departamento de Defesa no trabalho de Roth, para desgosto do ex-hippie Rick Doblin, fundador da Maps. A reportagem da Forbes registra todo seu descontentamento: “A tragédia que vejo é que a Darpa poderia ter um vencedor agora mesmo com MDMA para TEPT, mas está tentando dizer ‘dane-se a experiência psicodélica e vamos investir em psicodélicos não-psicodélicos’ enquanto 20 veteranos por dia estão se  matando”.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)
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Nasce a Scirama, primeira empresa de inovação psicodélica do Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/#respond Mon, 19 Apr 2021 02:15:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/LOGO-SCIRAMA-FUNDO-BRANCO-215x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=419 O renascimento psicodélico ganha nesta segunda-feira (19) a primeira empresa brasileira de inovação nesse campo efervescente, Scirama. Por trás dela está Marcel Grecco, 38, criador de The Green Hub, aceleradora na área de maconha medicinal e cânhamo que tem dez startups no portifólio.

O momento foi bem escolhido: 19 de abril é o Dia da Bicicleta, data em que o químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), descobridor do LSD nos laboratórios Sandoz, realizou a primeira viagem lisérgica da história, em 1943. Até a proibição nos EUA em 1968, a droga foi distribuída para distúrbios como o alcoolismo, sob o nome Delysid.

A partir de 1980, estudos clínicos com quase todos os compostos psicodélicos caíram no ostracismo. Ressurgiram a partir da virada do século e hoje entusiasmam neurocientistas e investidores, sobretudo a psilocibina dos cogumelos “mágicos”, por seu potencial para tratar transtornos mentais como a depressão resistente a medicamentos.

Nos últimos cinco anos quase 3 mil artigos científicos foram publicados acerca do tema. Estimativas sobre o mercado mundial para psicoterapia apoiada em psicodélicos partem de US$ 100 bilhões anuais (R$ 560 bilhões), e várias empresas travam hoje uma corrida para patentear moléculas e aplicações psicodélicas.

Nos EUA, governo, universidades e empresas investiram, no primeiro semestre de 2020, US$ 250 milhões em pesquisa psicodélica. A Janssen (Johnson & Johnson) lançou o spray nasal antidepressivo Spravato (escetamina, variante da cetamina, anestésico já usado contra depressão), com vendas de US$ 1,5 bilhão anuais.

“A Scirama [pronuncia-se ‘sairama’] nasceu a partir de uma dor, o mal do século na saúde mental”, diz Grecco, referindo-se principalmente a depressão e ansiedade. “Isso agora vai se intensificar, com o luto pós-Covid, a dor de quem perdeu alguém ou teve a doença, e os impactos econômicos, na perda de empregos e negócios.”

Marcel Grecco, criador de The Green Hub e da empresa psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

O empresário conta que, depois de criar The Green Hub em 2016, foi atraído pela promessa medicinal dos alteradores de consciência. Numa primeira rodada entre investidores para lançar a Scirama, obteve fundos da ordem de R$ 1,5 milhão.

“O uso de cânabis e de psicodélicos é disruptivo [revolucionário] para o setor de saúde”, diz, aludindo aos estudos que os apontam como alternativa para as terapias existentes, que no caso de depressão não funcionam para ao menos um terço dos doentes.

Grecco já conhecia como colaborador científico da aceleradora The Green Hub o neurocientista Stevens Rehen, 50, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), que tem estudos publicados sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos ayahuasca e 5-MeO-DMT (extraído originalmente do veneno do sapo-do-rio-colorado).

O neurocientista Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres.
(Mercelo Leite/Folhapress 2019)

Chamou Rehen para compor o comitê científico da Scirama ao lado de Sidarta Ribeiro, 50, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN). Ambos já trabalharam juntos em pesquisa básica com LSD, em colaboração com Dráulio de Araújo (ICe-UFRN) e Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Completa o time Clarice Pires, 36, economista especializada em inovação com quem Rehen atuou na startup de biotecnologia Hygeia, um raro caso de sucesso no problemático campo de inovação no Brasil. A empresa desenvolveu novas formulações do medicamento octreotida (supressor do hormônio de crescimento e antidiarreico) e as licenciou no Brasil e no exterior.

Clarice Pires, administradora da startup psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

“Stevens e Sidarta têm todo o conhecimento, sabem para onde a ciência está indo”, diz Grecco. Com efeito, esse grupo de colaboradores está no epicentro da pesquisa nacional na área, favorecida pela legalização da ayahuasca por motivos religiosos, que pôs o Brasil em terceiro lugar na quantidade de artigos científicos de grande impacto sobre psicodélicos, atrás dos EUA e do Reino Unido apenas.

A ideia da Scirama é dar o financiamento inicial e ajuda na estruturação de produtos e terapias derivados das propriedades já conhecidas de psicodélicos. Entre elas estão a capacidade de estimular novas conexões cerebrais (neuroplasticidade) e a ação anti-inflamatória, que poderá gerar aplicações para transtornos mentais e doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

No exterior, já se investiga o uso de psicodélicos até para acidentes vasculares cerebrais, anorexia e enxaqueca. Entre os alvos da Scirama estarão também protocolos para o tratamento de dependência química, em especial de álcool –como se fazia com LSD nos anos 1950/60. A startup lançará em breve um edital para receber propostas de pesquisadores brasileiros.

No curto prazo, a equipe espera receber ideias na área de psicoterapia com psicodélicos clássicos (ayahuasca, LSD, psilocibina) e mesmo para cultivo de organismos produtores, como os cogumelos Psilocybe. No longo prazo, aplicações para envelhecimento, não dependentes do efeito psicodélico terapêutico propriamente dito (alterações da consciência, como a chamada dissolução do ego e o aumento de empatia).

Outro setor em que a Scirama pretende inovar é o de compensações para os povos tradicionais que usam psicodélicos em rituais há séculos e legaram esse conhecimento para a ciência contemporânea (um flanco aberto para intensa controvérsia). O próprio logotipo da firma faz alusão a isso, ao reunir filamentos de conexão entre neurônios em formato que lembra um cocar.

A administradora Clarice Pires afirma que patentes e propriedade intelectual são cruciais para seu modelo de negócios, mas que em breve a empresa apresentará um modelo sobre como pretende fazer esse ressarcimento. O assunto já está na pauta das próximas reuniões.

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo. E em 19 de maio começa o curso no canal Bora Saber:

 

 

 

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Psicodélico empata com antidepressivo e pode ganhar partida nos pênaltis https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/#respond Wed, 14 Apr 2021 21:00:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/DepressaoLeticiaMoreiraFolhapress-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=411 Apoio científico importante para o renascimento psicodélico sai nesta quarta-feira (14) no New England Journal of Medicine (NEJM), o periódico médico mais lido e citado no mundo: em confronto direto com o antidepressivo escitalopram (Lexapro), o psicodélico psilocibina demonstrou bom desempenho ao reduzir sintomas de depressão.

Poucas pessoas não conhecem alguém tratado com escitalopram ou outro remédio para depressão. É o mal psíquico do século 21, agravado agora pelo flagelo da Covid-19, e pelo menos um terço dos deprimidos não se dá bem com esses medicamentos, os modernos inibidores seletivos de reabsorção de serotonina (ISRS).

Um empate estatístico como o descrito no NEJM já seria grande notícia para substâncias psicodélicas, ora em vias de retornar à farmacopeia da psiquiatria. O autor principal do artigo do Imperial College de Londres, no entanto, vai além e indica que o composto dos “cogumelos mágicos” se sai melhor na disputa dos pênaltis, por assim dizer.

A metáfora futebolística cai bem para descrever a interpretação apresentada em tuítes, nos últimos dias, por Robin Carhart-Harris. Estrela da vanguarda psicodélica, ele acaba de ter seu passe comprado do Imperial pela Universidade da Califórnia em São Francisco, cujo centro de neurociência Neuroscape criou para Carhart-Harris a cátedra Ralph Metzner, dotada com US$ 4 milhões (quase R$ 23 milhões).

RCH parece querer evitar a conclusão de que seu estudo apresenta uma conclusão desfavorável para a psilocibina, substância originalmente extraída de fungos do gênero Psilocybe (em testes clínicos se usam fórmulas sintéticas). Isso porque o artigo na NEJM deixa claro que o desfecho (resultado) principal buscado na investigação com 59 voluntários portadores de depressão moderada não produziu diferença estatisticamente significativa entre o psicodélico e o escitalopram.

Três dezenas de participantes caíram no grupo que recebeu a psilocibina, e os outros 29 tomaram o antidepressivo. No primeiro caso, duas doses de 25 mg do psicodélico separadas por 21 dias, mais seis semanas de placebo; no outro, doses inócuas de psilocibina (1 mg) no mesmo intervalo e seis semanas de escitalopram.

Todos os 59 desconheciam qual dose de psilocibina ingeriam (assim como os experimentadores). E todos foram submetidos a várias sessões de orientação, psicoterapia e monitoramento de efeitos adversos ou sintomas depressivos ao longo das nove semanas de duração do experimento.

Observou-se melhora nos dois contingentes de voluntários, com base na escala de depressão QIDS-SR-16, que tem um máximo de 29 pontos –quanto mais pontos, pior o transtorno. O grupo da psilocibina partiu de um escore mediano de 14,5 e perdeu 8 pontos (redução de 55%); entre os que tomaram escitalopram, a pontuação inicial foi de 16,4 e a redução, de 6 pontos (-37%). Pelo desenho estatístico, a divergência não se provou significativa.

As conclusões do artigo são bem cuidadosas: “Com base na mudança em escores de depressão na QIDS-SR-16 na sexta semana, este ensaio não mostrou uma diferença significativa em efeitos antidepressivos entre psilocibina e escitalopram num grupo selecionado de pacientes”, advertem os autores.

Eles ressalvam que “desfechos secundários [outras escalas padronizadas sobre bem-estar etc.] em geral favoreceram a psilocibina sobre o escitalopram”. RCH e colaboradores, entre eles a farmacologista brasileira Bruna Giribaldi, recorrem à fórmula típica de artigos médicos para sinalizar cautela: “Ensaios maiores e mais longos são necessários para comparar psilocibina com antidepressivos estabelecidos”.

Em contato por email com o blog, o neurocientista britânico revelou que, pessoalmente, não tem planos de empreender novos estudos sobre depressão na Califórnia. Não deixa de ser curioso, tendo em vista que seu time no Imperial foi um dos pioneiros em investigar psilocibina para depressão, com trabalho publicado em 2016.

Na mesma mensagem RCH ofereceu uma interpretação mais positiva dos resultados que a apresentada no artigo. “O [desfecho] primário falhou, mas os secundários todos mostraram significativa superioridade em favor da psilocibina, [algo] bem notável, eu diria”, comentou. “Suspeito que o [desfecho] primário falho seja um falso negativo, em face do panorama mais amplo.”

Dráulio de Araújo, físico neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do primeiro estudo no mundo a comparar o efeito antidepressivo de um psicodélico (ayahuasca) contra placebo, saudou o artigo na NEJM como um marco para a ciência psicodélica –isso apesar de o trabalho britânico não incluir grupo de controle com placebo.

“Considero o estudo muito bem-conduzido, embora com o desenho metodológico um pouco complicado, que parece favorecer o escitalopram –e mesmo assim o efeito robusto da psilocibina se mantém”, disse o pesquisador da UFRN, que planeja comparar o efeito antidepressivo da ayahuasca com o anestésico cetamina. “É um dado surpreendente.”

Com Araújo concorda o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seu coautor no trabalho sobre ayahuasca. “O fato de a resposta ter sido a mesma no desfecho primário para um antidepressivo que é reputado entre os melhores dos ISRS é um feito e tanto para a psilocibina”, avalia.

“Considerando o preconceito que a terapia baseada em psicodélicos sofreu ao longo de décadas, empatar com um tratamento consolidado é uma vitória não desprezível.”

Para o psiquiatra, o ideal seria que o estudo tivesse um terceiro braço, com apenas uma dose irrisória de psilocibina e placebo (sem psilocibina e sem escitalopram). Também há a desvantagem de o estudo ser relativamente curto: “Não sabemos quanto os efeitos antidepressivos de um lado e do outro se sustentariam, se ampliariam ou se reduziriam”, ressalva. “A depressão é um mal crônico, e essa não é uma informação desprezível.”

“Ainda assim, o estudo é alvissareiro para as potencialidades abertas pela psiquiatria psicodélica. Sobre os desfechos secundários, embora sistematicamente eles tenham sidos melhores para o grupo da psilocibina, o próprio estudo pede que eles sejam desconsiderados, pois não foi possível fazer o cálculo estatístico.”

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo.

 

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Mass General e Mount Sinai entram na onda de centros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/#respond Mon, 01 Feb 2021 14:20:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/MOUTASINAIreutersMikeSegar-300x199.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=296 A cada semana chegam dezenas de informes de investidores, notícias, avisos de transmissões ao vivo e lançamentos de livros sobre o renascimento psicodélico para a psiquiatria. Eis aqui algumas novidades selecionadas nos últimos dias, com destaque para dois templos da medicina dos EUA: Mass General e Mount Sinai.

O Hospital Geral de Massachusetts, mais conhecido como Mass General ou MGH, é o mais importante hospital ligado à Escola Médica da Universidade Harvard. Seu departamento de psiquiatria recebeu uma doação do Fundo em Memória de Arielle Soussan para Pesquisa Psicodélica que deu origem no MGH ao Centro para Neurociência de Psicodélicos, no final de 2020.

Arielle faleceu aos 24 anos, após anos sofrendo de depressão resistente às terapias disponíveis. Antes de morrer, interessou-se pelo estudo de substância psicoativas como psilocibina, DMT e LSD para tratar transtornos mentais, o que motivou a família a criar o fundo.

Metade dos gastos anuais com tratamentos para depressão nos EUA –US$ 350 bilhões (R$ 1,9 trilhão, o equivalente a ¼ do PIB brasileiro)– se destina a esses doentes que não encontram alívio nos medicamentos atuais. Esses pacientes apresentam baixa neuroplasticidade, ou seja, formam poucas conexões cerebrais novas e neurônios para abrir rotas alternativas à ruminação que caracteriza o transtorno, o que psicodélicos parecem capazes de estimular.

O novo centro do MGH, que agora se associa à Atai Life Sciences, uma startup alemã da área, focalizará suas pesquisas na neuroplasticidade. O psiquiatra Jerrold Rosenbaum, diretor do grupo, diz que, como a maioria dos médicos, via os psicodélicos apenas como drogas proibidas, de uso recreativo: “Quando comecei a aprender mais, percebi que havia aí uma oportunidade [de pesquisa] que deixamos passar subdesenvolvidas por décadas”, afirmou ao jornal Boston Globe.

Outra instituição a surfar o tsunami é a Escola de Medicina Icahn do sistema Mount Sinai, em Nova York, que emprega 7.200 médicos em oito hospitais. A faculdade, uma das 20 melhores dos EUA, abriu o Centro para Psicoterapia Psicodélica e Pesquisa de Trauma, que se dedicará a novos tratamentos para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em veteranos militares e em civis.

O centro nova-iorquino terá na direção da psiquiatra Rachel Yehuda, uma especialista em TEPT que também dirige um centro de saúde mental para veteranos no Bronx. Ela própria treinada nos protocolos para uso de MDMA (ecstasy) desenvolvidos pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), ONG à frente do teste clínico de fase 3 que deve levar em breve à aprovação do emprego psicoterápico da droga, diz ser importante conhecer as experiências subjetivas de quem sofre:

“As pessoas que tomam MDMA relatam sentimentos de introspecção, conexão, compaixão consigo mesmas e com os outros, empatia e confiança interpessoal aumentada, que são condições ótimas para se engajar no processamento de material [psíquico] difícil ou traumático”, afirmou à newsletter Psilocybin alpha. Ouça Yehuda falar de psicodélicos e do centro, em inglês, aqui.

MGH e Mount Sinai se somam, assim, a várias instituições de excelência acadêmica que abriram centros para pesquisa psicodélica, como Imperial College de Londres, Universidade Johns Hopkins e Universidade de Nova York. É uma onda irresistível. No Brasil há grupos com pesquisa de primeira linha no tema, mas instituições acadêmicas acossadas por um governo retrógrado se preparam mais uma vez para perder o bonde, como alertou o primeiro post neste blog.

Publicações científicas e não especializadas não cessam de editar reportagens especiais e notícias sobre o assunto. Na semana que passou foi a vez da Nature, que fez um apanhado das novidades do setor sob o título “Como ecstasy e psilocibina estão sacudindo a psiquiatria”.

O texto assinado por Paul Tullis trata dos testes clínicos com essas drogas –17 só em 2020– e do desafio posto para órgãos reguladores, que cedo ou tarde terão de retirar os psicodélicos da lista de substâncias banidas. Ao contrário do que supõem o senso comum e os conservadores proibicionistas, a ciência vem mostrado que elas podem ser usadas de maneira segura, têm benefícios médicos e não causam dependência –vale dizer, não faz sentido manter sua proscrição.

Testes clínicos com psicodélicos (Reprodução/Nature)

Dos 17 ensaios clínicos relacionados pela Nature, 13 investigam a psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos”, do gênero Psilocybe. Esses fungos alucinógenos têm longa história na ciência psicodélica e seu uso terapêutico começa a ser legalizado nos EUA, na esteira da maconha medicinal, avanço cultural que nem mesmo o governo primitivo de Donald Trump conseguiu barrar.

Outra droga que deverá ganhar atenção nos EUA é a ibogaína, por seu potencial para ajudar a domar a epidemia de mortes de dependentes de opioides, que poderá chegar a 100 mil vítimas em 2021. Originária do ritual Bwiti no Gabão e outros países da África, a substância já é usada em poucos centros da Costa Rica e do Brasil, por exemplo, que conseguem autorizações excepcionais para administrar o alucinógeno a drogadictos e o fazem sob controle de médicos, uma vez que pode desencadear arritmias cardíacas.

Um indício forte de que arrefece o preconceito contra psicodélicos como a ibogaína está no interesse que despertam entre investidores e, por extensão, nas publicações dirigidas a homens de negócio, como a agência Bloomberg. A droga é tratada de forma respeitosa em vídeo recente de sua série Moonshot, que já tinha 27 mil visualizações na segunda-feira (1º/2).

Um dos espectadores, identificado como CryptoMilitary Vet, comentou: “Psicodélicos me curaram de todas as minhas dependências, TEPT, e me mostraram que esta é a minha realidade e que a controlo por escolha. O passado só dói se eu permitir, mas eu sei que ele não existe mais, e assim me curei”.

A ciência brasileira tem a sorte de contar não só com grupos de pesquisa experimentados na pesquisa de psicodélicos –na UFRN, na UFRJ, na USP e na Unicamp, por exemplo—mas também com uma origem nos estudos sobre ayahuasca (DMT), de uso religioso autorizado. Os rituais tradicionais oferecem uma moldura de segurança para o consumo dessa droga poderosa, o setting acolhedor que as psicoterapias em teste se empenham em reproduzir com a decoração de ambientes e música suave.

Essa linhagem garante que pesquisadores como Sidarta Ribeiro (Instituto do Cérebro da UFRN) e Stevens Rehen (UFRJ/IDOR) cultivem o respeito por tradições xamânicas. Eles combatem a noção de que bastam as moléculas para obter efeito terapêutico, visão farmacológica reducionista compartilhada entre alguns pesquisadores.

“O trabalho mais difícil é o de encontrar com a dor do outro”, disse Sidarta quinta-feira (28/1) numa transmissão ao vivo do Instituto Phaneros com Stevens. “Quem sabe de settings não são os psiquiatras, mas sim os xamãs, que estão fazendo psicoterapia psicodélica há muito tempo. Precisamos ter delicadeza e cuidado com a experiência das pessoas. O ambiente hospitalar pode ser um problema.”

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Startup levanta R$ 123 mi para explorar veneno de sapo contra depressão https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/#respond Thu, 14 Jan 2021 10:05:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bufo-alvarius-CC-HolgerKrisp-300x208.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Numa segunda rodada com investidores, a startup Beckley PsyTech obteve £ 14 milhões (R$ 101 milhões) para realizar testes clínicos com a substância psicodélica 5-metoxi-DMT (5-MeO-DMT). O recurso se soma a £ 3 milhões (R$ 22 milhões) angariados em junho pela empresa do Reino Unido, surgida há cinco anos com pedigree dourado.

À frente da companhia de olho no veneno de sapo, como é conhecida a 5-MeO-DMT, está Cosmo Feilding Mellen, 35. Apesar da pouca idade, o rapaz tem larga experiência com psicodélicos –drogas que, como ele próprio diz, são usadas algumas há milhares de anos, ainda que seu plano de negócios não preveja compensações para povos tradicionais que as legaram para a ciência contemporânea.

A 5-MeO-DMT está presente na secreção das glândulas do sapo-do-rio-colorado, Bufo alvarius ou Incilius alvarius. Aspirar o vapor da droga, que é ilegal na maioria dos países, produz uma curta e radical viagem, muitas vezes descrita como uma sensação de morte. Após a experiência com 5-MeO-DMT, decaem indicadores de depressão, ansiedade e estresse, resultado que se mantém quatro semanas depois, de acordo com estudo recente.

Cosmo é filho de Amanda Feilding, criadora da Beckley Foundation, uma espécie de ONG que há 22 anos incentiva e financia projetos de ciência psicodélica e de reforma de políticas públicas sobre drogas. A condessa aparece como coautora de vários estudos que patrocinou no chamado renascimento psicodélico, mas agora decidiu que precisa de lucros para a empreitada de transformar esses compostos em remédios convencionais licenciados.

Cosmo Feildiong Mellen e Amanda Feilding, nos jardins de Beckley Park, nos arredores de Oxford, Reino Unido (Divulgação Beckley PsyTech)

“Minha mãe criou a Beckley Foundation em 1998. Sempre estive pesadamente envolvido com o tema da ciência psicodélica, cercado por esse tema, essa paixão”, conta Cosmo. “Tive a felicidade de crescer na companhia de figuras como Sasha Shulgin e Rick Doblin. Fui voluntário em vários testes no Imperial College, por exemplo para tomada de imagens do cérebro sob psilocibina.”

Alexander “Sasha” Shulgin é figura lendária no panteão psicodélico. Autor de livros como “Pihkal – Uma história de amor químico” e “Tihkal – A Continuação”, ambos com a mulher Ann, Shulgin sintetizou e experimentou com amigos dezenas de compostos psicodélicos, tema das duas obras. O farmacologista, apontado como redescobridor do ecstasy (MDMA), morreu em 2014.

Rick Doblin está à frente da iniciativa mais avançada para sacramentar um psicodélico como medicamento, o próprio MDMA de Shulgin. O ex-hippie e objetor de consciência que temia ser convocado para a guerra do Vietnã escolheu para o teste de fogo um composto que não engendra visões (razão pela qual o ecstasy não é considerado um psicodélico clássico) e uma condição típica de veteranos militares, o transtorno de estresse pós-traumático, numa estratégia esperta para vencer as resistências a psicodélicos.

Cinco anos atrás, com o crescimento do interesse de investidores na indústria de cânabis medicinal e psicodélicos, Amanda e Cosmo se lançaram a criar um braço da Beckley com fins lucrativos para continuar o trabalho da família, a fim de aumentar a escala e a ambição do que Amanda tentava fazer há cinco décadas.

“Basicamente, [queremos] aproveitar a oportunidade de nos tornarmos um farol, uma empresa ética fazendo coisas realmente boas”, afirma o CEO da PsyTech. “O objetivo é desenvolver psicodélicos como uma nova classe de medicamentos neuropsiquiátricos e tratar dessa necessidade de saúde [transtornos mentais como depressão] que rapidamente está se tornando o maior peso sobre o mundo.”

Mãe e filho não brincam em serviço. Buscaram na Johnson & Johnson duas pessoas experimentadas no desenvolvimento e autorização de fármacos: Steve Wooding (diretor científico da nova companhia) e Fiona Dunbar (assessora-chefe de medicina).

Como consultores, Cosmo e Amanda alistaram duas celebridades da nova neurociência: Robin Carhart-Harris, do Imperial College, e Matt Johnson, da Universidade Johns Hopkins. Não por acaso, as duas instituições acadêmicas foram pioneiras na abertura de centros de pesquisa psicodélica, elas mesmas envolvidas em ensaios clínicos com a psilocibina dos “cogumelos mágicos” para tratar vários transtornos mentais.

Segundo Cosmo, esse time analisou várias possibilidades de inovação, diante do que outros grupos estão investigando, e se fixou na 5-MeO-DMT como candidata a antidepressivo. A principal vantagem do composto batráquio é induzir uma alteração da consciência que dura uma hora ou menos, o que diminuiria de modo acentuado os custos da psicoterapia assistida por psicodélicos como LSD e psilocibina, que na configuração atual exigem acompanhamento de uma dupla de terapeutas por longos períodos.

“Dois terapeutas sentados com o paciente por 6-8 horas é uma alocação de recursos enorme para o paciente, vai ser difícil de disseminar e sairá caro, também”, pondera Cosmo. “O que sabemos sobre 5-MeO-DMT é que induz confiavelmente o tipo de experiência de dissolução do ego sabidamente correlacionada com resultados positivos de tratamento, mas com duração do efeito da droga abaixo de uma hora.”

O CEO não cogita patentear 5-MeO-DMT. A propriedade intelectual faz parte de seu modelo de negócios, mas essas drogas são substâncias conhecidas, algumas usadas há milhares de anos e sobre as quais muitas pessoas já escreveram –não são patenteáveis.

“Não é o mesmo que um desenvolvimento farmacêutico clássico. Haverá propriedade intelectual na criação de novos e inventivos passos de tratamento médico, na formulação, na aplicação, no modelo terapêutico.”

Cosmo não prevê, entretanto, compensação para povos tradicionais que preservaram o conhecimento sobre essas substâncias, uma das preocupações entre estudiosos do fenômeno cultural psicodélico. A PsyTech dedica uma parte da receita para a parceira estratégica Beckley Foundation, que não tem fins lucrativos: “Eles estão envolvidos em muitas atividades filantrópicas, de pesquisa a políticas públicas. É aí que focalizamos nossa responsabilidade social”, justifica.

O sigilo comercial impede no momento divulgar quais equipes conduzirão os testes clínicos de fase 1 e 2 (segurança, dosagem e evidência inicial de eficácia) com o veneno de sapo. A empresa só confirma que os ensaios serão realizados no Reino Unido tanto por parceiros acadêmicos quanto empresariais.

A Beckley Foundation lista pesquisadores brasileiros entre seus colaboradores, como os que atuam no Instituto do Cérebro da UFRN, no Institudo D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), na UFRJ e na Unicamp. Cosmo, que também tem alguma ligação com o Brasil –foi o diretor da versão para língua inglesa do documentário de Fernando Grostein Andrade “Quebrando o Tabu” (2012), sobre política de drogas– diz que a empresa Beckley PsyTech não tem planos concretos de parcerias por aqui.

Cosmo Feilding-Mellen, CEO da empresa Beckley PsyTech (Divulgação Beckley PsyTech)

Além do veneno de sapo, a empresa investe num programa de desenvolvimento de fármacos, novas entidades químicas baseadas no que se sabe sobre os psicodélicos existentes. A proposta é alterar as moléculas de maneira a melhorar os resultados clínicos ou a segurança.

Pergunto se a ideia seria retirar delas o efeito psicodélico propriamente dito, o que se chama de dissolução do ego ou experiência mística. Cosmo: “Não. Certamente não apenas nessa direção, de todo modo. Eu acredito que a experiência subjetiva é uma parte importante da eficácia do tratamento. Mas será interessante ver o que virá da ciência, de outras escolas de pensamento”.

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