Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Empresa anuncia resultados de maior teste de psilocibina para depressão https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/empresa-anuncia-resultados-de-maior-teste-de-psilocibina-para-depressao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/empresa-anuncia-resultados-de-maior-teste-de-psilocibina-para-depressao/#respond Tue, 09 Nov 2021 21:10:07 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/COMPASSpacienteFalso-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=743 A empresa britânica Compass Pathways divulgou nesta terça-feira (9) resultados preliminares do maior ensaio clínico sobre psicoterapia com psilocibina para depressão resistente a tratamento. Concluíram o estudo 209 dos 233 pacientes recrutados em centros de dez países (EUA e Europa).

O anúncio da Compass, firma envolta em controvérsias, veio por comunicado a investidores e à imprensa, e não por publicação em periódico científico após análise crítica de especialistas (“peer review”). Não por acaso, foi feito no mesmo dia em que a empresa publicou resultados financeiros do terceiro trimestre de 2021.

No teste, os pacientes foram alocados em três grupos, que receberam 25mg, 10mg ou 1mg, respectivamente, da substância originalmente obtida de cogumelos ditos “mágicos”. O objetivo deste ensaio de fase 2 era estabelecer a dose ótima para o teste clínico de fase 3 que a Compass pretende iniciar em 2022 para obter aprovação do tratamento talvez já em 2024.

O comunicado destaca que 36,7% dos participantes no grupo de 25mg tiveram resposta positiva após três semanas, ou seja, diminuição de sintomas de depressão grave na escala padronizada MADRS. Em comparação, entre os que tomaram a dose quase inócua de 1mg, apenas 17,7% tiveram a mesma resposta, uma diferença estatisticamente significativa.

Mais ainda, 29,1% estavam em remissão no primeiro contingente, contra 7,6% no segundo. Para a dose intermediária (10mg), não se obtiveram resultados com diferenças estatisticamente relevantes.

“Este é um momento importante e animador para a comunidade de cuidados com saúde mental”, disse no comunicado da Compass o neurocientista Robin Carhart-Harris, estrela da ciência psicodélica que se mudou do Imperial College de Londres para a Universidade da Califórnia em São Francisco. Carhart-Harris esteve à frente de dois estudos pioneiros de psilocibina para depressão, no Imperial College, o primeiro sem grupo de controle e o segundo, publicado em abril, comparando-a com o antidepressivo escitalopram (Lexapro).

“[O estudo da Compass] se apoia sobre mais de duas décadas de pesquisa a respeito da viabilidade de compostos psicodélicos para tratar condições de saúde mental e demonstra o potencial que têm para ajudar pessoas que vivem com depressão resistente [a tratamento]. É encorajador ver como progrediu esse campo nos últimos 20 anos, e estou na expectativa pela continuação a pesquisa.”

Sala preparada para psicoterapia assistida por psilocibina (Divulgação/Compass Pathways)

Nove entre dez registros de efeitos adversos durante o experimento foram considerados leves, como dores de cabeça, náuseas, insônia e fadiga. Mas houve 12 pacientes com colaterais mais sérios, como ideações e comportamentos suicidas –ocorrências nada incomuns nesses pacientes, pois até um terço dos 100 milhões de indivíduos no mundo com depressão resistente tentam suicidar-se ao menos uma vez na vida.

A Compass enfrenta resistência de parte da comunidade psicodélica por seu modelo de negócios baseado em propriedade intelectual sobre o poder curativo de uma substância em uso há séculos por comunidades tradicionais e clínicas alternativas. Os adeptos da modalidade de ciência aberta questionam as cinco patentes já concedidas à empresa nos EUA.

Criou-se até um portal com informações para municiar escritórios nacionais de propriedade intelectual (Porta Sophia), na expectativa de que seus funcionários reconheçam a falta de ineditismo. No estado americano de Oregon, a psicoterapia assistida por psilocibina está em fase de regulamentação, sem esperar pela aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA).

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Esquenta debate sobre a bagagem mística da ciência psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/13/esquenta-debate-sobre-a-bagagem-mistica-da-ciencia-psicodelica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/13/esquenta-debate-sobre-a-bagagem-mistica-da-ciencia-psicodelica/#respond Mon, 13 Sep 2021 12:20:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Misticismo-300x151.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=608 Um ateu não militante, que respeita quem acredita e não tenta convencer ninguém do contrário, com frequência enfrentará dificuldade diante dos ecos do misticismo que reverberam no pavilhão do renascimento psicodélico. Sempre que ciência e metafísica se misturam, a primeira sai perdendo.

Foi uma satisfação, assim, topar com o artigo “Indo além do Misticismo na Ciência Psicodélica”, de James Sanders e Josjan Zijlmans, na ACS Pharmacology & Translational Science. Poucas vezes um resumo (abstract) desencadeou premonição tão forte de comunhão intelectual:

“A moldura do misticismo é usada para descrever experiências psicodélicas e explicar os efeitos de terapias psicodélicas. Discutimos riscos e dificuldades provenientes do uso científico de uma moldura associada com sistemas de crenças sobrenaturais ou não empíricas e encorajamos pesquisadores a mitigar esses riscos com um modelo desmistificado do estado psicodélico”.

Quem acompanha este blog sabe o quanto incomoda esse enquadramento místico, posto em questão aqui e aqui. Naqueles dois posts ficou claro que a associação também inquieta alguns especialistas do campo que se reabilita após décadas no limbo imposto pela Guerra às Drogas iniciada nos anos 1970.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

No centro do debate retomado por Sanders e Zijlmans há mais que esoterismo hippie e abertura das portas da percepção para realidades alternativas à estreiteza do American Way of Life que a indústria cultural espalhava pelo mundo –daí a contracultura. Nada há de errado nesse anseio por transcendência, mas o pressuposto de que drogas psicodélicas como o LSD de fato a propiciem oferece uma base pouco sólida para sua recondução à farmacopeia autorizada na saúde mental.

“Há um elefante na sala da moderna ciência psicodélica”, alerta o artigo: “Em periódicos científicos e pelos salões de toda conferência psicodélica, pesquisadores e terapeutas ensinam a importância das experiências místicas para a eficácia de terapias psicodélicas”.

Com efeito, quem já usou psicodélicos percebe bem como é tentador resvalar no vocabulário religioso, ou quase, quando se tenta descrever o estado intermediado por eles. A percepção de que algo importante está para acontecer, de estar na iminência de compreender significados elusivos, paz, tranquilidade, empatia, sensação de unidade com a natureza ou o cosmo, perda de referência no tempo e no espaço podem ser facilmente interpretadas como acesso a uma realidade última, superior, contato com o divino, com o domínio sagrado, e assim por diante.

Os problemas começam quando pesquisadores presumem ser possível medir, mais que descrever, essas vivências subjetivas e correlacionar sua intensidade mística com mudanças positivas de atitude e comportamento, como fez Roland Griffiths em 2006 num artigo famoso. Desenvolveu-se um questionário de experiência mística (MEQ, na abreviação em inglês), muito usado em estudos psicodélicos, inclusive no Brasil.

Ao aplicar o MEQ, o pesquisador pede que o participante indique seu grau de concordância ou discordância com frases como “tive uma experiência em que algo maior que eu parecia absorver-me” ou “nunca tive uma experiência na qual me sentisse como se todas as coisas estivessem vivas”. Na parte que avalia a qualidade religiosa da experiência, o vocabulário é explícito: “sagrado”, “divino”, “santo” etc.

Para Sanders e Zijlmans, isso faz pouco sentido quando se trata de medir fenômenos psicobiológicos, tal como se espera de cientistas naturais. Pior, o próprio instrumento enviesa as respostas ao fornecer para participantes a moldura conceitual e a terminologia para descrever vivências que lhes parecem quase impossíveis de pôr em palavras.

“O problema é exacerbado quando fenômenos de experiência mística são aglomerados com crenças místicas sobre o que experiências psicodélicas significam”, escrevem os pesquisadores da Universidade de Amsterdã. “Vemos evidência disso no ambiente cultural psicodélico do presente: serviços de retiro psicodélico e páginas de orientação psicodélica populares na rede estão usando a pesquisa científica para educar usuários iniciantes de psicodélicos sobre o poder terapêutico de experiências místicas.”

Sanders e Zijlmans argumentam que a integração de misticismo na pesquisa e na prática clínica arrisca criar expectativas e associações irrealistas e potencialmente problemáticas quando apresentada para leigos, incluindo grupos vulneráveis em busca de psicodélicos para problemas sérios de saúde mental.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Seu desafio aos pesquisadores da área indica a necessidade de criar um modelo descritivo, baseado na neurociência cognitiva, que prescinda da terminologia mística ou religiosa e permita medir aspectos da experiência psicodélica que possam ser correlacionados com ganhos terapêuticos, ou até mesmo explicá-los. Um dos caminhos seria a teoria do cérebro entrópico proposta por Robin Carhart-Harris, de quem se podem ouvir explicações em linguagem comum neste podcast (em inglês).

Não vai ser fácil, mas a ciência existe precisamente para isso –dar conta do que não está imediatamente acessível aos nossos sentidos, conceitos e palavras. Com respeito às últimas, confesso que não foi nada trivial escrever sobre minhas próprias viagens, no livro “Psiconautas”, em termos desprovidos de bagagem mística, como convém a um ateu. É praticamente inescapável falar em “inefabilidade”.

Não sendo militante da descrença, respeitei, e talvez até tenha invejado, a rapidez com que entrevistados tomavam outro rumo. Há algo de profundamente poético em seu esforço de atribuir os mistérios da mente a poderes superiores, e a devida apreciação estética está na raiz de todas as formas de reverência. Mas há grandeza também na contemplação metódica de fatos, fenômenos e mensurações, como prescreve a ciência.

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Sai publicado 1º teste clínico de fase 3 com tratamento psicodélico https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/sai-publicado-1o-teste-clinico-de-fase-3-com-tratamento-psicodelico/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/sai-publicado-1o-teste-clinico-de-fase-3-com-tratamento-psicodelico/#respond Mon, 10 May 2021 21:52:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/NatMedMDMA-230x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=464 Esta segunda-feira (10) entrará para a história do renascimento psicodélico como data marcante: o periódico científico Nature Medicine publicou artigo pioneiro registrando resultados do primeiro ensaio clínico de fase 3 de uma substância alteradora de consciência (MDMA) para tratar uma condição mental grave, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

É o último passo das pesquisas acadêmicas para aprovar o novo tratamento. Só falta agora a análise dos dados de outros experimentos semelhantes por agências reguladoras, que já se encontra em curso.

Até aqui, só haviam sido concluídos e publicados estudos de fase 1 e 2, como os realizados sobre depressão tratada com ayahuasca, no Brasil, ou psilocibina de cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe, no exterior.

O trabalho na Nature Medicine teve liderança da pesquisadora Jennifer Mitchell, da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF). É um dos braços do estudo multicêntrico capitaneado pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), do incansável Rick Doblin.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Como já apareceu mais de uma vez neste blog e em reportagens da Folha, esse estudo da Maps é o que se encontra mais perto de reentronizar os psicodélicos no rol de medicamentos para a psiquiatria e a psicoterapia. A agência americana de fármacos FDA abriu-lhe uma via rápida de licenciamento, por seu potencial para curar ou pelo menos melhorar a vida de quem sofre com TEPT, tormento muito comum entre veteranos de guerra americanos e vítimas de abuso sexual.

Esses compostos já frequentaram o campo terapêutico, especialmente LSD, psilocibina e MDMA, nas décadas de 1950 e 1960. Mas foram banidos da academia nos anos 1970-80 pela reação conservadora nos EUA contra a contracultura e movimentos sociais associados, como o de direitos civis ou contra a Guerra do Vietnã.

O MDMA, base da droga recreativa conhecida como ecstasy, Michael Douglas, molly ou balinha, não é a rigor um psicodélico clássico como mescalina e LSD, por não desencadear efeitos visuais (mirações, alucinações). Mas é um poderoso empatógeno, ou seja, estimula a empatia com terceiros e com o próprio sujeito, o que favorece elaborar psiquicamente os traumas num processo terapêutico.

Participaram do ensaio clínico da UCSF 90 voluntários, metade dos quais foi sorteada para tomar placebo (no esquema conhecido como teste randomizado duplo-cego controlado). No instrumento mais usado para diagnosticar e mensurar sintomas de TEPT, Caps-5, o grupo que tomou MDMA, após dois meses de acompanhamento, teve redução mediana de 24,4 pontos na escala de 80, contra 11,9 de quem tomou placebo –diferença estatisticamente significativa.

Não se trata de uma pílula que se toma regularmente, como antidepressivos convencionais. Tratamentos psicodélicos experimentais envolvem processos de psicoterapia com várias sessões, além daquelas em que a pessoa toma a droga e é acompanhado por várias horas de “viagem” por uma dupla de terapeutas especialmente treinados. No caso do experimento da UCSF, foram ao todo 12 sessões.

“Em resumo, a terapia assistida por MDMA induz ocorrência rápida de eficácia de tratamento, mesmo para aqueles com TEPT grave”, concluem os autores do teste clínico. “Comparada com as atuais terapias de primeira linha, farmacológicas e comportamentais, a terapia assistida por MDMA tem potencial para transformar dramaticamente o tratamento de TEPT e deveria ser avaliada aceleradamente para uso clínico.”

Quem está habituado com literatura biomédica sabe que conclusões assim contundentes são raras nesse tipo de prosa, sempre cheia de dedos. Tanto o emprego desse palavreado quanto sua aceitação pelos editores da Nature Medicine dão indicação da confiança dos pesquisadores na aprovação pela FDA.

Espera-se que a estrela do renascimento psicodélico termine autorizada pela agência em 2022 ou 2023. Virá em boa hora, se vier, para minorar a epidemia de tristeza e luto na esteira da Covid-19.

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Psicodélico empata com antidepressivo e pode ganhar partida nos pênaltis https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/#respond Wed, 14 Apr 2021 21:00:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/DepressaoLeticiaMoreiraFolhapress-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=411 Apoio científico importante para o renascimento psicodélico sai nesta quarta-feira (14) no New England Journal of Medicine (NEJM), o periódico médico mais lido e citado no mundo: em confronto direto com o antidepressivo escitalopram (Lexapro), o psicodélico psilocibina demonstrou bom desempenho ao reduzir sintomas de depressão.

Poucas pessoas não conhecem alguém tratado com escitalopram ou outro remédio para depressão. É o mal psíquico do século 21, agravado agora pelo flagelo da Covid-19, e pelo menos um terço dos deprimidos não se dá bem com esses medicamentos, os modernos inibidores seletivos de reabsorção de serotonina (ISRS).

Um empate estatístico como o descrito no NEJM já seria grande notícia para substâncias psicodélicas, ora em vias de retornar à farmacopeia da psiquiatria. O autor principal do artigo do Imperial College de Londres, no entanto, vai além e indica que o composto dos “cogumelos mágicos” se sai melhor na disputa dos pênaltis, por assim dizer.

A metáfora futebolística cai bem para descrever a interpretação apresentada em tuítes, nos últimos dias, por Robin Carhart-Harris. Estrela da vanguarda psicodélica, ele acaba de ter seu passe comprado do Imperial pela Universidade da Califórnia em São Francisco, cujo centro de neurociência Neuroscape criou para Carhart-Harris a cátedra Ralph Metzner, dotada com US$ 4 milhões (quase R$ 23 milhões).

RCH parece querer evitar a conclusão de que seu estudo apresenta uma conclusão desfavorável para a psilocibina, substância originalmente extraída de fungos do gênero Psilocybe (em testes clínicos se usam fórmulas sintéticas). Isso porque o artigo na NEJM deixa claro que o desfecho (resultado) principal buscado na investigação com 59 voluntários portadores de depressão moderada não produziu diferença estatisticamente significativa entre o psicodélico e o escitalopram.

Três dezenas de participantes caíram no grupo que recebeu a psilocibina, e os outros 29 tomaram o antidepressivo. No primeiro caso, duas doses de 25 mg do psicodélico separadas por 21 dias, mais seis semanas de placebo; no outro, doses inócuas de psilocibina (1 mg) no mesmo intervalo e seis semanas de escitalopram.

Todos os 59 desconheciam qual dose de psilocibina ingeriam (assim como os experimentadores). E todos foram submetidos a várias sessões de orientação, psicoterapia e monitoramento de efeitos adversos ou sintomas depressivos ao longo das nove semanas de duração do experimento.

Observou-se melhora nos dois contingentes de voluntários, com base na escala de depressão QIDS-SR-16, que tem um máximo de 29 pontos –quanto mais pontos, pior o transtorno. O grupo da psilocibina partiu de um escore mediano de 14,5 e perdeu 8 pontos (redução de 55%); entre os que tomaram escitalopram, a pontuação inicial foi de 16,4 e a redução, de 6 pontos (-37%). Pelo desenho estatístico, a divergência não se provou significativa.

As conclusões do artigo são bem cuidadosas: “Com base na mudança em escores de depressão na QIDS-SR-16 na sexta semana, este ensaio não mostrou uma diferença significativa em efeitos antidepressivos entre psilocibina e escitalopram num grupo selecionado de pacientes”, advertem os autores.

Eles ressalvam que “desfechos secundários [outras escalas padronizadas sobre bem-estar etc.] em geral favoreceram a psilocibina sobre o escitalopram”. RCH e colaboradores, entre eles a farmacologista brasileira Bruna Giribaldi, recorrem à fórmula típica de artigos médicos para sinalizar cautela: “Ensaios maiores e mais longos são necessários para comparar psilocibina com antidepressivos estabelecidos”.

Em contato por email com o blog, o neurocientista britânico revelou que, pessoalmente, não tem planos de empreender novos estudos sobre depressão na Califórnia. Não deixa de ser curioso, tendo em vista que seu time no Imperial foi um dos pioneiros em investigar psilocibina para depressão, com trabalho publicado em 2016.

Na mesma mensagem RCH ofereceu uma interpretação mais positiva dos resultados que a apresentada no artigo. “O [desfecho] primário falhou, mas os secundários todos mostraram significativa superioridade em favor da psilocibina, [algo] bem notável, eu diria”, comentou. “Suspeito que o [desfecho] primário falho seja um falso negativo, em face do panorama mais amplo.”

Dráulio de Araújo, físico neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do primeiro estudo no mundo a comparar o efeito antidepressivo de um psicodélico (ayahuasca) contra placebo, saudou o artigo na NEJM como um marco para a ciência psicodélica –isso apesar de o trabalho britânico não incluir grupo de controle com placebo.

“Considero o estudo muito bem-conduzido, embora com o desenho metodológico um pouco complicado, que parece favorecer o escitalopram –e mesmo assim o efeito robusto da psilocibina se mantém”, disse o pesquisador da UFRN, que planeja comparar o efeito antidepressivo da ayahuasca com o anestésico cetamina. “É um dado surpreendente.”

Com Araújo concorda o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seu coautor no trabalho sobre ayahuasca. “O fato de a resposta ter sido a mesma no desfecho primário para um antidepressivo que é reputado entre os melhores dos ISRS é um feito e tanto para a psilocibina”, avalia.

“Considerando o preconceito que a terapia baseada em psicodélicos sofreu ao longo de décadas, empatar com um tratamento consolidado é uma vitória não desprezível.”

Para o psiquiatra, o ideal seria que o estudo tivesse um terceiro braço, com apenas uma dose irrisória de psilocibina e placebo (sem psilocibina e sem escitalopram). Também há a desvantagem de o estudo ser relativamente curto: “Não sabemos quanto os efeitos antidepressivos de um lado e do outro se sustentariam, se ampliariam ou se reduziriam”, ressalva. “A depressão é um mal crônico, e essa não é uma informação desprezível.”

“Ainda assim, o estudo é alvissareiro para as potencialidades abertas pela psiquiatria psicodélica. Sobre os desfechos secundários, embora sistematicamente eles tenham sidos melhores para o grupo da psilocibina, o próprio estudo pede que eles sejam desconsiderados, pois não foi possível fazer o cálculo estatístico.”

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo.

 

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Universidade da Califórnia tem doação de US$ 6,4 mi para estudar psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/universidade-da-california-tem-doacao-de-us-64-mi-para-estudar-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/universidade-da-california-tem-doacao-de-us-64-mi-para-estudar-psicodelicos/#respond Wed, 31 Mar 2021 19:34:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/neuroscape-239x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=394 O entusiasmo acadêmico com o chamado renascimento psicodélico ganhou adesão de peso nesta terça-feira (30): a Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF) criou uma divisão só para pesquisar essas drogas em seu centro de neurociência Neuroscape.  O financiamento inicial, obtido com doações privadas, é de US$ 6,4 milhões (cerca de R$ 36 milhões).

Parte desse valor, US$ 4 milhões, se destina à nova cátedra Ralph Metzner de Neurologia e Psiquiatria. Para ela foi designado, como diretor-fundador da divisão, o neurocientista britânico Robin Carhart-Harris, hoje a face mais conhecida desse campo de pesquisa biomédica voltado a encontrar alternativas para a psiquiatria tratar transtornos mentais como depressão.

Carhart-Harris deixa a direção do pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres, aberto em 2019 com dotação privada similar à que o atrai agora para a Califórnia. O pesquisador se notabilizou por imagens do cérebro de voluntários sob efeito de LSD e psilocibina, substância psicoativa de cogumelos que o Imperial College mostrou em estudo preliminar ser eficaz contra depressão.

Perguntei por email a Carhart-Harris sobre a razão de interromper a carreira no Imperial, pelo qual publicou mais de uma centena de artigos científicos em 11 anos. “Muito bem-sucedida, sim, mas menos em termos de promoção na carreira”, respondeu o neurocientista. “Ofereceram-me algo incrível na UCSF, a cátedra com dotação sendo particularmente atraente.”

“Ainda tenho estudos importantes em curso no Imperial, mas espero produzir neurociência realmente bacana, ciência interdisciplinar entre medicina e tecnologia, na UCSF. A expertise em tecnologia do Neuroscape é particularmente animadora. Ah, sim, e o tempo na área leste da baía [de São Francisco], onde pretendemos nos estabelecer!”

O Imperial puxou uma fila que não cessa de aumentar. Em seguida viria o Centro para Pesquisa de Psicodélicos e Consciência da Universidade Johns Hopkins, o mais bem-dotado (US$ 17 milhões). Depois, a Universidade de Nova York (NYU), os hospitais Mount Sinai e MassGeneral/Harvard.

Hospital Mount Sinai em Nova York (REUTERS/Mike Segar)

A doação para a cátedra Metzner homenageia o companheiro de Timothy Leary e Richard Alpert no Projeto Psilocibina, criado em 1960 para estudar psicodélicos na mesma Universidade Harvard que agora retoma o veio de pesquisa. O grupo controverso acabou expulso da universidade, e Leary se tornou a partir daí o “guru do LSD” e inimigo número 1 na Guerra às Drogas deflagrada em 1971 por Richard Nixon, que lançou os psicodélicos no ostracismo.

Os US$ 4 milhões doados à vaga aberta para Carhart-Harris na UCSF partiram de outras figuras polêmicas, Ekaterina Malievskaia e George Goldsmith, da empresa Compass Pathways. A companhia realiza testes clínicos para obter para obter aprovação da psilocibina no tratamento de depressão e atua agressivamente para patentear o uso do psicodélico em terapia.

“Como um dos destacados cientistas desta geração, estamos satisfeitos que Robin Carhart-Harris seja o primeiro beneficiário dessa cátedra. Estamos confiantes de que ele e a equipe do Neuroscape continuarão avançando a inovação para transformar o cuidado em saúde mental”, declarou Goldsmith.

Robin Carhart-Harris (Divulgação)

“Nossos generosos financiadores estão tornando possível um grande salto à frente na geração de eficácia e segurança clínica para indivíduos no uso de psicodélicos para tratar uma ampla gama de condições de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade, TEPT [transtorno de estre pós-traumático] e dependência química”, afirmou em comunicado da UCSF Adam Gazzaley, diretor do Neuroscape, a unidade interdisciplinar que se dedica a aproximar a neurociência da tecnologia.

A nova divisão da UCSF no Neuroscape atuará no que se diagnosticou como carência de estudos para otimizar a administração de psicodélicos, uma vez que os testes clínicos preliminares até aqui só teriam focalizado sua comparação com placebo. A ideia é monitorar dados fisiológicos, neurológicos e psicológicos para determinar a influência de vários fatores sobre o resultado terapêutico, como condições prévias do paciente, ambiente de terapia, decoração, música etc. –o que na literatura psicodélica ficou conhecido como set e setting.

“Essa pesquisa nos permitirá entender se um tratamento particular está bem adequado a um indivíduo, monitorando em tempo real como uma experiência [psicodélica] se desenrola”, disse no comunicado Jennifer Mitchell, professora da UCSF que lidera ensaios sobre MDMA (ecstasy) para tratar TEPT. “Nós miramos em ajustar dinamicamente elementos chave do contexto de uma maneira que guie os pacientes a uma experiência otimizada, assim maximizando benefícios positivos sustentáveis, de longo prazo.”

As principais instituições acadêmicas do mundo surfam a onda psicodélica com dedicação. Já o Brasil, que tem tradição pioneira de pesquisa com ayahuasca e figura entre os três países com estudos de maior impacto na área, atrás só de EUA e Reino Unido, está ficando para trás.

Por mais improvável que pareça durante um governo retrógrado como o de Jair Bolsonaro, a pergunta do primeiro post deste blog se mantém: quando o país vai abrir seu centro de pesquisa psicodélica? Onde estão os investidores brasileiros visionários o bastante para não se acomodar diante do obscurantismo?

Para quem quiser mais, em maio darei um curso sobre o renascimento psicodélico na plataforma Bora Saber:

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Brasil é 3º país com mais artigos de impacto sobre psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/#respond Tue, 09 Feb 2021 14:44:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/FernandaPalhanoFontesFotoDeAnastaciaVazUFRN-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=311 Pesquisadores brasileiros e a ayahuasca ocupam posição invejável num campo de estudo em crescimento acelerado, o chamado renascimento psicodélico, que ganhou impulso após 2010. Segundo ranking publicado na última quarta-feira (3), o Brasil é o terceiro país que mais produz estudos de impacto, atrás somente dos EUA e do Reino Unido.

O levantamento de David Wyndham Lawrence saiu no Journal of Psychoactive Drugs. Ele montou duas listas de artigos sobre LSD, psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), DMT (da ayahuasca), mescalina (do cacto peiote) e 5-MeO-DMT (do sapo-do-rio-colorado) –classificados como psicodélicos clássicos, que atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina.

A primeira lista traz os 50 trabalhos sobre o assunto que foram mais citados na literatura científica desde 1957, ano de um trabalho de Julius Axelrod sobre LSD que colecionou desde então 154 menções de outros especialistas. O campeão é Stephen Peroutka, com estudo de 1979 sobre LSD e receptores de serotonina detentor de 1.557 citações.

A segunda relação contém artigos com as maiores taxas anuais de citação, uma maneira de descontar a vantagem numérica conferida pela antiguidade. Nos dois casos, os rankings se limitam a 50 trabalhos cada um (77 ao todo, já que vários aparecem nas duas listas).

Lawrence dividiu os artigos em dois grupos temporais: uma primeira geração de 37 estudos em que predominavam investigações farmacológicas e observacionais, sobretudo sobre LSD; e a geração atual de trabalhos (40) com dominância de testes clínicos sobre efeitos terapêuticos em que se destaca a psilocibina. Após o primeiro pico de produção, 1965-75, a proibição de psicodélicos massacrou a pesquisa, que retornaria com força a partir de 2010.

(Reprodução/Journal of Psychoactive Drugs)

Na leva pioneira o Brasil nem aparece. Já na segunda figura em terceiro lugar com 5 artigos (12,5% do total), à frente da Suíça com 4 (10%). Em primeira colocação estão os EUA, com 15 (37,5%), seguido pelo Reino Unido, com 13 (32,5%). Ou seja, apenas quatro países reúnem 92,5% da produção científica mais relevante sobre psicodélicos.

Estudiosos brasileiros se destacam entre os artigos com maior taxa de citações, com Fernanda Palhano-Fontes na liderança. A engenheira de 35 anos especializada em imagens cerebrais atua no grupo do físico Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro e no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Palhano-Fontes é a primeira autora de um artigo pioneiro sobre tratamento de depressão resistente com ayahuasca noticiado em 2018 na Folha. O texto aparece em sexto lugar no ranking daqueles com maior média anual de citações, 38/ano; os cinco que o precedem marcam de 38,6 a 50,2 citações/ano.

Há bom motivo para um estudo de país relativamente periférico em pesquisa científica destacar-se assim: nunca antes um teste clínico randomizado duplo-cego controlado com placebo havia investigado o efeito terapêutico de um psicodélico (DMT) contra depressão.

Maceração do cipó-mariri, um dos ingredientes da infusão de ayahuasca (Marcelo Leite/Folhapress)

“Aparecer na 6ª posição desse ranking, ao lado de nomes tão importantes do campo da pesquisa psicodélicas, reafirma o valor do nosso trabalho, feito completamente no Brasil, e me estimula a continuar fazendo pesquisa de qualidade”, disse a pesquisadora da UFRN ao blog.

Palhano-Fontes se refere ao fato de dois dos quatro autores do levantamento no Journal of Psychoactive Drugs serem estrelas da neurociência psicodélica: Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, e Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Não por acaso eles parecem com quatro artigos cada um no ranking.

“Entre os ensaios clínicos que aparecem mais bem citados, o nosso é o único em que a ayahuasca foi investigada”, destaca a neurocientista da UFRN. “Isso mostra o potencial que temos no Brasil, uma vez que essa substância faz parte da cultura brasileira e tem seu uso religioso regulamentado aqui.”

A engenheira aparece com dois trabalhos no levantamento, o segundo também sobre ayahuasca, de 2015. Os outros três autores brasileiros citados também publicaram estudos sobre ayahuasca: Flávia Osório, Rafael Sanches e Rafael dos Santos, todos do grupo da USP de Ribeirão Preto liderado por Jaime Hallak, pioneiro na investigação de efeitos antidepressivos da ayahuasca e co-autor dos estudos na UFRN com Araújo, que trabalhou com Hallak na USP.

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‘Efeito comitiva’ distingue ayahuasca e cogumelos de outros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/#respond Sat, 06 Feb 2021 19:35:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/jaguve2horizontal-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=303 Muita gente sabe que o chá ayahuasca se prepara com duas plantas, o arbusto chacrona (Psychotria viridis) e o cipó-mariri ou jagube (Banisteriopsis caapi), mas não por que essa mistura é importante para seu poder psicodélico. Por trás de sua força está o “efeito comitiva” (entourage effect), sinergia entre substâncias vegetais que tornam o daime algo único entre compostos psicodélicos.

Eis aí um tema quente no panorama da neurociência dos produtos também chamados de “entactógenos”. Um exemplo da atenção que o assunto desperta está no artigo “O Papel da Ayahuasca no Efeito Comitiva e Depressão”, de José Alexandre Salerno, que apareceu em 28 de janeiro na Psychedelic Science Review.

Salerno faz doutorado com Stevens Rehen na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Rehen se destaca na neurociência brasileira pelo uso de organoides cerebrais (“minicérebros” construídos em laboratório a partir de células pluripotentes) para desvendar o perfil de ação de psicodélicos sobre tecidos neurais.

“Vejo muitos autores-cientistas escrevendo sobre a ayahuasca e seu potencial terapêutico, mas quase sempre restritos  às moléculas, sem dar muitas satisfações ao leitor sobre a complexidade da infusão”, diz Salerno,  “incluindo todos os aspectos socioculturais que poucos conhecem –o que é irônico, já que a ayahuasca foi testada em humanos como a infusão completa e natural.”

A alteração da consciência propiciada pela ayahuasca tem sua origem no composto n,n-dimetiltriptamina (DMT). Presente nas folhas da chacrona, a substância seria incapaz de ocasionar visões –as “mirações” de religiões ayahuasqueiras como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha– e a dissolução do ego características do efeito psicodélico ao ser ingerida sozinha, porque seria degradada no trato digestivo.

Folha de chacrona, Psychotria viridis (Marcelo Leite/Folhapress)

Para chegar ao cérebro, a DMT precisa da ajuda da harmina, uma das substâncias do grupo das betacarbolinas presentes no jagube. A harmina inibe a ação da enzima monoamina-oxidase (MAO) do estômago e do fígado, que sem o componente do cipó quebraria a DMT, impedindo sua difusão no organismo pela corrente sanguínea.

Essa parceria produtiva entre harmina e DMT é a base do que se convencionou designar como “efeito comitiva”, o entourage effect da expressão franco-anglo-saxônica (a harmina e demais betacarbolinas fazem mais, entretanto, como se verá adiante). A locução nasceu em 1998 para designar outro casamento feliz, desta vez entre componentes da maconha em sua interação com os receptores “promíscuos” para canabinoides no cérebro, na expressão do pioneiro em pesquisa com cânabis Raphael Mechoulam, do Instituto Weizman.

Plantação de maconha em clube de cultivo perto de Montevidéu, Uruguai (Danilo Verpa/Folhapress)

A primeira vez em que ouvi fala de efeito comitiva foi em palestra do neurocientista Sidarta Ribeiro na conferência Psychedelic Science de 2017, em Oakland (Califórnia). O pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) fez uma defesa ao mesmo tempo racional e apaixonada de produtos naturais, como variedades de marijuana com maiores ou menores teores relativos de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) e a própria ayahuasca.

Quase quatro anos atrás, ao responder uma questão da plateia em Oakland, Ribeiro disse desconhecer se o efeito comitiva também caracterizava um psicodélico natural muito popular, os cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe. Depois disso, explica agora, artigo de Barbara Bauer na mesma PSR descreveu a interação entre psilocibina e aeruginascina.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

“À medida que a gente começa a entender melhor essas substâncias e essas interações, a tendência é crescer essa lógica”, diz Ribeiro. “O conceito mais geral é que, quando se usa uma preparação com muitos análogos de uma mesma molécula-base, um padrão como no caso da serotonina, se alcance esse efeito de um ataque complexo a esse receptor, de maneira que ele nunca caminhe para a tolerância e para sua própria diminuição. Parece que isso começa a emergir como um princípio amplo.”

Na maconha e nos cogumelos, a comitiva de moléculas se apresenta naturalmente, mas não na ayahuasca, uma invenção humana. Nunca será possível saber de que povo nem quando surgiu a técnica de ferver os dois vegetais, mas a pesquisa vem demonstrando que os efeitos neurológicos da infusão parecem ir muito além da sinergia entre betacarbolinas e DMT que propicia a alteração da consciência e engendra as mirações.

No centro das atenções está a harmina. O grupo de Rehen na UFRJ e no Idor mostrou, com ajuda de organoides, ter ela mesma relação estreita com o fenômeno da neuroplasticidade que se postula estar por trás do potencial antidepressivo do daime.

Outro estudo de pesquisadores brasileiros e australianos, com Nicole Galvão-Coelho à frente, mostrou que os compostos presentes na ayahuasca também têm efeito anti-inflamatório, provável componente da depressão resistente a medicamentos. Seu grupo na UFRN mediu o nível da proteína C-reativa no sangue de pacientes que tomaram ayahuasca e verificou que eles tinham níveis diminuídos.

Proteína C-reativa, marcador de inflamação que tem baixa quantidade em quem toma ayahuasca

“A substância harmina é mais estudada na literatura científica do que a própria DMT, o psicodélico da infusão”, diz Salerno. “Sem querer roubar o protagonismo do psicodélico, acho importante a reflexão científica de que provavelmente a mistura complexa da ayahuasca vai muito além do que já conseguimos responder até hoje sob o rigor do método científico.”

O aluno de Rehen pondera que a ayahuasca já é considerada eficaz há milhares de anos por povos nativos. “Talvez falte diálogo da ciência biomédica com as sociais para que as razões dessa eficácia possam eventualmente ser respondidas pela ciência biomédica também.”

“Compostos isolados, e até os sintéticos, oferecem a grande vantagem do controle mais rigoroso, especialmente de qualidade, e tornam a proposta de terapia assistida com psicodélicos bem mais atrativa e comercializável pelas gigantes farmacêuticas. Mas talvez estejamos deixando escapar variáveis importantes ao considerar os compostos isolados.”

A defesa das comitivas naturais parece mais comum entre estudiosos de alteradores de consciência que os investigam também da perspectiva da fenomenologia, ou seja, com experiência própria. Eles costumam ainda dar reconhecimento a saberes ancestrais que legaram seu uso para a ciência.

No polo oposto da tensão que percorre a cena psicodélica ficam os psicofarmacólogos mais reducionistas. Seu feijão-com-arroz é isolar princípios ativos e sintetizá-los, na convicção de que moléculas e receptores específicos são individualmente responsáveis por fenômenos neurais discretos.

Algo similar se viu na história da genética, em que o paradigma um gene/uma função (ou uma característica) acabou cedendo lugar, por força de observações empíricas, para uma visão mais complexa. Hoje se buscam mais associações entre genes espalhados pelo genoma inteiro, partindo do princípio de que fenótipos resultam da interação de vários genes entre si e com fatores ambientais e do organismo, como as marcas epigenéticas agregadas ao genoma no curso da vida.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

Existe até quem acredite que o efeito psicodélico propriamente dito –visões, dissolução do ego, sinestesia etc. –possa ser dispensável A psiquiatria poderia assim lançar mão do poder reparador dessas substâncias expurgado da alteração da consciência. Mas há também estudos indicando que o benefício terapêutico é proporcional a intensidade da experiência mística (outros diriam: do grau de dissolução do ego).

Em resumo, haveria um outro efeito comitiva, por assim dizer, nos psicodélicos em geral: não se vence a ruminação sem uma dose de dissociação, ou, como diz Robin Carhart-Harris, sem um aumento de entropia no cérebro. A ciência psicodélica precisa de mais jogo de cintura.

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Startup levanta R$ 123 mi para explorar veneno de sapo contra depressão https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/#respond Thu, 14 Jan 2021 10:05:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bufo-alvarius-CC-HolgerKrisp-300x208.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Numa segunda rodada com investidores, a startup Beckley PsyTech obteve £ 14 milhões (R$ 101 milhões) para realizar testes clínicos com a substância psicodélica 5-metoxi-DMT (5-MeO-DMT). O recurso se soma a £ 3 milhões (R$ 22 milhões) angariados em junho pela empresa do Reino Unido, surgida há cinco anos com pedigree dourado.

À frente da companhia de olho no veneno de sapo, como é conhecida a 5-MeO-DMT, está Cosmo Feilding Mellen, 35. Apesar da pouca idade, o rapaz tem larga experiência com psicodélicos –drogas que, como ele próprio diz, são usadas algumas há milhares de anos, ainda que seu plano de negócios não preveja compensações para povos tradicionais que as legaram para a ciência contemporânea.

A 5-MeO-DMT está presente na secreção das glândulas do sapo-do-rio-colorado, Bufo alvarius ou Incilius alvarius. Aspirar o vapor da droga, que é ilegal na maioria dos países, produz uma curta e radical viagem, muitas vezes descrita como uma sensação de morte. Após a experiência com 5-MeO-DMT, decaem indicadores de depressão, ansiedade e estresse, resultado que se mantém quatro semanas depois, de acordo com estudo recente.

Cosmo é filho de Amanda Feilding, criadora da Beckley Foundation, uma espécie de ONG que há 22 anos incentiva e financia projetos de ciência psicodélica e de reforma de políticas públicas sobre drogas. A condessa aparece como coautora de vários estudos que patrocinou no chamado renascimento psicodélico, mas agora decidiu que precisa de lucros para a empreitada de transformar esses compostos em remédios convencionais licenciados.

Cosmo Feildiong Mellen e Amanda Feilding, nos jardins de Beckley Park, nos arredores de Oxford, Reino Unido (Divulgação Beckley PsyTech)

“Minha mãe criou a Beckley Foundation em 1998. Sempre estive pesadamente envolvido com o tema da ciência psicodélica, cercado por esse tema, essa paixão”, conta Cosmo. “Tive a felicidade de crescer na companhia de figuras como Sasha Shulgin e Rick Doblin. Fui voluntário em vários testes no Imperial College, por exemplo para tomada de imagens do cérebro sob psilocibina.”

Alexander “Sasha” Shulgin é figura lendária no panteão psicodélico. Autor de livros como “Pihkal – Uma história de amor químico” e “Tihkal – A Continuação”, ambos com a mulher Ann, Shulgin sintetizou e experimentou com amigos dezenas de compostos psicodélicos, tema das duas obras. O farmacologista, apontado como redescobridor do ecstasy (MDMA), morreu em 2014.

Rick Doblin está à frente da iniciativa mais avançada para sacramentar um psicodélico como medicamento, o próprio MDMA de Shulgin. O ex-hippie e objetor de consciência que temia ser convocado para a guerra do Vietnã escolheu para o teste de fogo um composto que não engendra visões (razão pela qual o ecstasy não é considerado um psicodélico clássico) e uma condição típica de veteranos militares, o transtorno de estresse pós-traumático, numa estratégia esperta para vencer as resistências a psicodélicos.

Cinco anos atrás, com o crescimento do interesse de investidores na indústria de cânabis medicinal e psicodélicos, Amanda e Cosmo se lançaram a criar um braço da Beckley com fins lucrativos para continuar o trabalho da família, a fim de aumentar a escala e a ambição do que Amanda tentava fazer há cinco décadas.

“Basicamente, [queremos] aproveitar a oportunidade de nos tornarmos um farol, uma empresa ética fazendo coisas realmente boas”, afirma o CEO da PsyTech. “O objetivo é desenvolver psicodélicos como uma nova classe de medicamentos neuropsiquiátricos e tratar dessa necessidade de saúde [transtornos mentais como depressão] que rapidamente está se tornando o maior peso sobre o mundo.”

Mãe e filho não brincam em serviço. Buscaram na Johnson & Johnson duas pessoas experimentadas no desenvolvimento e autorização de fármacos: Steve Wooding (diretor científico da nova companhia) e Fiona Dunbar (assessora-chefe de medicina).

Como consultores, Cosmo e Amanda alistaram duas celebridades da nova neurociência: Robin Carhart-Harris, do Imperial College, e Matt Johnson, da Universidade Johns Hopkins. Não por acaso, as duas instituições acadêmicas foram pioneiras na abertura de centros de pesquisa psicodélica, elas mesmas envolvidas em ensaios clínicos com a psilocibina dos “cogumelos mágicos” para tratar vários transtornos mentais.

Segundo Cosmo, esse time analisou várias possibilidades de inovação, diante do que outros grupos estão investigando, e se fixou na 5-MeO-DMT como candidata a antidepressivo. A principal vantagem do composto batráquio é induzir uma alteração da consciência que dura uma hora ou menos, o que diminuiria de modo acentuado os custos da psicoterapia assistida por psicodélicos como LSD e psilocibina, que na configuração atual exigem acompanhamento de uma dupla de terapeutas por longos períodos.

“Dois terapeutas sentados com o paciente por 6-8 horas é uma alocação de recursos enorme para o paciente, vai ser difícil de disseminar e sairá caro, também”, pondera Cosmo. “O que sabemos sobre 5-MeO-DMT é que induz confiavelmente o tipo de experiência de dissolução do ego sabidamente correlacionada com resultados positivos de tratamento, mas com duração do efeito da droga abaixo de uma hora.”

O CEO não cogita patentear 5-MeO-DMT. A propriedade intelectual faz parte de seu modelo de negócios, mas essas drogas são substâncias conhecidas, algumas usadas há milhares de anos e sobre as quais muitas pessoas já escreveram –não são patenteáveis.

“Não é o mesmo que um desenvolvimento farmacêutico clássico. Haverá propriedade intelectual na criação de novos e inventivos passos de tratamento médico, na formulação, na aplicação, no modelo terapêutico.”

Cosmo não prevê, entretanto, compensação para povos tradicionais que preservaram o conhecimento sobre essas substâncias, uma das preocupações entre estudiosos do fenômeno cultural psicodélico. A PsyTech dedica uma parte da receita para a parceira estratégica Beckley Foundation, que não tem fins lucrativos: “Eles estão envolvidos em muitas atividades filantrópicas, de pesquisa a políticas públicas. É aí que focalizamos nossa responsabilidade social”, justifica.

O sigilo comercial impede no momento divulgar quais equipes conduzirão os testes clínicos de fase 1 e 2 (segurança, dosagem e evidência inicial de eficácia) com o veneno de sapo. A empresa só confirma que os ensaios serão realizados no Reino Unido tanto por parceiros acadêmicos quanto empresariais.

A Beckley Foundation lista pesquisadores brasileiros entre seus colaboradores, como os que atuam no Instituto do Cérebro da UFRN, no Institudo D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), na UFRJ e na Unicamp. Cosmo, que também tem alguma ligação com o Brasil –foi o diretor da versão para língua inglesa do documentário de Fernando Grostein Andrade “Quebrando o Tabu” (2012), sobre política de drogas– diz que a empresa Beckley PsyTech não tem planos concretos de parcerias por aqui.

Cosmo Feilding-Mellen, CEO da empresa Beckley PsyTech (Divulgação Beckley PsyTech)

Além do veneno de sapo, a empresa investe num programa de desenvolvimento de fármacos, novas entidades químicas baseadas no que se sabe sobre os psicodélicos existentes. A proposta é alterar as moléculas de maneira a melhorar os resultados clínicos ou a segurança.

Pergunto se a ideia seria retirar delas o efeito psicodélico propriamente dito, o que se chama de dissolução do ego ou experiência mística. Cosmo: “Não. Certamente não apenas nessa direção, de todo modo. Eu acredito que a experiência subjetiva é uma parte importante da eficácia do tratamento. Mas será interessante ver o que virá da ciência, de outras escolas de pensamento”.

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Em 2021, psicodélicos sairão do gueto e invadirão até a tela de seu celular https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/#respond Sun, 03 Jan 2021 00:35:11 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Cerebro1Plasticidade-300x137.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=224 Antes mesmo das agruras da pandemia de Covid se estimava que, nos países mais ricos, metade das pessoas receberão algum diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida. Após mais de um ano de isolamento e medo, males da alma como depressão e ansiedade vão piorar até virar outra pandemia, e os tratamentos disponíveis são limitados.

Neste caso, porém, não será preciso desenvolver uma vacina a partir do zero, ainda que em tempo recorde. A neurociência está ressuscitando uma classe de substâncias –psicodélicos como psilocibina, ecstasy, LSD e ayahuasca– estudadas há mais de 60 anos e montando com elas uma nova onda que já inunda a imprensa especializada e leiga, chega à TV aberta e em breve estará na palma de sua mão.

Neste domingo (3), o renascimento psicodélico aparecerá no Fantástico, programa dominical superfamília da Rede Globo. A julgar pelo teaser, mostrarão pesquisas brasileiras que comprovaram efeito antidepressivo rápido e prolongado da ayahuasca, chá psicoativo de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ponto para o Instituto do Cérebro da UFRN.

Devem aparecer também estudos que investigam a aplicação de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), flagelo de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. Embora não seja considerado um psicodélico clássico como LSD, MDMA é a droga mais próxima de obter aprovação oficial como medicamento.

Em 2021 os psicodélicos sairão do gueto em que foram confinados pela proibição, nos anos 1970, e se banharão na luz da ciência e da respeitabilidade. A certeza de que este será o ano da virada levou um trio de pesquisadores do Canadá a escrever longo artigo no periódico Pharmacological Review reunindo o que se sabe sobre os mecanismos de ação desses compostos em termos bioquímicos e neurológicos, um guia de 76 páginas para psiquiatras caretas. Dos receptores para serotonina e outros neurotransmissores às teorias inflamatórias e entrópicas do cérebro doente, está tudo ali.

Reprodução/Pharmacological Review

Informalmente os psicodélicos já se infiltravam pelo tecido social por meio da microdosagem com psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), ayahuasca ou LSD, ou seja, recorrer a quantidades subclínicas de psicodélicos 2 ou 3 vezes por semana. Há pouca evidência científica da eficácia dessas microdoses para aguçar criatividade e produtividade, como defendem praticantes, mas elas se tornaram o meio mais popular de buscar os benefícios mentais sem enfrentar experiências psicodélicas plenas, descasamento meio puritano e controverso buscado também por alguns pesquisadores.

Microdosagem e uso recreativo de psicodélicos, apesar de seu baixo potencial para criar dependência, não se fazem inteiramente sem riscos. Pesquisadores sérios se inquietam com a renascida popularidade dos psicodélicos, mas não são todos que preferem mantê-los sob controle estrito no cercadinho da academia.

Cápsulas de cogumelos Psilocybe moídos, usados em microdosagem (Foto de Pedro Amaral)

Um dos que não temem exposição na esfera pública é Robin Carhart-Harris, que dirige no Imperial College de Londres o pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica. Em 2020, ainda antes de completar 40 anos e sem contar com financiamento público para pesquisa, RC-H publicou seu centésimo artigo científico.

Para 2021 ele promete divulgar os resultados de um estudo em que seu grupo comparou o efeito antidepressivo de apenas duas doses de 25 mg de psilocibina diretamente com 43 doses diárias de escitalopram. Tudo indica que um dos mais modernos medicamentos disponíveis para tratar depressão não se saiu tão bem na pesquisa quanto o rival psicodélico.

Em sua última incursão além do reduto dos periódicos especializados, Carhart-Harris escreveu um comentário para a revista Wired com o título “Big Pharma está para sintonizar [tune in] o potencial dos psicodélicos”. Além da referência ao termo médio do clássico lema de Timothy Leary (Turn on, tune in, drop out), o autor profetiza: “A medicina psicodélica vai começar a invadir o domínio estabelecido [mainstream] da saúde mental em 2021”.

Carhart-Harris, à esq., e Michael Pollan, autor de “Como Mudar sua Mente”, à dir. (Reprodução/MyDelica)

Seria a terceira onda da ciência psicodélica. Na primeira, ali pelos anos 1950, predominava a concepção psicotomimética –drogas como LSD serviriam para mimetizar psicoses e permitir seu estudo controlado. Uma onda mais benigna se levantou nos anos 1960, em que a alteração da consciência mediada por psicodélicos passou a ser usada em psicoterapia e, a seguir, se tornou popular entre hippies, alavancando a contracultura, a contestação política e, por fim, a reação proibicionista.

O neurocientista britânico apoia sua profecia sobre a chegada ao mainstream (portanto o avesso do comando drop out de Leary) na explosão de artigos científicos sobre o tema, nos últimos cinco anos, e na voga de filantropos e investidores de risco que doaram US$ 30 milhões (R$ 156 mi) para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos organizar teste clínico com MDMA para TEPT e US$ 115 milhões (quase R$ 600 mi) para a empresa Compass Pathways fazer o mesmo com psilocibina para depressão.

RC-H não espera sentado pela aprovação da comunidade científica e dos órgãos reguladores aos quais caberia levantar as restrições ainda vigentes para substâncias psicodélicas. Cioso de que o uso só tende a crescer, por vias legais ou ilegais, ele fundou uma empresa e promete lançar ainda neste ano um aplicativo de celular, MyDelica, voltado para a redução de danos entre usuários.

Reprodução/MyDelica

“MyDelica oferece um marcador personalizado de progresso e um serviço de aconselhamento baseado em evidências para educar e salvaguardar jornadas psicodélicas”, promete a página provisória do app na internet. Na ilustração de como será a tela do programa no celular, acima de gráficos com marcadores e tendências de bem-estar, aparece o registro “Domingo 19 de abril”.

Reprodução/MyDelica

Não é qualquer data. Nela se comemorará o Dia da Bicicleta, para celebrar a primeira viagem com LSD, realizada em 1943 por Albert Hoffman após ingerir 250 microgramas de sua invenção no laboratório Sandoz e voltar pedalando para casa, em meio a visões psicodélicas.

Hoffman escreveu uma biografia com o título “LSD, Minha Criança Problema”. Aos 78 anos, ela enfim alcança a maturidade.

 

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Retrospectiva 2020: ciência psicodélica tem desaceleração paradoxal https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/retrospectiva-2020-ciencia-psicodelica-tem-desaceleracao-paradoxal/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/retrospectiva-2020-ciencia-psicodelica-tem-desaceleracao-paradoxal/#respond Mon, 21 Dec 2020 10:37:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/GraficoPubMedPsuchedelic-300x79.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=193 Até que o renascimento psicodélico não foi tão mal em 2020, o ano da pandemia: 498 artigos publicados até 20 de dezembro, segundo busca com a palavra “psychedelic” no diretório PubMed.

Houve retração de 34% sobre os 754 de um ano antes, é verdade, mas ainda o bastante para continuar em evidência em meio à avalanche de estudos sobre Covid (82.513 trabalhos publicados). Mesmo encolhida, a neurociência dos estados alterados de consciência demonstra grande vitalidade.

Pesquisa psicodélica era até pouco tempo, e ainda é para muitos, um beco sem saída na carreira de pesquisador. Não mais. Imperial College, Johns Hopkins e NYU criaram centros específicos para esse campo de investigação, e o Brasil ainda vai ter o seu.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Entre os mais produtivos estão justamente o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres e o Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (EUA). Neste annus horribilis, contei mais de uma dúzia de artigos publicados por Robin Carhart-Harris e David Nutt, do primeiro, e de Roland Griffiths e Matthew Johnson, do segundo –todos eles apareceram mais de uma vez neste blog (como aqui e aqui).

Muitos artigos se dedicam a difundir que substâncias psicodélicas (MDMA, LSD, DMT, psilocibina, ibogaína) são a grande voga em psiquiatria, seja em editoriais e comentários, seja com revisões sistemáticas e meta-análises. Também há vários textos alertando para o risco de ressuscitar a reação conservadora dos anos 1970, quando a pesquisa no ramo foi paulatinamente sepultada sob o peso da regulação proibicionista.

Outro debate que ganha força na literatura biomédica diz respeito à contribuição da fenomenologia psicodélica –vivências subjetivas como visões, sinestesia, estado onírico, dissolução do ego– nos efeitos terapêuticos observados, ou quanto estes dependem das viagens ou não. A massa de estudos editados, porém, se compõe de pesquisa básica sobre os compostos e sua ação –como este exemplo com pesquisadores brasileiros, ou mais este.

Ilustração JR Korpa/Pixabay

Não foi só nos periódicos especializados que a ciência psicodélica aconteceu em 2020, mas sobretudo na imprensa leiga (exemplos aqui e aqui). Se em 2018 e 2019 chamava mais a atenção o teste clínico de MDMA (ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático, iniciativa da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) que já levantou US$ 30 milhões para o estudo , neste ano a cena foi tomada pelo avanço dos ensaios com psilocibina para tratar depressão.

A psilocibina também agita investidores. Empresa controversa por buscar patente de uma formulação desse composto psicoativo de cogumelos Psilocybe, a Compass Pathways levantou US$ 146,6 milhões (cerca de R$ 748 milhões) em setembro ao abrir suas ações na Nasdaq. A empresa está à frente de um grande teste clínico para tratar depressão, mas terá concorrência científica de organizações sem fins lucrativos como o Instituto Usona.

Muitos investidores se movimentam, abrindo ou adquirindo clínicas e startups, para contar com uma boa posição quando o mercado se abrir de vez para a psiquiatria e a psicoterapia baseadas em psicodélicos. Empresas como Numinus, Eleusis, MindMed, Tryp Therapeutics, MagicMed, Mydecine, MindSet, BetterLife, FieldTrip, Better Plant Sciences, Beckley Psytech, Cybin, Entheon Biomedical, Champignon Brands, Mind Cure Health etc. surgem a cada dia (veja um panorama aqui).

Algumas das empresas do ramo de psicodélicos listadas pela newsletter Psilocybin Alpha (Reprodução)

Elas estão mais ativas em países como Canadá e Holanda, onde cogumelos “mágicos” ou “trufas” de Psilocybe gozam de certa tolerância legal, o suficiente para funcionarem clínicas e spas psicodélicos. As oportunidades crescem também nos EUA, com os recentes plebiscitos e referendos sobre drogas.

Até no Brasil os capitalistas já estão de olho. A Red Light Holland comercializa trufas na Holanda, a Disruptive Pharma investe na distribuidora online MyPharma2Go.com, e juntas elas anunciaram acordo para atuar no mercado brasileiro.

“Esperamos agregar nosso conhecimento na cultura de Trufas Mágicas com o propósito de cultivar, manufaturar e distribuir no Brasil”, disse à newsletter Psilocybin Alpha o diretor da Red Light, Todd Shapiro.

O país tem algumas vantagens comparativas nesse setor, como a tradição de pesquisa com ayahuasca, cuja autorização para uso religioso facilita estudos pioneiros. Como não vai durar para sempre o obscurantismo que dominou 2020, cientistas e investidores daqui ainda têm chance de fazer de 2021 o ano da virada.

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