Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 USP de Ribeirão testa ayahuasca para medo de falar em público e fobia social https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/#respond Mon, 28 Jun 2021 15:50:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/FobiaSocialGettyImages-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Não são poucas as pessoas que tremem, suam e chegam a ter dor de barriga ou vontade de urinar quando precisam se apresentar diante de uma plateia. Para 2% a 7% da população de cada país, esse medo cresce a ponto de impedir qualquer atividade pública, com óbvio prejuízo na escola ou no trabalho, mas a ayahuasca pode dar-lhes alguma ajuda.

Ayahuasca? Sim, propõe estudo recém-publicado de Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). “Ayahuasca melhora autopercepção de desempenho discursivo em participantes com transtorno de ansiedade social”, afirma já no título artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology.

Transtorno de ansiedade social (TAS) e fobia social são nomes pomposos dados por psiquiatras para o famigerado medo de falar em público quando ele se torna paralisante, irracional. É o tipo de ansiedade mais comum, o terceiro transtorno psiquiátrico mais frequente, embora subnotificado (menos de 6% dos casos são diagnosticados), e costuma associar-se com outros distúrbios, como depressão e abuso de álcool.

Antidepressivos e psicoterapia podem ajudar, mas a maioria das pessoas com o problema segue tropeçando pela vida, até que algumas terminam abandonando a escola ou perdendo o emprego. Estima-se que até 25% dos estudantes universitários sofram com isso.

A ayahuasca foi escolhida por ser uma substância psicodélica muito estudada no grupo de Rafael dos Santos e ter conhecido efeito benéfico sobre depressão e ansiedade. O chá sacramentado em rituais de Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) leva folhas do arbusto chacrona, fonte do alcaloide dimetiltriptamina (DMT), e o cipó mariri ou jagube, fonte de compostos que inibem a decomposição da DMT.

Depois de recrutar 894 possíveis voluntários entre alunos da USP de Ribeirão, o grupo de pesquisa chefiado pelo psiquiatra Jaime Hallak terminou com apenas 17 que satisfizeram todos os requisitos para inclusão na pesquisa e compareceram para entrevistas e questionários padronizados de diagnóstico.

Cinco horas após tomar –pela primeira vez na vida– uma dose baixa de ayahuasca ou placebo (2 mililitros por quilo de peso), os voluntários tinham de fazer apresentação com tema pré-definido diante de uma tela, enquanto eram filmados, como numa conferência por zoom.

Antes e depois da experiência simulando a fala em público, precisavam preencher questionários para determinar o grau de ansiedade e autopercepção negativa (desconfiança sobre a própria capacidade, que contribui para piorar o desempenho).

Uma das limitações do estudo esteve em que os estudantes selecionados apresentavam níveis relativamente baixos de ansiedade antes mesmo do experimento. Talvez por isso os pesquisadores não tenham conseguido detectar diminuições significativas nos escores padronizados, embora os participantes tenham relatado sentir calma maior que usual durante o discurso.

“Não observamos efeitos significativos nas escalas de ansiedade, mas sim nos relatos e nas observações dos pesquisadores”, admite Santos. “A ausência de resultados significativos pode ser porque essas pessoas não tinham níveis elevados de ansiedade, mesmo preenchendo o diagnóstico, ou pela amostra pequena.”

Por outro lado, o experimento revelou que os voluntários melhoraram significativamente a autopercepção. Ou seja, mostraram-se menos desconfiadas quanto à capacidade de desempenhar adequadamente um papel social.

“Os pesquisadores aliaram o histórico internacional dessa equipe em avaliar o potencial terapêutico da ayahuasca nas pessoas e fizeram uso de um teste bem ‘calibrado’ para avaliar sua intensidade nos cuidados de pessoas com fobia social”, avalia o psiquiatra André Brooking Negrão, que não participou do estudo e investiga psicodélicos noutra unidade da USP, o paulistano Instituto de Psiquiatria.

“Os resultados são promissores porque mostraram que esse tipo de ensaio clínico é factível e, especificamente para pessoas com problemas associados à fobia social, pode ser um recurso valioso no futuro. Os pesquisadores terão agora o desafio de expandir esta metodologia para amostras mais numerosas.”

Concorda com Negrão a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autora de um pioneiro teste clínico duplo cego de ayahuasca para depressão: “O estudo é interessante por avaliar a ayahuasca em uma condição como a fobia social, para qual não há um tratamento farmacológico específico, e mostrando uma melhora em como os indivíduos que beberam ayahuasca percebem a performance deles nessa tarefa de falar em público”.

Dilema moral à frente

A fobia social vem, assim, somar-se a uma longa lista de condições que, segundo estudos ainda experimentais, poderiam eventualmente ser tratadas com psicodélicos. Cabem nela depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade, alguns transtornos do espectro autista, dependência química, anorexia, síndrome pós-concussional (danos cerebrais em boxeadores e jogadores de hóquei) e até Alzheimer, AVC, enxaqueca ou prevenção de suicídios.

Além disso, vários desses problemas de saúde mental são objeto de ensaios clínicos por diferentes substâncias psicodélicas. Por exemplo a depressão, sobre a qual há testes em andamento com psilocibina de cogumelos, DMT de ayahuasca, 5-MeO-DMT de veneno de sapo, LSD e mescalina.

Tamanha inespecificidade seria decorrente do modo básico de atuação desses psicodélicos clássicos. Todos eles são moléculas capazes de se encaixar no receptor de células cerebrais para o neurotransmissor serotonina.

Essa via bioquímica parece relaxar a rede de modo padrão (DMN, em inglês) hiperativa na ruminação (predominância circular de pensamentos negativos). Também seria capaz de aumentar a empatia e a socialidade, dissolver a ditadura do ego e estimular tanto a neuroplasticidade (formação de novas conexões entre neurônios) quanto processos anti-inflamatórios no cérebro.

Não deixa de ser um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico. A multiplicação combinatória de alvos e drogas pode suscitar entusiasmo injustificado para o estágio preliminar das pesquisas, dado que só o MDMA alcançou a fase 3 em testes clínicos e ainda carece de aprovação como adjuvante de psicoterapia. A imensa maioria dos estudos envolve poucas dezenas de participantes, como esse da USP de Ribeirão.

Além disso, não é pequeno o risco de que a imagem de panaceia para todos os males do mundo mental desperte reação conservadora similar à que virtualmente baniu os psicodélicos das farmácias e das pesquisas acadêmicas após sua adoção pelo movimento hippie e contestador da contracultura. Faltam ainda anos de pesquisa a acumular dados suficientes para ancorar os tratamentos na melhor ciência e romper preconceitos de órgãos reguladores, médicos e terapeutas.

Outro obstáculo no caminho de quem se filia à tradição clássica da psicoterapia mediada por psicodélicos é a proposta por alguns neurocientistas de livrar as pesquisas justamente da psicodelia, da psicoterapia ou de ambas. Sua ideia é desenvolver moléculas similares com poder de desarmar a DMN e a ruminação, mas que não desencadeiem estados alterados de consciência, as “viagens”.

O modelo, nesse caso, seria o dos antidepressivos surgidos a partir dos anos 1980, como a classe de inibidores seletivos de receptação de serotonina (ISRS) inaugurada pela fluoxetina (Prozac). Pílulas para as pessoas tomarem todos os dias, no intuito de se livrarem da depressão sem laboriosos processos de psicoterapia, mas que a realidade mostrou não funcionar para pelo menos um terço dos deprimidos graves.

(Reprodução)

A controvérsia sobre “psicodélicos não-psicodélicos” já apareceu no blog (aqui, aqui e aqui) e ganhou destaque há poucos dias na revista Forbes.

A reportagem de Will Yakowicz apresenta o trabalho de Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, para escrutinar incontáveis moléculas aparentadas à DMT &cia. “O objetivo é encontrar compostos que sejam terapêuticos e não psicodélicos”, disse o neurofarmacologista a Yakowicz.

Roth está abastecido com US$ 27 milhões da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa, em inglês) dos EUA para desenvolver uma nova geração de medicamentos candidatos a reduzir depressão e TEPT com a rapidez dos psicodélicos, em comparação com os lentos antidepressivos disponíveis, mas sem alucinações ou dissolução do ego e sem os efeitos adversos dos ISRS (como insônia, zonzeiras e redução da libido).

O financiamento corresponde ao valor aproximado que a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) levou muitos anos a levantar para conseguir empreender estudos de fase 3 com MDMA (ecstasy) contra TEPT. Esses testes clínicos devem render autorização para uso geral da droga como adjuvante em psicoterapia, e não para uso contínuo, até 2023.

A aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA) é a grande esperança de tratamento para veteranos de guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Em 2016, havia 868 mil ex-combatentes recebendo benefícios por incapacidade provocada por TEPT, ao custo de US$ 17 bilhões anuais aos cofres americanos.

Entende-se, assim, o interesse do Departamento de Defesa no trabalho de Roth, para desgosto do ex-hippie Rick Doblin, fundador da Maps. A reportagem da Forbes registra todo seu descontentamento: “A tragédia que vejo é que a Darpa poderia ter um vencedor agora mesmo com MDMA para TEPT, mas está tentando dizer ‘dane-se a experiência psicodélica e vamos investir em psicodélicos não-psicodélicos’ enquanto 20 veteranos por dia estão se  matando”.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)
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Investidor agressivo combate danos cerebrais com golpes de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/31/investidor-agressivo-combate-danos-cerebrais-com-golpes-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/31/investidor-agressivo-combate-danos-cerebrais-com-golpes-de-psicodelicos/#respond Mon, 31 May 2021 13:26:31 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/TysonMushroomsCortada-246x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=502 A disputa na arena empresarial dos psicodélicos anda acirrada. Quase todo dia competidores anunciam novas aquisições e investimentos, e a Wesana Health –criada há pouco mais de um mês– tem chamado atenção pela chegada de dois pesos pesados ao time.

Para traçar a estratégia de luta, entra em ação o experiente James Fadiman, autor do clássico psiconáutico “O Guia do Explorador Psicodélico – Jornadas Seguras, Terapêuticas e Sagradas” (aqui, em inglês; há também edição em espanhol, aqui). Na quinta-feira (27) a empresa noticiou que ele integrará seu comitê consultivo científico.

Fadiman faz estudos sobre psicodélicos desde os anos 1960, quando drogas como LSD, MDMA e psilocibina não eram proibidas (isso ocorreria nos anos 1970-80). O pesquisador e escritor defende que sejam usadas para fins espirituais (altas doses), propósitos terapêuticos (doses moderadas) e solução de problemas (microdoses). É muito lido no Vale do Silício e em Wall Street.

A Wesana tem como fundador e principal executivo Daniel Carcillo, um jogador de hóquei campeão pelos Chicago Blackhawks. Após 12 anos de carreira profissional e muitas pancadas na cabeça, foi diagnosticado aos 30 anos, em 2015, com síndrome pós-concussional.

Em sua página o ex-atleta Carcillo arrola uma lista chocante de sintomas: sensibilidade à luz; fala arrastada; problemas de memória, concentração e controle de impulsos; dores e pressão interna na cabeça; insônia; perda de apetite; confusão mental; ansiedade; depressão. Chegou a entreter pensamentos suicidas.

Essa modalidade de dano cerebral traumático aparece muito em boxeadores e jogadores de futebol americano, também. Depois de peregrinar por vários especialistas, Carcillo voltou-se a tratamentos inovadores e fundou a Wesana para fomentar pesquisas de terapias alternativas contra o mal que o aflige –entre elas a psilocibina, substância psicoativa dos cogumelos ditos “mágicos” (do gênero Psilocybe).

(Foto: Reprodução danielcarcillo.com)

Sua empresa saltou às manchetes na semana passada porque o lutador Mike Tyson não só investiu na Wesana, listada na Bolsa canadense, como fez a ponte entre ela e o Conselho Mundial de Boxe (WBC, em inglês). A entidade vai partilhar com a companhia seu acervo sobre danos cerebrais reunido desde a década de 1970.

O lutador, também diagnosticado com a condição cerebral, já tinha aparecido no noticiário após hilariante cena de talkshow em que Tyson engoliu 4g de cogumelos Psilocybe secos. A repercussão foi imediata, porém restrita mais à cena psicodélica, e lhe garantiu presença no 56º lugar de uma controversa lista das cem pessoas mais influentes da área.

Desta vez, teve sucesso instantâneo na imprensa esportiva a afirmação de Tyson de que os psicodélicos salvaram sua vida: “Todos achavam que eu estava louco, mordi a orelha de um cara”, disse à Reuters, referindo-se à luta com Evander Holyfield em 1997. “Fiz todas aquelas coisas, e assim que me apresentaram os cogumelos… minha vida inteira mudou.”

Nos planos de Carcillo está aprofundar o conhecimento sobre a síndrome e recrutar boxeadores como voluntários para o teste clínico de sua formulação de psilocibina em desenvolvimento, Sana0013. Para isso, fez duas outras contratações arrojadas, garantindo os passes de Mark Wingertzahn, que já atuou nos times das farmacêuticas GSK e Pfizer, e do médico Stephan Bart, craque com mais de 400 ensaios clínicos.

A Wesana por ora não enfrenta concorrência direta de outros testes clínicos já em andamento com psilocibina, porque esses têm por alvo a depressão. Vai precisar de toda a força de Tyson e toda a ginga de Muhammad Ali, contudo, para escapar dos avanços da britânica Compass Pathways, se esta desafiar a Sana0013 com as três patentes já obtidas para sua fórmula de psilocibina COMP360.

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Nasce a Scirama, primeira empresa de inovação psicodélica do Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/#respond Mon, 19 Apr 2021 02:15:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/LOGO-SCIRAMA-FUNDO-BRANCO-215x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=419 O renascimento psicodélico ganha nesta segunda-feira (19) a primeira empresa brasileira de inovação nesse campo efervescente, Scirama. Por trás dela está Marcel Grecco, 38, criador de The Green Hub, aceleradora na área de maconha medicinal e cânhamo que tem dez startups no portifólio.

O momento foi bem escolhido: 19 de abril é o Dia da Bicicleta, data em que o químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), descobridor do LSD nos laboratórios Sandoz, realizou a primeira viagem lisérgica da história, em 1943. Até a proibição nos EUA em 1968, a droga foi distribuída para distúrbios como o alcoolismo, sob o nome Delysid.

A partir de 1980, estudos clínicos com quase todos os compostos psicodélicos caíram no ostracismo. Ressurgiram a partir da virada do século e hoje entusiasmam neurocientistas e investidores, sobretudo a psilocibina dos cogumelos “mágicos”, por seu potencial para tratar transtornos mentais como a depressão resistente a medicamentos.

Nos últimos cinco anos quase 3 mil artigos científicos foram publicados acerca do tema. Estimativas sobre o mercado mundial para psicoterapia apoiada em psicodélicos partem de US$ 100 bilhões anuais (R$ 560 bilhões), e várias empresas travam hoje uma corrida para patentear moléculas e aplicações psicodélicas.

Nos EUA, governo, universidades e empresas investiram, no primeiro semestre de 2020, US$ 250 milhões em pesquisa psicodélica. A Janssen (Johnson & Johnson) lançou o spray nasal antidepressivo Spravato (escetamina, variante da cetamina, anestésico já usado contra depressão), com vendas de US$ 1,5 bilhão anuais.

“A Scirama [pronuncia-se ‘sairama’] nasceu a partir de uma dor, o mal do século na saúde mental”, diz Grecco, referindo-se principalmente a depressão e ansiedade. “Isso agora vai se intensificar, com o luto pós-Covid, a dor de quem perdeu alguém ou teve a doença, e os impactos econômicos, na perda de empregos e negócios.”

Marcel Grecco, criador de The Green Hub e da empresa psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

O empresário conta que, depois de criar The Green Hub em 2016, foi atraído pela promessa medicinal dos alteradores de consciência. Numa primeira rodada entre investidores para lançar a Scirama, obteve fundos da ordem de R$ 1,5 milhão.

“O uso de cânabis e de psicodélicos é disruptivo [revolucionário] para o setor de saúde”, diz, aludindo aos estudos que os apontam como alternativa para as terapias existentes, que no caso de depressão não funcionam para ao menos um terço dos doentes.

Grecco já conhecia como colaborador científico da aceleradora The Green Hub o neurocientista Stevens Rehen, 50, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), que tem estudos publicados sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos ayahuasca e 5-MeO-DMT (extraído originalmente do veneno do sapo-do-rio-colorado).

O neurocientista Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres.
(Mercelo Leite/Folhapress 2019)

Chamou Rehen para compor o comitê científico da Scirama ao lado de Sidarta Ribeiro, 50, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN). Ambos já trabalharam juntos em pesquisa básica com LSD, em colaboração com Dráulio de Araújo (ICe-UFRN) e Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Completa o time Clarice Pires, 36, economista especializada em inovação com quem Rehen atuou na startup de biotecnologia Hygeia, um raro caso de sucesso no problemático campo de inovação no Brasil. A empresa desenvolveu novas formulações do medicamento octreotida (supressor do hormônio de crescimento e antidiarreico) e as licenciou no Brasil e no exterior.

Clarice Pires, administradora da startup psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

“Stevens e Sidarta têm todo o conhecimento, sabem para onde a ciência está indo”, diz Grecco. Com efeito, esse grupo de colaboradores está no epicentro da pesquisa nacional na área, favorecida pela legalização da ayahuasca por motivos religiosos, que pôs o Brasil em terceiro lugar na quantidade de artigos científicos de grande impacto sobre psicodélicos, atrás dos EUA e do Reino Unido apenas.

A ideia da Scirama é dar o financiamento inicial e ajuda na estruturação de produtos e terapias derivados das propriedades já conhecidas de psicodélicos. Entre elas estão a capacidade de estimular novas conexões cerebrais (neuroplasticidade) e a ação anti-inflamatória, que poderá gerar aplicações para transtornos mentais e doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

No exterior, já se investiga o uso de psicodélicos até para acidentes vasculares cerebrais, anorexia e enxaqueca. Entre os alvos da Scirama estarão também protocolos para o tratamento de dependência química, em especial de álcool –como se fazia com LSD nos anos 1950/60. A startup lançará em breve um edital para receber propostas de pesquisadores brasileiros.

No curto prazo, a equipe espera receber ideias na área de psicoterapia com psicodélicos clássicos (ayahuasca, LSD, psilocibina) e mesmo para cultivo de organismos produtores, como os cogumelos Psilocybe. No longo prazo, aplicações para envelhecimento, não dependentes do efeito psicodélico terapêutico propriamente dito (alterações da consciência, como a chamada dissolução do ego e o aumento de empatia).

Outro setor em que a Scirama pretende inovar é o de compensações para os povos tradicionais que usam psicodélicos em rituais há séculos e legaram esse conhecimento para a ciência contemporânea (um flanco aberto para intensa controvérsia). O próprio logotipo da firma faz alusão a isso, ao reunir filamentos de conexão entre neurônios em formato que lembra um cocar.

A administradora Clarice Pires afirma que patentes e propriedade intelectual são cruciais para seu modelo de negócios, mas que em breve a empresa apresentará um modelo sobre como pretende fazer esse ressarcimento. O assunto já está na pauta das próximas reuniões.

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo. E em 19 de maio começa o curso no canal Bora Saber:

 

 

 

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Estudo sugere DMT, psicodélico da ayahuasca, para recuperação de AVC https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/15/estudo-sugere-dmt-psicodelico-da-ayahuasca-para-recuperacao-de-avc/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/15/estudo-sugere-dmt-psicodelico-da-ayahuasca-para-recuperacao-de-avc/#respond Mon, 15 Feb 2021 15:30:27 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/chacronafolha-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=318 O campo de aplicações terapêuticas aberto pela renascença psicodélica se amplia para incluir acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e dores crônicas, além de transtornos como depressão, estresse pós-traumático ou dependência química. E na vanguarda está a dimetiltriptamina (DMT), substância psicoativa presente na ayahuasca.

O teste foi feito em ratos para investigar o potencial da DMT no tratamento do AVC isquêmico, quando se interrompe o fluxo de sangue a uma parte do cérebro e os neurônios afetados morrem por falta de oxigênio. O estudo de pesquisadores húngaros saiu em maio no periódico Experimental Neurology, e empresas já se mexem para levar a ideia a testes clínicos em seres humanos.

Além do AVC isquêmico, que representa 80-85% dos casos no Brasil, existe o AVC hemorrágico, quando uma lesão ou rompimento de artéria provoca o extravasamento de sangue para o tecido cerebral, também conhecido como derrame. A soma dos dois tipos constitui a segunda causa de mortalidade no país, com mais de 100 mil óbitos anuais.

Saiu na frente a empresa canadense Algernon Pharmaceuticals, que lançou um programa de pesquisa e apresentou pedidos de patente para AVC. Sua estratégia se baseia na capacidade do composto DMT de estimular novas sinapses e neurônios (neuroplasticidade), importante na recuperação motora de pacientes.

A neuroplasticidade, entretanto, é o componente mais frágil da evidência obtida até agora. Parecem estar em ação também outros mecanismos biológicos, como a regulação pelo receptor Sigma-1 (Sig-1R) do processo que leva à morte de neurônios na falta de oxigênio (hipóxia). Ou, ainda, o efeito anti-inflamatório da DMT, já comprovado por pesquisadores brasileiros no caso da ayahuasca.

Em paralelo, a também canadense PharmaDrug, que tem subsidiárias na área de cânabis medicinal na Alemanha e em Israel, apresentou à FDA, agência americana de fármacos, pedido de reconhecimento da DMT como “droga órfã” para tratar AVCs isquêmicos. O status especial pode ser concedido a remédios sob investigação para doenças que acometam menos de 200 mil pessoas nos EUA.

Esse reconhecimento pela FDA implica incentivos para arriscar-se na pesquisa, como o perdão de até US$ 2,4 milhões (R$ 13 milhões) em taxas para obter licença. Saindo a autorização, quem desenvolveu o tratamento ganha sete anos de exclusividade para comercializá-lo. Nos EUA, os gastos com AVC isquêmico alcançaram US$ 46 bilhões (R$ 250 bilhões) nos anos 2014-15.

No experimento com ratos, a neuroplasticidade não foi inferida diretamente, por exemplo com a identificação de novos neurônios ou conexões entre eles. Os cientistas húngaros só mediram um composto associado com novas ligações neurais, o BDNF (brain-derived neurotrophic factor, fator neurotrófico derivado do cérebro).

Rato de laboratório da variedade Wistar (Janet Stephens/Creative Commons)

Eles também mostraram, com testes comportamentais, que os roedores isquêmicos tratados com DMT tiveram melhor recuperação motora. Isso não prova, porém, que a causa da melhora foram novas conexões induzidas pela DMT.

“A expectativa para uso terapêutico da DMT no AVC estaria em seu efeito anti-apoptótico, através do Sig-1R [receptor envolvido na regulagem da morte celular], para evitar a perda de neurônios pela falta de oxigênio, ou hipóxia”, comenta Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor)

Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres (Marcelo Leite/Folhapress 2019)

Rehen pesquisa efeitos de psicodélicos, inclusive compostos da ayahuasca, sobre tecidos cerebrais. “Reduzir fatores inflamatórios e aumentar BDNF podem sim ajudar na reabilitação, através de neuroplasticidade, mas nesse caso seria importante um estudo desenhado para esse fim específico”, pondera.

Nicole Galvão-Coelho, fisiologista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), hoje terminando um pós-doutorado na Universidade de Western Sydney (Austrália), vê bom potencial na DMT para recuperação de AVC isquêmico. Ela tem investigado tanto o BDNF quanto o benefício da ayahuasca contra inflamação.

Nicole Leite Galvão-Coelho em seu laboratório na UFRN (Divulgação)

A pesquisadora aponta que, mesmo sem essa comprovação direta de neurogênese (formação de neurônios, não só de sinapses), o progresso motor no teste comportamental é um indício alentador. Na sua opinião, os psicodélicos estão em vias de se mostrar úteis também no tratamento de dores crônicas, como no caso de artrite.

Com efeito, já estão em curso estudos para tratar enxaquecas, por exemplo, com psilocibina, substância psicoativa dos “cogumelos mágicos” Psilocybe. E, no Reino Unido, a empresa Beckley PsyTech obteve aprovação para testes clínicos do mesmo composto contra um tipo raro e incapacitante de dor de cabeça conhecida pela sigla SUNHA (em inglês, short-lasting unilateral neuralgiform headache attacks), uma das cefaleias que envolvem o nervo trigêmeo.

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‘Efeito comitiva’ distingue ayahuasca e cogumelos de outros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/#respond Sat, 06 Feb 2021 19:35:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/jaguve2horizontal-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=303 Muita gente sabe que o chá ayahuasca se prepara com duas plantas, o arbusto chacrona (Psychotria viridis) e o cipó-mariri ou jagube (Banisteriopsis caapi), mas não por que essa mistura é importante para seu poder psicodélico. Por trás de sua força está o “efeito comitiva” (entourage effect), sinergia entre substâncias vegetais que tornam o daime algo único entre compostos psicodélicos.

Eis aí um tema quente no panorama da neurociência dos produtos também chamados de “entactógenos”. Um exemplo da atenção que o assunto desperta está no artigo “O Papel da Ayahuasca no Efeito Comitiva e Depressão”, de José Alexandre Salerno, que apareceu em 28 de janeiro na Psychedelic Science Review.

Salerno faz doutorado com Stevens Rehen na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Rehen se destaca na neurociência brasileira pelo uso de organoides cerebrais (“minicérebros” construídos em laboratório a partir de células pluripotentes) para desvendar o perfil de ação de psicodélicos sobre tecidos neurais.

“Vejo muitos autores-cientistas escrevendo sobre a ayahuasca e seu potencial terapêutico, mas quase sempre restritos  às moléculas, sem dar muitas satisfações ao leitor sobre a complexidade da infusão”, diz Salerno,  “incluindo todos os aspectos socioculturais que poucos conhecem –o que é irônico, já que a ayahuasca foi testada em humanos como a infusão completa e natural.”

A alteração da consciência propiciada pela ayahuasca tem sua origem no composto n,n-dimetiltriptamina (DMT). Presente nas folhas da chacrona, a substância seria incapaz de ocasionar visões –as “mirações” de religiões ayahuasqueiras como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha– e a dissolução do ego características do efeito psicodélico ao ser ingerida sozinha, porque seria degradada no trato digestivo.

Folha de chacrona, Psychotria viridis (Marcelo Leite/Folhapress)

Para chegar ao cérebro, a DMT precisa da ajuda da harmina, uma das substâncias do grupo das betacarbolinas presentes no jagube. A harmina inibe a ação da enzima monoamina-oxidase (MAO) do estômago e do fígado, que sem o componente do cipó quebraria a DMT, impedindo sua difusão no organismo pela corrente sanguínea.

Essa parceria produtiva entre harmina e DMT é a base do que se convencionou designar como “efeito comitiva”, o entourage effect da expressão franco-anglo-saxônica (a harmina e demais betacarbolinas fazem mais, entretanto, como se verá adiante). A locução nasceu em 1998 para designar outro casamento feliz, desta vez entre componentes da maconha em sua interação com os receptores “promíscuos” para canabinoides no cérebro, na expressão do pioneiro em pesquisa com cânabis Raphael Mechoulam, do Instituto Weizman.

Plantação de maconha em clube de cultivo perto de Montevidéu, Uruguai (Danilo Verpa/Folhapress)

A primeira vez em que ouvi fala de efeito comitiva foi em palestra do neurocientista Sidarta Ribeiro na conferência Psychedelic Science de 2017, em Oakland (Califórnia). O pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) fez uma defesa ao mesmo tempo racional e apaixonada de produtos naturais, como variedades de marijuana com maiores ou menores teores relativos de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) e a própria ayahuasca.

Quase quatro anos atrás, ao responder uma questão da plateia em Oakland, Ribeiro disse desconhecer se o efeito comitiva também caracterizava um psicodélico natural muito popular, os cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe. Depois disso, explica agora, artigo de Barbara Bauer na mesma PSR descreveu a interação entre psilocibina e aeruginascina.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

“À medida que a gente começa a entender melhor essas substâncias e essas interações, a tendência é crescer essa lógica”, diz Ribeiro. “O conceito mais geral é que, quando se usa uma preparação com muitos análogos de uma mesma molécula-base, um padrão como no caso da serotonina, se alcance esse efeito de um ataque complexo a esse receptor, de maneira que ele nunca caminhe para a tolerância e para sua própria diminuição. Parece que isso começa a emergir como um princípio amplo.”

Na maconha e nos cogumelos, a comitiva de moléculas se apresenta naturalmente, mas não na ayahuasca, uma invenção humana. Nunca será possível saber de que povo nem quando surgiu a técnica de ferver os dois vegetais, mas a pesquisa vem demonstrando que os efeitos neurológicos da infusão parecem ir muito além da sinergia entre betacarbolinas e DMT que propicia a alteração da consciência e engendra as mirações.

No centro das atenções está a harmina. O grupo de Rehen na UFRJ e no Idor mostrou, com ajuda de organoides, ter ela mesma relação estreita com o fenômeno da neuroplasticidade que se postula estar por trás do potencial antidepressivo do daime.

Outro estudo de pesquisadores brasileiros e australianos, com Nicole Galvão-Coelho à frente, mostrou que os compostos presentes na ayahuasca também têm efeito anti-inflamatório, provável componente da depressão resistente a medicamentos. Seu grupo na UFRN mediu o nível da proteína C-reativa no sangue de pacientes que tomaram ayahuasca e verificou que eles tinham níveis diminuídos.

Proteína C-reativa, marcador de inflamação que tem baixa quantidade em quem toma ayahuasca

“A substância harmina é mais estudada na literatura científica do que a própria DMT, o psicodélico da infusão”, diz Salerno. “Sem querer roubar o protagonismo do psicodélico, acho importante a reflexão científica de que provavelmente a mistura complexa da ayahuasca vai muito além do que já conseguimos responder até hoje sob o rigor do método científico.”

O aluno de Rehen pondera que a ayahuasca já é considerada eficaz há milhares de anos por povos nativos. “Talvez falte diálogo da ciência biomédica com as sociais para que as razões dessa eficácia possam eventualmente ser respondidas pela ciência biomédica também.”

“Compostos isolados, e até os sintéticos, oferecem a grande vantagem do controle mais rigoroso, especialmente de qualidade, e tornam a proposta de terapia assistida com psicodélicos bem mais atrativa e comercializável pelas gigantes farmacêuticas. Mas talvez estejamos deixando escapar variáveis importantes ao considerar os compostos isolados.”

A defesa das comitivas naturais parece mais comum entre estudiosos de alteradores de consciência que os investigam também da perspectiva da fenomenologia, ou seja, com experiência própria. Eles costumam ainda dar reconhecimento a saberes ancestrais que legaram seu uso para a ciência.

No polo oposto da tensão que percorre a cena psicodélica ficam os psicofarmacólogos mais reducionistas. Seu feijão-com-arroz é isolar princípios ativos e sintetizá-los, na convicção de que moléculas e receptores específicos são individualmente responsáveis por fenômenos neurais discretos.

Algo similar se viu na história da genética, em que o paradigma um gene/uma função (ou uma característica) acabou cedendo lugar, por força de observações empíricas, para uma visão mais complexa. Hoje se buscam mais associações entre genes espalhados pelo genoma inteiro, partindo do princípio de que fenótipos resultam da interação de vários genes entre si e com fatores ambientais e do organismo, como as marcas epigenéticas agregadas ao genoma no curso da vida.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

Existe até quem acredite que o efeito psicodélico propriamente dito –visões, dissolução do ego, sinestesia etc. –possa ser dispensável A psiquiatria poderia assim lançar mão do poder reparador dessas substâncias expurgado da alteração da consciência. Mas há também estudos indicando que o benefício terapêutico é proporcional a intensidade da experiência mística (outros diriam: do grau de dissolução do ego).

Em resumo, haveria um outro efeito comitiva, por assim dizer, nos psicodélicos em geral: não se vence a ruminação sem uma dose de dissociação, ou, como diz Robin Carhart-Harris, sem um aumento de entropia no cérebro. A ciência psicodélica precisa de mais jogo de cintura.

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Mass General e Mount Sinai entram na onda de centros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/#respond Mon, 01 Feb 2021 14:20:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/MOUTASINAIreutersMikeSegar-300x199.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=296 A cada semana chegam dezenas de informes de investidores, notícias, avisos de transmissões ao vivo e lançamentos de livros sobre o renascimento psicodélico para a psiquiatria. Eis aqui algumas novidades selecionadas nos últimos dias, com destaque para dois templos da medicina dos EUA: Mass General e Mount Sinai.

O Hospital Geral de Massachusetts, mais conhecido como Mass General ou MGH, é o mais importante hospital ligado à Escola Médica da Universidade Harvard. Seu departamento de psiquiatria recebeu uma doação do Fundo em Memória de Arielle Soussan para Pesquisa Psicodélica que deu origem no MGH ao Centro para Neurociência de Psicodélicos, no final de 2020.

Arielle faleceu aos 24 anos, após anos sofrendo de depressão resistente às terapias disponíveis. Antes de morrer, interessou-se pelo estudo de substância psicoativas como psilocibina, DMT e LSD para tratar transtornos mentais, o que motivou a família a criar o fundo.

Metade dos gastos anuais com tratamentos para depressão nos EUA –US$ 350 bilhões (R$ 1,9 trilhão, o equivalente a ¼ do PIB brasileiro)– se destina a esses doentes que não encontram alívio nos medicamentos atuais. Esses pacientes apresentam baixa neuroplasticidade, ou seja, formam poucas conexões cerebrais novas e neurônios para abrir rotas alternativas à ruminação que caracteriza o transtorno, o que psicodélicos parecem capazes de estimular.

O novo centro do MGH, que agora se associa à Atai Life Sciences, uma startup alemã da área, focalizará suas pesquisas na neuroplasticidade. O psiquiatra Jerrold Rosenbaum, diretor do grupo, diz que, como a maioria dos médicos, via os psicodélicos apenas como drogas proibidas, de uso recreativo: “Quando comecei a aprender mais, percebi que havia aí uma oportunidade [de pesquisa] que deixamos passar subdesenvolvidas por décadas”, afirmou ao jornal Boston Globe.

Outra instituição a surfar o tsunami é a Escola de Medicina Icahn do sistema Mount Sinai, em Nova York, que emprega 7.200 médicos em oito hospitais. A faculdade, uma das 20 melhores dos EUA, abriu o Centro para Psicoterapia Psicodélica e Pesquisa de Trauma, que se dedicará a novos tratamentos para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em veteranos militares e em civis.

O centro nova-iorquino terá na direção da psiquiatra Rachel Yehuda, uma especialista em TEPT que também dirige um centro de saúde mental para veteranos no Bronx. Ela própria treinada nos protocolos para uso de MDMA (ecstasy) desenvolvidos pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), ONG à frente do teste clínico de fase 3 que deve levar em breve à aprovação do emprego psicoterápico da droga, diz ser importante conhecer as experiências subjetivas de quem sofre:

“As pessoas que tomam MDMA relatam sentimentos de introspecção, conexão, compaixão consigo mesmas e com os outros, empatia e confiança interpessoal aumentada, que são condições ótimas para se engajar no processamento de material [psíquico] difícil ou traumático”, afirmou à newsletter Psilocybin alpha. Ouça Yehuda falar de psicodélicos e do centro, em inglês, aqui.

MGH e Mount Sinai se somam, assim, a várias instituições de excelência acadêmica que abriram centros para pesquisa psicodélica, como Imperial College de Londres, Universidade Johns Hopkins e Universidade de Nova York. É uma onda irresistível. No Brasil há grupos com pesquisa de primeira linha no tema, mas instituições acadêmicas acossadas por um governo retrógrado se preparam mais uma vez para perder o bonde, como alertou o primeiro post neste blog.

Publicações científicas e não especializadas não cessam de editar reportagens especiais e notícias sobre o assunto. Na semana que passou foi a vez da Nature, que fez um apanhado das novidades do setor sob o título “Como ecstasy e psilocibina estão sacudindo a psiquiatria”.

O texto assinado por Paul Tullis trata dos testes clínicos com essas drogas –17 só em 2020– e do desafio posto para órgãos reguladores, que cedo ou tarde terão de retirar os psicodélicos da lista de substâncias banidas. Ao contrário do que supõem o senso comum e os conservadores proibicionistas, a ciência vem mostrado que elas podem ser usadas de maneira segura, têm benefícios médicos e não causam dependência –vale dizer, não faz sentido manter sua proscrição.

Testes clínicos com psicodélicos (Reprodução/Nature)

Dos 17 ensaios clínicos relacionados pela Nature, 13 investigam a psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos”, do gênero Psilocybe. Esses fungos alucinógenos têm longa história na ciência psicodélica e seu uso terapêutico começa a ser legalizado nos EUA, na esteira da maconha medicinal, avanço cultural que nem mesmo o governo primitivo de Donald Trump conseguiu barrar.

Outra droga que deverá ganhar atenção nos EUA é a ibogaína, por seu potencial para ajudar a domar a epidemia de mortes de dependentes de opioides, que poderá chegar a 100 mil vítimas em 2021. Originária do ritual Bwiti no Gabão e outros países da África, a substância já é usada em poucos centros da Costa Rica e do Brasil, por exemplo, que conseguem autorizações excepcionais para administrar o alucinógeno a drogadictos e o fazem sob controle de médicos, uma vez que pode desencadear arritmias cardíacas.

Um indício forte de que arrefece o preconceito contra psicodélicos como a ibogaína está no interesse que despertam entre investidores e, por extensão, nas publicações dirigidas a homens de negócio, como a agência Bloomberg. A droga é tratada de forma respeitosa em vídeo recente de sua série Moonshot, que já tinha 27 mil visualizações na segunda-feira (1º/2).

Um dos espectadores, identificado como CryptoMilitary Vet, comentou: “Psicodélicos me curaram de todas as minhas dependências, TEPT, e me mostraram que esta é a minha realidade e que a controlo por escolha. O passado só dói se eu permitir, mas eu sei que ele não existe mais, e assim me curei”.

A ciência brasileira tem a sorte de contar não só com grupos de pesquisa experimentados na pesquisa de psicodélicos –na UFRN, na UFRJ, na USP e na Unicamp, por exemplo—mas também com uma origem nos estudos sobre ayahuasca (DMT), de uso religioso autorizado. Os rituais tradicionais oferecem uma moldura de segurança para o consumo dessa droga poderosa, o setting acolhedor que as psicoterapias em teste se empenham em reproduzir com a decoração de ambientes e música suave.

Essa linhagem garante que pesquisadores como Sidarta Ribeiro (Instituto do Cérebro da UFRN) e Stevens Rehen (UFRJ/IDOR) cultivem o respeito por tradições xamânicas. Eles combatem a noção de que bastam as moléculas para obter efeito terapêutico, visão farmacológica reducionista compartilhada entre alguns pesquisadores.

“O trabalho mais difícil é o de encontrar com a dor do outro”, disse Sidarta quinta-feira (28/1) numa transmissão ao vivo do Instituto Phaneros com Stevens. “Quem sabe de settings não são os psiquiatras, mas sim os xamãs, que estão fazendo psicoterapia psicodélica há muito tempo. Precisamos ter delicadeza e cuidado com a experiência das pessoas. O ambiente hospitalar pode ser um problema.”

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Em 2021, psicodélicos sairão do gueto e invadirão até a tela de seu celular https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/#respond Sun, 03 Jan 2021 00:35:11 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Cerebro1Plasticidade-300x137.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=224 Antes mesmo das agruras da pandemia de Covid se estimava que, nos países mais ricos, metade das pessoas receberão algum diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida. Após mais de um ano de isolamento e medo, males da alma como depressão e ansiedade vão piorar até virar outra pandemia, e os tratamentos disponíveis são limitados.

Neste caso, porém, não será preciso desenvolver uma vacina a partir do zero, ainda que em tempo recorde. A neurociência está ressuscitando uma classe de substâncias –psicodélicos como psilocibina, ecstasy, LSD e ayahuasca– estudadas há mais de 60 anos e montando com elas uma nova onda que já inunda a imprensa especializada e leiga, chega à TV aberta e em breve estará na palma de sua mão.

Neste domingo (3), o renascimento psicodélico aparecerá no Fantástico, programa dominical superfamília da Rede Globo. A julgar pelo teaser, mostrarão pesquisas brasileiras que comprovaram efeito antidepressivo rápido e prolongado da ayahuasca, chá psicoativo de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ponto para o Instituto do Cérebro da UFRN.

Devem aparecer também estudos que investigam a aplicação de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), flagelo de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. Embora não seja considerado um psicodélico clássico como LSD, MDMA é a droga mais próxima de obter aprovação oficial como medicamento.

Em 2021 os psicodélicos sairão do gueto em que foram confinados pela proibição, nos anos 1970, e se banharão na luz da ciência e da respeitabilidade. A certeza de que este será o ano da virada levou um trio de pesquisadores do Canadá a escrever longo artigo no periódico Pharmacological Review reunindo o que se sabe sobre os mecanismos de ação desses compostos em termos bioquímicos e neurológicos, um guia de 76 páginas para psiquiatras caretas. Dos receptores para serotonina e outros neurotransmissores às teorias inflamatórias e entrópicas do cérebro doente, está tudo ali.

Reprodução/Pharmacological Review

Informalmente os psicodélicos já se infiltravam pelo tecido social por meio da microdosagem com psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), ayahuasca ou LSD, ou seja, recorrer a quantidades subclínicas de psicodélicos 2 ou 3 vezes por semana. Há pouca evidência científica da eficácia dessas microdoses para aguçar criatividade e produtividade, como defendem praticantes, mas elas se tornaram o meio mais popular de buscar os benefícios mentais sem enfrentar experiências psicodélicas plenas, descasamento meio puritano e controverso buscado também por alguns pesquisadores.

Microdosagem e uso recreativo de psicodélicos, apesar de seu baixo potencial para criar dependência, não se fazem inteiramente sem riscos. Pesquisadores sérios se inquietam com a renascida popularidade dos psicodélicos, mas não são todos que preferem mantê-los sob controle estrito no cercadinho da academia.

Cápsulas de cogumelos Psilocybe moídos, usados em microdosagem (Foto de Pedro Amaral)

Um dos que não temem exposição na esfera pública é Robin Carhart-Harris, que dirige no Imperial College de Londres o pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica. Em 2020, ainda antes de completar 40 anos e sem contar com financiamento público para pesquisa, RC-H publicou seu centésimo artigo científico.

Para 2021 ele promete divulgar os resultados de um estudo em que seu grupo comparou o efeito antidepressivo de apenas duas doses de 25 mg de psilocibina diretamente com 43 doses diárias de escitalopram. Tudo indica que um dos mais modernos medicamentos disponíveis para tratar depressão não se saiu tão bem na pesquisa quanto o rival psicodélico.

Em sua última incursão além do reduto dos periódicos especializados, Carhart-Harris escreveu um comentário para a revista Wired com o título “Big Pharma está para sintonizar [tune in] o potencial dos psicodélicos”. Além da referência ao termo médio do clássico lema de Timothy Leary (Turn on, tune in, drop out), o autor profetiza: “A medicina psicodélica vai começar a invadir o domínio estabelecido [mainstream] da saúde mental em 2021”.

Carhart-Harris, à esq., e Michael Pollan, autor de “Como Mudar sua Mente”, à dir. (Reprodução/MyDelica)

Seria a terceira onda da ciência psicodélica. Na primeira, ali pelos anos 1950, predominava a concepção psicotomimética –drogas como LSD serviriam para mimetizar psicoses e permitir seu estudo controlado. Uma onda mais benigna se levantou nos anos 1960, em que a alteração da consciência mediada por psicodélicos passou a ser usada em psicoterapia e, a seguir, se tornou popular entre hippies, alavancando a contracultura, a contestação política e, por fim, a reação proibicionista.

O neurocientista britânico apoia sua profecia sobre a chegada ao mainstream (portanto o avesso do comando drop out de Leary) na explosão de artigos científicos sobre o tema, nos últimos cinco anos, e na voga de filantropos e investidores de risco que doaram US$ 30 milhões (R$ 156 mi) para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos organizar teste clínico com MDMA para TEPT e US$ 115 milhões (quase R$ 600 mi) para a empresa Compass Pathways fazer o mesmo com psilocibina para depressão.

RC-H não espera sentado pela aprovação da comunidade científica e dos órgãos reguladores aos quais caberia levantar as restrições ainda vigentes para substâncias psicodélicas. Cioso de que o uso só tende a crescer, por vias legais ou ilegais, ele fundou uma empresa e promete lançar ainda neste ano um aplicativo de celular, MyDelica, voltado para a redução de danos entre usuários.

Reprodução/MyDelica

“MyDelica oferece um marcador personalizado de progresso e um serviço de aconselhamento baseado em evidências para educar e salvaguardar jornadas psicodélicas”, promete a página provisória do app na internet. Na ilustração de como será a tela do programa no celular, acima de gráficos com marcadores e tendências de bem-estar, aparece o registro “Domingo 19 de abril”.

Reprodução/MyDelica

Não é qualquer data. Nela se comemorará o Dia da Bicicleta, para celebrar a primeira viagem com LSD, realizada em 1943 por Albert Hoffman após ingerir 250 microgramas de sua invenção no laboratório Sandoz e voltar pedalando para casa, em meio a visões psicodélicas.

Hoffman escreveu uma biografia com o título “LSD, Minha Criança Problema”. Aos 78 anos, ela enfim alcança a maturidade.

 

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Brasileiros apontam potencial da ayahuasca para prevenir suicídio https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/19/brasileiros-apontam-potencial-da-ayahuasca-para-prevenir-suicidio/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/19/brasileiros-apontam-potencial-da-ayahuasca-para-prevenir-suicidio/#respond Thu, 19 Nov 2020 22:48:27 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/AyahuascaCopoDanielMarencoFolhapress-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=107 Cerca de 800 mil pessoas se matam por ano no planeta, estima a Organização Mundial da Saúde (OMS). As Américas são a única região do mundo onde a taxa de suicídios aumentava, puxada pelos EUA, e ela poderá subir ainda mais sob os rigores da pandemia de Covid-19. Poderiam os psicodélicos ajudar a prevenir esses atos extremos de desespero?

Duas pesquisas recentes no Brasil indicam que sim, talvez a ayahuasca possa contribuir para isso. Já se comprovou o efeito antidepressivo do chá, mas os novos estudos são os primeiros no exame de seu potencial para desarmar ideações suicidas.

Prepara-se a bebida ritual de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal com a cocção de folhas do arbusto chacrona (Psychotria viridis) e do cipó mariri (Banisteriopsis caapi). Por sua condição de sacramento, ela é legal no Brasil, o que facilita a pesquisa com a substância psicoativa proibida dimetiltriptamina (DMT) presente na chacrona.

Arbusto chacrona, cujas folhas são usadas no preparo do chá ritual ayahuasca (Juca Varella/Folhapress)

Fortaleceu-se assim, no país, o campo de investigação da ayahuasca. Em 2019 ele rendeu o primeiro teste clínico controlado por grupo placebo de um psicodélico para tratar depressão resistente, publicado pelo grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN).

Os dados sobre tendências suicidas são filhotes desse trabalho pioneiro. Dos 29 participantes do ensaio clínico, 14 tomaram ayahuasca, e 15, uma substância inócua (o placebo). A publicação se deu exato um ano atrás no periódico Frontiers in Pharmacology.

O objetivo primeiro era detectar efeito antidepressivo do chá, o que foi comprovado. Os psiquiatras avaliaram também suas tendências suicidas, numa escala padronizada de 0 (gosta da vida e a aceita como é) a 6 (planos explícitos ou preparação para suicídio). Constataram as ideações suicidas diminuíram significativamente só no grupo da ayahuasca e que o efeito benéfico se manteve por uma semana.

O segundo estudo sobre suicídio tem dois autores em comum com esse primeiro, Richard Zeifman, da Universidade Ryerson (Canadá), e Jaime Hallak, da USP em Ribeirão Preto. Publicado quase um ano depois, em 29 de outubro, saiu na revista Psychopharmacology.

A diferença é que, neste caso, todos os 17 pacientes avaliados tomaram ayahuasca, ou seja, não houve grupo placebo. Por outro lado, a duração foi maior, 21 dias –e mais uma vez se constatou a permanência da redução das ideias suicidas.

Em ambos os artigos os autores assinalam que são estudos preliminares, realizados com amostra pequena de portadores de depressão grave. Recomendam, em face dos resultados promissores, realizar ensaios com amostras maiores para confirmar o achado. Até lá, não conte com psiquiatras a receitar ayahuasca como estratégia de prevenção do suicídio.

Se confirmado o benefício potencial do chá, entretanto, seria uma opção bem-vinda. Uma dose única de ayahuasca tem efeito imediato, enquanto os antidepressivos hoje disponíveis podem demorar semanas para fazer efeito, e mais de um terço dos pacientes não melhora com eles.

A cetamina, outra substância psicodélica, tem sido empregada para agir rapidamente contra ideações suicidas. Diferentemente da ayahuasca, requer uso continuado e pode acarretar risco de dependência. A escetamina, composto aparentado, recebeu autorização da Anvisa para uso na forma de spray.

Cogumelo do gênero Psilocybe (Hans Braxmeier/Pixabay)

Não se sabe ainda, em detalhe, como a ayahuasca –e outros psicodélicos como a psilocibina de cogumelos— age contra a depressão e pensamentos suicidas. Eles parecem flexibilizar e enriquecer a comunicação entre áreas cerebrais, o que pode abrir caminho para interromper ruminações.

Essa plasticidade teria origem na formação de novas conexões entre neurônios, e um dos compostos presentes na ayahuasca, a harmina, já demonstrou favorecer a formação de sinapses. Também parece estar envolvido um efeito anti-inflamatório, mas ainda faltam muitas peças nesse quebra-cabeças.

O fato de drogas psicoativas como DMT, LSD e MDMA permanecerem na lista de substâncias proibidas ergue um obstáculo considerável para a rediviva ciência psicodélica. Aplicações para condições como estresse pós-traumático, ansiedade, alcoolismo e anorexia ficam assim desnecessariamente dificultadas, pois esses compostos têm baixa toxicidade e baixo potencial para causar dependência.

Soa particularmente irracional deter a pesquisa de alternativas promissoras contra a perda de vidas para o desespero. O suicídio é a segunda causa de morte para jovens de 15 a 29 anos (depois de acidentes de trânsito e à frente da violência urbana), e eles estão entre os que mais sofrem as consequências da pandemia, apartados do estudo e dos empregos que lhes permitem crescer na vida.

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Estudos atestam benefício de psilocibina, ayahuasca e LSD para deprimidos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/12/estudos-atestam-beneficio-de-psilocibina-ayahuasca-e-lsd-para-deprimidos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/12/estudos-atestam-beneficio-de-psilocibina-ayahuasca-e-lsd-para-deprimidos/#respond Thu, 12 Nov 2020 19:13:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/IlustracaoRodrigoVisca-300x156.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=88 Apenas um dia após a vitória de Joe Biden, a Universidade Johns Hopkins (JHU) ampliou a janela de otimismo com uma boa nova: a psilocibina de cogumelos “mágicos” diminui rapidamente sintomas de depressão, como indicavam estudos preliminares.

A mesma conclusão aparece reforçada com robusto trabalho estatístico da pesquisadora brasileira Nicole Galvão-Coelho, do grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que pesquisa ayahuasca. A novidade aqui é a confirmação da presença dos psicodélicos clássicos DMT (presente na ayahuasca) e LSD no rol de potenciais e potentes antidepressivos.

Nunca é demais lembrar que LSD e psilocibina são drogas proibidas, inclusive no Brasil. Aqui, só o uso religioso da ayahuasca está autorizado.

A aplicação desses compostos contra transtornos mentais é ainda experimental, vale dizer, psiquiatras não estão em princípio autorizados a receitá-los. Apesar disso, a descriminalização da psilocibina avança em cidades e estados americanos.

Começando pela notícia sobre psilocibina: não foi o primeiro teste clínico com o composto psicodélico originalmente extraído de fungos Psilocybe, mas foi até aqui o mais promissor, porque randomizado. Ou seja, por ter comparado dois grupos entre os quais participantes foram distribuídos por sorteio.

O novo artigo científico da JHU foi liderado por um bambambã da área, Roland Griffiths, cabeça do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência criado na Johns Hopkins há um ano. O trabalho saiu no periódico JAMA Psychiatry, da Associação Médica Americana.

Em 2016 seu grupo já tinha comprovado redução de ansiedade em pessoas com tipos letais câncer. O benefício se mantinha mesmo seis meses após uma única dose alta de psilocibina.

Artigo de Roland Griffiths em Science Reports sobre psilocibina e neuroplasticidade
Diagrama mostra fortalecimento (vermelho) e enfraquecimento (azul) entre regiões do cérebro 1 semana e 1 mês após alta dose única de psilocibina (Reprodução)

Em fevereiro passado, o mesmo laboratório publicou outro estudo demonstrando que os efeitos emocionais da viagem com a substância dos cogumelos duram sete dias. Além disso, comprovou que novas conexões cerebrais –provável explicação para o efeito antidepressivo– permaneciam um mês depois.

O trabalho mais conhecido sobre psilocibina para depressão partiu da equipe de David Nutt e Robin Carhart-Harris no Imperial College de Londres. Também em 2016, eles publicaram na Lancet Psychiatry bons resultados de um teste com 12 portadores de depressão resistente a tratamento, com redução de sintomas três meses após duas doses de psilocibina ministradas com sete dias de intervalo. No entanto, não houve comparação com outro grupo.

Neuroplasticidade, rede de modo padrão, psicodélicos
Atividade registrada no cérebro sob efeito de LSD à dir. e de placebo à esq. (Divulgação/Imperial College, Beckley Foundation

Griffiths e seus colegas inovaram ao distribuir 24 participantes com depressão, aleatoriamente, em dois contingentes. O primeiro foi tratado com psilocibina de imediato, enquanto os outros tiveram de aguardar oito semanas, uma forma de criar uma amostra de controle e, assim, tentar discriminar eventual melhora espontânea de sintomas no período de expectativa do efeito exclusivo da droga.

Constatou-se já no primeiro dia após a dose uma redução nos sintomas de depressão, medidos por questionários e escalas padronizados. Passadas quatro semanas, metade do grupo ainda estava em remissão, com escores insuficientes para diagnóstico de depressão maior –uma surpresa para Griffiths, como ele conta em vídeo divulgado pela JHU (disponível em inglês; há também comunicado em espanhol da universidade).

O pesquisador explica que a depressão maior (categoria usada nos EUA) afeta 10% da população americana. O custo anual para a sociedade americana seria da ordem de US$ 210 bilhões (R$ 1,1 trilhão, o equivalente a 1/7 do PIB brasileiro).

Na avaliação de Griffiths, o estudo veio reforçar a perspectiva de a psilocibina terminar autorizada como medicamento, uma vez que dois grandes grupos (Compass Pathways e Uzona) já se preparam para realizar testes clínicos com vistas à licença para comercialização da FDA, agência de fármacos dos EUA. Mas isso deve demorar 4 a 6 anos, pela sua estimativa.

“Em vez de martelar uma parede, de repente eu estava martelando um prego”, descreve um dos 24 participantes do estudo em outro vídeo divulgado pela JHU (também apenas em inglês). Foi sua maneira de exemplificar a baixa eficácia dos tratamentos a que se submetera por mais de dez anos, sem sucesso real para calar o que chamou de “crítico interior” a paralisá-lo.

O jovem comparou o reset cerebral que experimentou com a psilocibina ao que acontece com argila. A mente do deprimido seria como uma massa de barro seco, com o qual não se consegue moldar nada. A dose psicodélica equivaleria a lhe adicionar água, tornando-a maleável de novo.

Essa neuroplasticidade e a ação anti-inflamatória de psicodélicos como a DMT da ayahuasca são o campo de pesquisa da fisiologista Nicole Galvão-Coelho, da UFRN, que faz atualmente um pós-doutorado na Universidade de Western Sydney (Austrália). Ela informou a este blog que teve mais um artigo sobre o assunto aceito para publicação.

A pesquisadora integrou o grupo de Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN, que publicou em 2019 o primeiro teste randomizado controlado por placebo, no mundo, de um psicodélicopara depressão (ayahuasca, no caso). Apesar de pioneiro, o estudo peregrinou por uma dúzia de publicações científicas antes de ser aceito.

O novo trabalho, que sairá no periódico Psychopharmacology, não é pesquisa de laboratório, mas uma meta-análise –artigo que reúne dados de vários estudos experimentais para robustecer a evidência estatística de eficácia para determinados tratamentos. No caso, o benefício de psicodélicos clássicos para quem sofre de depressão.

Galvão-Coelho listou, com seus colegas australianos, 12 testes clínicos sobre efeitos de psilocibina, DMT e LSD em pacientes deprimidos. Em lugar de 1 ou 2 dezenas de participantes, como é usual nesses estudos preliminares com psicodélicos, a amostra reunida abarca 257 pessoas, 124 delas sem sintomas de depressão e 133 com o transtorno mental.

Os critérios de inclusão foram bem restritivos, pois o levantamento só tratou de ensaios clínicos randomizados com grupo de controle baseado em placebo (substância inócua ou dose mínima do composto em teste, incapaz de desencadear viagens psicodélicas). Os artigos da JHU e do Imperial mencionados acima, por exemplo, ficariam de fora.

A coleção encorpada de resultados medidos depois de doses médias e altas de LSD, ayahuasca ou psilocibina vem fortalecer a conclusão: sim, psicodélicos reduzem os sintomas de depressão significativamente, do ponto de vista estatístico, tanto de imediato (3 a 24 horas) quanto em prazo mais largo (16 a 60 dias).

Estima-se que 10% da população brasileira sofra com depressão, mais de 20 milhões de pessoas, contingente que deve aumentar sob a pandemia de Covid-19 e a confusão sanitária comandada por Jair Bolsonaro. Mas elas terão de esperar bem mais que os 4 ou 6 anos previstos por Roland Griffiths para contar com novos antidepressivos, se as pesquisas científicas desprezadas no Brasil seguirem confirmando o potencial dos psicodélicos.

 

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Anvisa aprova spray nasal psicoativo para tratar depressão grave https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/05/anvisa-aprova-spray-nasal-psicoativo-para-tratar-depressao-grave/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/05/anvisa-aprova-spray-nasal-psicoativo-para-tratar-depressao-grave/#respond Thu, 05 Nov 2020 13:03:14 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/DEpressaoAdolescenteKnapp2019-300x199.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=76 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou terça-feira (3) a comercialização do medicamento Spravato, um spray nasal para tratar pessoas que tomaram sem sucesso dois medicamentos antidepressivos, a chamada depressão resistente. Poucos sabem, mas a escetamina (ou esquetamina), é uma droga psicodélica.

A venda ainda depende de fixação de preço, o que pode demorar até três meses. Para tanto, o laboratório Janssen precisa que o remédio passe pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), um órgão interministerial.

Em mercados estrangeiros, como União Europeia, EUA e Canadá, o preço da dose está em torno de US$ 240 (cerca de R$ 1.300). A recomendação do laboratório é aplicação semanal nos primeiros 1 ou 2 meses, seguida de manutenção com doses a cada 1 ou 2 semanas. Uma terapia continuada, portanto, pode custar milhares de dólares.

Estima-se que 300 milhões de pessoas no mundo sofram com depressão. No Brasil, seriam 10-12 milhões, 30-40% dos quais apresentam a forma resistente aos antidepressivos mais comuns.

Um estudo de custo-efetividade concluiu que a escetamina não se presta para larga utilização em saúde pública. Para tanto, o spray teria de custar cerca de 40% menos, na estimativa de Eric Ross, do Hospital McLean (afiliado à Escola Médica Harvard).

Spravato, da Janssen, princípio aito escetamina, para depressão resistente a tratamento
Ilustração do aplicador de spray nasal Spravato na bula do remédio (Reprodução)

Na realidade, não se trata de um novo medicamento. A substância escetamina é um dos componentes do anestésico cetamina (quetamina), em uso há muitos anos, que contém mistura de dois isômeros (variantes espelhadas da mesma molécula). A escetamina se constitui de apenas um deles, mais efetivo.

Ambas as drogas não são consideradas substâncias psicodélicas clássicas, como LSD e psilocibina, porque não agem sobre o sistema do neurotransmissor serotonina. Sua ação se dá sobre outro composto atuante nas sinapses, o glutamato, mas seu efeito –em geral prazeroso– também envolve dissociação psíquica, confusão mental e eventuais alucinações.

A cetamina tem sido usada para recreação na cena noturna, onde se tornou conhecida como “vitamina K” (de “ketamine”, o nome em inglês). Pode também aparecer como ingrediente de ecstasy adulterado, no qual traficantes misturam ao MDMA original coisas como anfetamina, metanfetamina e cafeína. Já se verificou que o uso prolongado de cetamina pode causar dependência.

 

Ecstasy adulterado identificados em pesquisa que encontrou anfetamina, metanfetemina,cetamina, cafeína etc. nas pílulas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Na forma do spray da Janssen, o remédio só poderá ser ministrado em ambientes controlados, como clínicas e hospitais, sob supervisão, pois há efeitos adversos. A droga tem outros impactos físicos, além dos psíquicos, como taquicardia e hipertensão. Por ser controlada e muito mais cara que a cetamina, espera-se que a escetamina não se converta em substância de abuso.

Conhece-se há pelo menos 15 anos o efeito antidepressivo da cetamina/escetamina, tanto que a primeira já vem sendo usada por meio de injeção intravenosa em consultórios psiquiátricos (com ou sem autorização especial da Anvisa). Uma de suas vantagens é a ação rápida, com diminuição dos sintomas de depressão em até 24 horas.

Muitos médicos a prescrevem na modalidade “off-label” (sem prescrição registrada) para prevenção de tendência ao suicídio. Mas os testes clínicos do Spravato não foram capazes de comprovar estatisticamente tal eficácia, como deixa claro a bula do remédio.

Mesmo assim, a aprovação da Anvisa inclui a indicação para quem tem ideações suicidas. A justificativa é que os estudos mostraram neles também uma melhora nas outras manifestações depressivas.

O psiquiatra Carlos Cais, especialista em prevenção de suicídio que coordena o Ambulatório de Transtornos da Ansiedade no Hospital de Clínicas da Unicamp, avalia que houve imprudência na disseminação terapêutica desse psicodélico. Entre outras razões, pela fama injustificada de ser eficaz contra tendências autodestrutivas.

“É um território sem lei”, diz ele. Na sua opinião, alguns colegas não estariam sendo rigorosos na triagem de pacientes que não devem usar cetamina, como os que têm transtorno de personalidade borderline.

Cais teme que a cetamina continue a dominar o contexto clínico, por ser mais barata que a escetamina da Janssen. Também receia que a onda conservadora no Brasil termine pondo ambas a perder, fechando uma porta que a ciência mal começou a abrir.

“Qualquer passo mal dado pode pôr tudo para trás. Tem muita gente buscando pretexto. A mistura de desinformação com leviandade pode queimar tudo”, alerta. “Não mudou o paradigma da prevenção do suicídio. O que não é surpresa, porque se trata de um fenômeno complexo.”

A Janssen afirma que a escetamina nasal funciona contra depressão por modular receptores do glutamato no cérebro que ajudam a restaurar as conexões sinápticas entre neurônios de pessoas com depressão. Seria surpreendente, contudo, se uma simples molécula pudesse, sozinha, desarmar ideações suicidas.

A explicação do laboratório se restringe ao vocabulário neurobioquímico, ainda a moldura intelectual predominante entre psiquiatras. No campo da ciência psicodélica, porém, considera-se que compostos como LSD, psilocibina e ibogaína funcionam porque a neuroplasticidade —formação de novas sinapses— abriria caminho alternativos para a pessoa que sofre contornar ideias fixas e comportamentos repetitivos.

Não deve ser diferente com a escetamina. Mas é compreensível que uma empresa farmacêutica prefira dissociar seu produto das viagens alucinantes que movimentaram a contracultura, relegando-as à condição de efeitos adversos.

 

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