Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Parapsicodélicos pretendem alavancar bilhões no mercado de saúde mental https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/#respond Mon, 29 Nov 2021 14:50:15 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/GREEDYBRAIN-300x147.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=772 O renascimento psicodélico está à beira de um cisma: a ultrapassada dicotomia entre química e experiência subjetiva se reencarna, agora, na oposição entre investidores recém-chegados obcecados com a neuroquímica e tradicionalistas que cultuam a alteração da consciência e a dissolução do ego como fundações do tratamento de transtornos mentais, como a depressão.

Não se trata apenas de crenças filosóficas ou modelos explicativos concorrentes para o potencial de cura dos psicodélicos, mas sim de abordagens díspares sobre como a nascente terapia alternativa será incorporada no mercado de serviços de saúde. Ou, se quiserem, um embate dos parapsicodélicos contra os psicodélicos como os conhecemos.

De um lado, os esteios são patentes, startups, regulamentação por autoridades sanitárias e cobertura dos novos protocolos de tratamento por seguradoras de saúde. Neste caso, a rentabilidade cresceria muito se eles empregassem drogas de efeito curto, de preferência sem risco de ocasionar viagens psicodélicas complicadas ou até mesmo sem envolver psicoterapia prolongada.

Na outra vertente, herdeiros de uma longa tradição de práticas xamânicas e clínicas alternativas subterrâneas trabalham por preservar, em parceria com a renascida ciência psicodélica, a ênfase no cuidado e na elaboração psíquica legados pelo uso tradicional de substâncias psicodélicas.

No campo aqui apelidado de parapsicodélico se esboçam três modelos de negócio para explorar no mercado o potencial para tratar condições que vão de depressão resistente a medicamentos até enxaqueca, passando por estresse pós-traumático, dependência química, ansiedade, TOC, anorexia e, talvez, Alzheimer.

O primeiro modelo ainda se encaminha para manter no tratamento o componente psicoterápico, restrito porém a uma dúzia de encontros com facilitadores. O processo começaria com reuniões para preparo do paciente sobre o que esperar da experiência com psicodélicos, depois sessões de dosagem e, em seguida, de integração (conversas para interpretar conteúdos emergentes e obter pistas úteis para conduta na vida cotidiana).

Empresas como a Compass Pathways planejam cercar com patentes o pacote todo, de sua variedade purificada da psilocibina de cogumelos “mágicos”, alcunhada COMP360, ao protocolo de atendimento. A propriedade intelectual sobre substâncias e práticas milenares, entretanto, vem sofrendo intensa resistência.

Mesmo essa modalidade enfrentaria alguns obstáculos no contexto usual de serviços de atendimento, pela longa duração do efeito da psilocibina, MDMA, LSD e ayahuasca e outros compostos psicodélicos em estudo (de 4 a 12 horas). O ideal seria contar com drogas de efeito curto como a cetamina (ou ketamina), substância dissociativa com ação diversa de psicodélicos clássicos como LSD e psilocibina.

A cetamina vem sendo usada com algum sucesso no tratamento rápido de depressão. Ela tem as vantagens de ser manejável em consultas de 1 a 2 horas e de estar legalizada, inclusive com a recente autorização para psiquiatras ministrarem a variante escetamina na forma de spray antidepressivo patenteado.

 

Nessa busca por psicodélicos de duração curta se engajou Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), agraciado com US$ 27 milhões (R$ 150 milhões) da agência americana Darpa (Projetos em Pesquisa Avançada de Defesa). Ele vai liderar um grupo de laboratórios no esforço de projetar medicamentos eficazes contra depressão, ansiedade e abuso de substâncias “sem efeitos adversos graves”.

Por força dessa limitação temporal emerge uma segunda estratégia, ainda como proposta experimental, para encaixar terapias psicodélicas no mercado: desenvolver moléculas com efeito psicodélico cujo efeito não ultrapasse duas horas. Essa é uma das linhas em estudo pelos acionistas da Atai Life Sciences, que é também uma grande investidora na Compass, e pela Field Trip Health, do Canadá, segundo reportagem de Will Yacowicz na Forbes.

A terceira via para exploração de psicodélicos em saúde mental vai além e pretende livrar-se completamente do que se chama de viagem, o efeito dissociativo e alucinógeno desses compostos. Esse é o plano por exemplo de David Olson, da Universidade da Ca;ifórnia em Davis.

Olson já publicou estudo sobre uma droga análoga à ibogaína que desenvolveu com a finalidade de oferecer uma alternativa a esse derivado de uma planta africana para tratar dependentes químicos, mas desprovido do prolongado e intenso efeito onírico desencadeado pela substância originária do Gabão. Ele é um dos fundadores da empresa Delix Therapeutics, de Boston, que também tem depressão e demência na mira.

Imagem de Robert Couse-Baker (Creative Commons)

Ninguém está ainda ganhando dinheiro com um desses três modelos tecnocientíficos de negócio, mas eles já permitiram levantar quantidades consideráveis de capital. A eles se contrapõem pelo menos outras três estratégias para fazer o potencial terapêutico dos psicodélicos chegar ao público hoje desassistido pela farmacopeia psiquiátrica.

As três se caracterizam por não terem fins lucrativos, por reivindicar-se como herdeiras da tradição de cura e autoconhecimento dos tempos da contracultura e por não se ancorar na propriedade intelectual para se sustentar, embora não a excluam. O trio alternativo já foi mais de uma vez apresentado neste blog, por isso não seria o caso de estender-se sobre elas:

  1. O modelo de corporação sem fins lucrativos seguido pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) em seu esforço de décadas para regulamentar o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático com psicoterapia assistida por MDMA, o que pode acontecer em 2023;
  2. A estratégia de ciência aberta capitaneada pelo Instituto Usona na competição com a Compass em ensaios clínicos da psilocibina para depressão, inclusive com o patrocínio de um repositório de estudos e saber tradicional sobre cogumelos “mágicos” e outros psicodélicos de uso ritual, Porta Sophia, para questionamento de patentes pela existência de conhecimento prévio;
  3. A inovadora experiência em curso no estado americano de Oregon para licenciamento de terapias com psilocibina, certificação e controle de procedência da composto e formação de terapeutas especializados, em paralelo com a progressiva descriminalização do uso adulto de várias drogas ditas “enteogênicas” (termo alternativo, menos estigmatizado, para designar psicodélicos).

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

 

 

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Detroit e Seattle abrem caminho para descriminalização de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/#respond Tue, 09 Nov 2021 12:56:21 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/DETROITponteAmbassador-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=733 Detroit e Seattle, cidades norte-americanas mais conhecidas de brasileiros por seu papel na música pop, entraram para a lista de municipalidades cujas polícias não mais perseguirão quem usa psicodélicos. Farão companhia, assim, para Denver, Santa Cruz, Oakland, Ann Arbor, Cambridge, Sommerville e Northampton.

No plano regional, legislações parecidas foram adotadas em Oregon e Washington (D.C.). Califórnia e Colorado poderão segui-los dentro de pouco tempo, relegando substâncias como psilocibina (cogumelos “mágicos”), ayahuasca, ibogaína e mescalina à condição de prioridade mais baixa para repressão policial se não forem destinadas ao comércio ilegal.

Não se trata, portanto, de legalização, mas de orientar agentes da lei para deixar de prender portadores de pequenas quantidades dessas drogas alteradoras da consciência. O carro-chefe das campanhas movidas por organizações como Decriminalize Nature tem sido a psilocibina, com seu reconhecido potencial terapêutico (mais sobre  a substância no final do texto).

“Curandera” em Huautla de Jimenez, Oaxaca, México (Efren Del Sosa/Creative Commons)

É o que se chama de uso adulto. As mudanças refletem evidências científicas de que psicodélicos clássicos como mescalina, LSD, psilocibina e dimetiltriptamina (DMT, da ayahuasca) têm perfil toxicológico administrável, não causam dependência e apresentam, sim, potencial médico. O que não quer dizer que não tenham contra-indicações e que possam ser usados por qualquer pessoa; não se recomenda, por exemplo, para quem tem histórico pessoal ou familiar de psicose.

Nessas novas normas se usa em geral a denominação de “enteógenos”, de radicais gregos para algo como “gerador de inspiração (divina)”, e não “psicodélicos”. É alusão aos usos ancestrais de plantas e fungos em cerimônias, que os militantes consideram um direito fundamental.

A medida aprovada em Seattle diz que “enteógenos têm sido reconhecidos como sagrados para culturas humanas no mundo todo, por séculos, e continuam a ser reverenciadas e usadas até hoje por líderes e comunidades culturais e espirituais veneráveis e sinceros através do mundo e dos Estados Unidos”.

Em Oregon, aprovou-se em 2020 por 56% do voto popular a Medida 109, que cria um programa estadual de psicoterapia com o psicoativo dos cogumelos do gênero Psilocybe. Na mesma eleição saiu referendada a Medida 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), que descriminaliza a posse pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína.

No caso de Seattle, regulamentou-se apenas o uso da mescalina sintética, não obtida diretamente do peiote, cacto de reprodução lenta que cresce no sudoeste dos EUA e no México e caminha para risco de extinção na natureza se for coletado de forma intensiva. É uma vitória de grupos de indígenas norte-americanos, como os praticantes da Native American Church, que temem por sua planta sagrada.

Psilocibina x MDMA

A empresa britânica Compass Pathways, objeto de controvérsia por suas patentes de psilocibina em psicoterapia para depressão, anunciou que fará ensaio clínico de fase 2 sobre tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) com a mesma droga. Serão 20 pacientes no estudo a cargo do King’s College de Londres.

O mesmo transtorno é objeto do teste clínico mais avançado de psicodélico para TEPT, de fase 3, com o empatógeno MDMA (ou ecstasy, que não ocasiona efeitos visuais), patrocinado pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos. O Boletim Psylocybin alpha ouviu a respeito Rick Doblin, líder da entidade mais conhecida pela sigla em inglês Maps.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Rick disse não ver a psilocibina para TEPT como concorrente, pois se trata de maximizar benefícios para portadores: “Dou boas-vindas à pesquisa da Compass sobre psicoterapia assistida por psilocibina para TEPT, assim como para pesquisas com cetamina, ibogaína e outros tratamentos”.

A própria Maps investiga o uso de maconha para TEPT em 300 veteranos de guerra, com financiamento de US$ 12,9 milhões (mais de R$ 70 milhões). Rick vê com interesse a ideia de comparar e detalhar efeitos de ambas as drogas, inclusive para investigar a possibilidade de associá-las em fases sucessivas do tratamento, ou mesmo em conjunto, no que se conhece como “candy-flipping”.

“É nossa opinião que a terapia assistida por MDMA tem probabilidade de ser mais segura e eficaz do que a terapia assistida por psilocibina para TEPT, ou LSD, por causa das propriedades redutoras do medo no MDMA. Entretanto, essa é uma questão empírica que precisa ser resolvida por meio de pesquisa, e é por isso que damos as boas-vindas ao estudo da Compass”, disse o dirigente da Maps ao boletim.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

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Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/#respond Mon, 16 Aug 2021 19:49:30 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/IbogaGiselleCamargo-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=568 Aos 37 anos, a catarinense Giselle Camargo não tem do que reclamar, ao menos em aparência: jornalista bem-sucedida fora do eixo SP-RJ-DF, diretora e apresentadora do podcast pioneiro Anticast (criado em 2011, está na origem da série de TV “Caso Evandro”), mãe de um menino de cinco anos morando numa das capitais com melhor qualidade de vida (Curitiba).

Em 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro, angustiada com a situação política e fantasmas próprios, passou a beber, entornando mais de uma garrafa de vinho por dia. Sentia esvair-se o controle da própria vida, do peso, do sono, da depressão. Tomou a decisão de reagir, e buscou na ibogaína ajuda para tirar o pé do lodo existencial em que chafurda o país: “Estamos todos doentes no Brasil”.

Cresceu numa família adventista de São Francisco do Sul (SC), onde o pai era sindicalista. Drogas não faltavam na cidade portuária. Conviveu com mais de um parente dependente químico.

Aos 23 anos partiu sozinha para São Paulo, onde teve contato com maconha, ecstasy e cocaína, sem apegar-se a nenhuma delas. “Tomei um quarto de LSD e foi horrível, muito medo.” Remédios para emagrecer eram uma constante desde os 14 anos. Em 2009 começou a tomar antidepressivos.

Com o casamento e a gravidez, a jovem de 1m72 engordou e chegou aos 127 kg. Uma cirurgia bariátrica a devolveu para 69 kg, mas ela começou a beber, algo não incomum em quem faz a cirurgia de redução do estômago. O ponteiro da balança voltou a subir: 72, 74, 78 kg.

Na pior fase, estava bebendo já de manhã, mesmo de ressaca. Seguia trabalhando normalmente e decidiu que ia mudar a vida de “alcoolista funcional”, como se define. Não se animou com tratamentos convencionais, pouco eficazes. Aí se lembrou da recomendação de um psiquiatra a um parente, anos antes, de terapia com ibogaína para dependência química.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta africana de cuja raiz se extrai a ibogaína(Marco Schmidt/Creative Commons)

“Estou velha, no sentido de mais madura. Fui atrás. Já deu. Não tem como não dar [certo]”, contou Giselle ao blog no final de maio. Essa primeira conversa ocorreu quatro dias antes de sua sessão com ibogaína em Ourinhos (SP), aos cuidados do médico Bruno Rasmussen Chaves e do psicólogo Bruno Ramos Gomes, aos quais chegou depois de muita pesquisa, como convém a uma jornalista.

O primeiro passo foram consultas remotas de preparação, com Gomes. Falou de seu medo de morrer e deixar o filho sozinho, caso algo acontecesse com ela e o marido em trânsito para o interior paulista.

Recebeu esclarecimentos sobre o baixo risco do procedimento, que Chaves compara com o de uma pequena cirurgia, e preferiu deixar uma carta para o menino explicando o propósito da viagem. No dia 1º de junho tornou-se uma entre mais de 2.000 pacientes tratados com ibogaína pelo médico.

Chaves, um gastroenterologista, começou a ministrar o composto da planta africana Tabernanthe iboga em 1994. Travou contato com o potencial terapêutico do extrato em encontro casual com Howard Lotsof, ex-dependente que abandonou a heroína e se tornou apóstolo da ibogaína nos Estados Unidos, onde ela permanece proibida (no Brasil se veda o comércio, mas a Anvisa admite importação, caso a caso, da droga não regulamentada).

Um pouco dessa história vai contada no quarto capítulo do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora), em que falo também do uso da iboga no culto Bwiti do Gabão. Nos próximos dias a newsletter MAPS Bulletin  publicará artigo sobre iniciativas pioneiras de pesquisadores brasileiros com ibogaína para drogadição.

O leitor também pode informar-se diretamente com Chaves, Gomes e o psiquiatra André Brooking Negrão, colaboradores num ensaio clínico da USP sobre dependência de crack e cocaína que participaram em 15 de julho de uma conversa sobre ibogaína organizada por Chacruna Latinoamérica.

Giselle tomou às 8h30 uma dose moderada de hidrocloreto de ibogaína (12 mg por quilo de peso), na versão semissintética com 99% de pureza da empresa Phytostan utilizada por Chaves, que mantém seus pacientes em observação por 24 horas na Santa Casa de Ourinhos. Em ambiente hospitalar, com monitoramento contínuo, fica mais fácil intervir no caso de raras arritmias cardíacas, que podem ser fatais.

Há registro de 33 mortes no mundo após ingestão de ibogaína, em geral associadas com doenças cardíacas preexistentes ou uso concomitante de outras drogas, como heroína e cocaína. Chaves nunca teve um caso de complicação grave assim.

A jornalista passou então pelas três fases características do efeito do alcaloide. Após uma hora, começou a sentir uma vibração intensa e, em seguida, tontura e zunido no ouvido, recebendo a recomendação de permanecer deitada.

Precisou de ajuda de uma enfermeira para caminhar até o banheiro. Batimentos cardíacos subiram para 89 por minuto, quando seu normal é 65-70, mas achou que era muito mais. “Aí eu caí, uma sensação no estômago, caindo no escuro, como num filme do Tim Burton.”

Era a segunda etapa, comumente descrita como inundação de pensamentos. “Eu chamaria de loucura, loucura, loucura”, conta Giselle. As primeiras imagens a passar na tela dos olhos fechados foi do marido, depois irmã, mãe e, apesar de poucas imagens da infância relatadas por outros psiconautas, uma senhora negra centenária de quando era criança, dona Alaíde.

“Pessoas para quem tenho de pedir perdão”, diz. “Chorei muito, muito. Estava sofrendo de olhos fechados. Experiências premonitórias muito doloridas.” Mas Giselle se sentia no comando da própria viagem, que lhe rendeu lampejos felizes: “Tive a sorte de ter uma mãe que gargalha”.

A bebida não apareceu em primeiro plano. Como diz Gomes, que defendeu em maio uma tese de doutorado na Unicamp sobre 12 pacientes tratados com ibogaína, ela não traz o que a pessoa quer, mas sim o que a pessoa precisa.

Giselle entrou na terceira etapa, de reflexão, que se estendeu por pelo menos 72 horas, com duas convicções. Uma: “Sou uma pessoa muito boa, apesar de ter magoado muita gente. Antes era muito crítica, achava ruim tudo que fazia”. Outra: “O que passou, passou; não vou conseguir voltar no tempo”.

Ela não encontra palavras para descrever o pico do efeito. “É inefável, não consigo dizer. Surreal. Pesado. Difícil”, afirma. “Espero nunca mais fazer isso de novo. É foda, foda, foda. Se não estiver muito preparada, é de endoidecer. Já saltei de paraquedas, e é mais difícil, é se jogar no desconhecido.”

Dois meses e meio depois da sessão, o blog faz novo contato com Giselle. Como está? “Sigo firme e forte nos propósitos que tinha ao tomar a ibogaína.” E a bebida? “Não voltei a beber e quase nunca penso nisso. Já o cigarro é mais traiçoeiro. Não tem um dia desde então em que não pense em fumar. Sonho que estou fumando.”

Um de seus receios, agora, antecipa o dia em que a Covid passar –se passar: “Quanto ao álcool, tenho medo de que a retomada da vida social, algo que ainda está em suspenso por causa da pandemia, torne a decisão de parar mais difícil. De batismo a velório, temos rituais que envolvem a bebida alcoólica”.

Um dia desses Giselle abriu um vinho branco para fazer risoto. A garrafa segue aberta na geladeira.“Não chego nem a olhar.” O porém: “Tem essa coisa de tira a droga, no meu caso álcool, e resolve o problema. Não, né? O problema só muda de lugar.”

PARA SABER MAIS

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USP de Ribeirão testa ayahuasca para medo de falar em público e fobia social https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/#respond Mon, 28 Jun 2021 15:50:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/FobiaSocialGettyImages-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Não são poucas as pessoas que tremem, suam e chegam a ter dor de barriga ou vontade de urinar quando precisam se apresentar diante de uma plateia. Para 2% a 7% da população de cada país, esse medo cresce a ponto de impedir qualquer atividade pública, com óbvio prejuízo na escola ou no trabalho, mas a ayahuasca pode dar-lhes alguma ajuda.

Ayahuasca? Sim, propõe estudo recém-publicado de Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). “Ayahuasca melhora autopercepção de desempenho discursivo em participantes com transtorno de ansiedade social”, afirma já no título artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology.

Transtorno de ansiedade social (TAS) e fobia social são nomes pomposos dados por psiquiatras para o famigerado medo de falar em público quando ele se torna paralisante, irracional. É o tipo de ansiedade mais comum, o terceiro transtorno psiquiátrico mais frequente, embora subnotificado (menos de 6% dos casos são diagnosticados), e costuma associar-se com outros distúrbios, como depressão e abuso de álcool.

Antidepressivos e psicoterapia podem ajudar, mas a maioria das pessoas com o problema segue tropeçando pela vida, até que algumas terminam abandonando a escola ou perdendo o emprego. Estima-se que até 25% dos estudantes universitários sofram com isso.

A ayahuasca foi escolhida por ser uma substância psicodélica muito estudada no grupo de Rafael dos Santos e ter conhecido efeito benéfico sobre depressão e ansiedade. O chá sacramentado em rituais de Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) leva folhas do arbusto chacrona, fonte do alcaloide dimetiltriptamina (DMT), e o cipó mariri ou jagube, fonte de compostos que inibem a decomposição da DMT.

Depois de recrutar 894 possíveis voluntários entre alunos da USP de Ribeirão, o grupo de pesquisa chefiado pelo psiquiatra Jaime Hallak terminou com apenas 17 que satisfizeram todos os requisitos para inclusão na pesquisa e compareceram para entrevistas e questionários padronizados de diagnóstico.

Cinco horas após tomar –pela primeira vez na vida– uma dose baixa de ayahuasca ou placebo (2 mililitros por quilo de peso), os voluntários tinham de fazer apresentação com tema pré-definido diante de uma tela, enquanto eram filmados, como numa conferência por zoom.

Antes e depois da experiência simulando a fala em público, precisavam preencher questionários para determinar o grau de ansiedade e autopercepção negativa (desconfiança sobre a própria capacidade, que contribui para piorar o desempenho).

Uma das limitações do estudo esteve em que os estudantes selecionados apresentavam níveis relativamente baixos de ansiedade antes mesmo do experimento. Talvez por isso os pesquisadores não tenham conseguido detectar diminuições significativas nos escores padronizados, embora os participantes tenham relatado sentir calma maior que usual durante o discurso.

“Não observamos efeitos significativos nas escalas de ansiedade, mas sim nos relatos e nas observações dos pesquisadores”, admite Santos. “A ausência de resultados significativos pode ser porque essas pessoas não tinham níveis elevados de ansiedade, mesmo preenchendo o diagnóstico, ou pela amostra pequena.”

Por outro lado, o experimento revelou que os voluntários melhoraram significativamente a autopercepção. Ou seja, mostraram-se menos desconfiadas quanto à capacidade de desempenhar adequadamente um papel social.

“Os pesquisadores aliaram o histórico internacional dessa equipe em avaliar o potencial terapêutico da ayahuasca nas pessoas e fizeram uso de um teste bem ‘calibrado’ para avaliar sua intensidade nos cuidados de pessoas com fobia social”, avalia o psiquiatra André Brooking Negrão, que não participou do estudo e investiga psicodélicos noutra unidade da USP, o paulistano Instituto de Psiquiatria.

“Os resultados são promissores porque mostraram que esse tipo de ensaio clínico é factível e, especificamente para pessoas com problemas associados à fobia social, pode ser um recurso valioso no futuro. Os pesquisadores terão agora o desafio de expandir esta metodologia para amostras mais numerosas.”

Concorda com Negrão a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autora de um pioneiro teste clínico duplo cego de ayahuasca para depressão: “O estudo é interessante por avaliar a ayahuasca em uma condição como a fobia social, para qual não há um tratamento farmacológico específico, e mostrando uma melhora em como os indivíduos que beberam ayahuasca percebem a performance deles nessa tarefa de falar em público”.

Dilema moral à frente

A fobia social vem, assim, somar-se a uma longa lista de condições que, segundo estudos ainda experimentais, poderiam eventualmente ser tratadas com psicodélicos. Cabem nela depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade, alguns transtornos do espectro autista, dependência química, anorexia, síndrome pós-concussional (danos cerebrais em boxeadores e jogadores de hóquei) e até Alzheimer, AVC, enxaqueca ou prevenção de suicídios.

Além disso, vários desses problemas de saúde mental são objeto de ensaios clínicos por diferentes substâncias psicodélicas. Por exemplo a depressão, sobre a qual há testes em andamento com psilocibina de cogumelos, DMT de ayahuasca, 5-MeO-DMT de veneno de sapo, LSD e mescalina.

Tamanha inespecificidade seria decorrente do modo básico de atuação desses psicodélicos clássicos. Todos eles são moléculas capazes de se encaixar no receptor de células cerebrais para o neurotransmissor serotonina.

Essa via bioquímica parece relaxar a rede de modo padrão (DMN, em inglês) hiperativa na ruminação (predominância circular de pensamentos negativos). Também seria capaz de aumentar a empatia e a socialidade, dissolver a ditadura do ego e estimular tanto a neuroplasticidade (formação de novas conexões entre neurônios) quanto processos anti-inflamatórios no cérebro.

Não deixa de ser um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico. A multiplicação combinatória de alvos e drogas pode suscitar entusiasmo injustificado para o estágio preliminar das pesquisas, dado que só o MDMA alcançou a fase 3 em testes clínicos e ainda carece de aprovação como adjuvante de psicoterapia. A imensa maioria dos estudos envolve poucas dezenas de participantes, como esse da USP de Ribeirão.

Além disso, não é pequeno o risco de que a imagem de panaceia para todos os males do mundo mental desperte reação conservadora similar à que virtualmente baniu os psicodélicos das farmácias e das pesquisas acadêmicas após sua adoção pelo movimento hippie e contestador da contracultura. Faltam ainda anos de pesquisa a acumular dados suficientes para ancorar os tratamentos na melhor ciência e romper preconceitos de órgãos reguladores, médicos e terapeutas.

Outro obstáculo no caminho de quem se filia à tradição clássica da psicoterapia mediada por psicodélicos é a proposta por alguns neurocientistas de livrar as pesquisas justamente da psicodelia, da psicoterapia ou de ambas. Sua ideia é desenvolver moléculas similares com poder de desarmar a DMN e a ruminação, mas que não desencadeiem estados alterados de consciência, as “viagens”.

O modelo, nesse caso, seria o dos antidepressivos surgidos a partir dos anos 1980, como a classe de inibidores seletivos de receptação de serotonina (ISRS) inaugurada pela fluoxetina (Prozac). Pílulas para as pessoas tomarem todos os dias, no intuito de se livrarem da depressão sem laboriosos processos de psicoterapia, mas que a realidade mostrou não funcionar para pelo menos um terço dos deprimidos graves.

(Reprodução)

A controvérsia sobre “psicodélicos não-psicodélicos” já apareceu no blog (aqui, aqui e aqui) e ganhou destaque há poucos dias na revista Forbes.

A reportagem de Will Yakowicz apresenta o trabalho de Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, para escrutinar incontáveis moléculas aparentadas à DMT &cia. “O objetivo é encontrar compostos que sejam terapêuticos e não psicodélicos”, disse o neurofarmacologista a Yakowicz.

Roth está abastecido com US$ 27 milhões da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa, em inglês) dos EUA para desenvolver uma nova geração de medicamentos candidatos a reduzir depressão e TEPT com a rapidez dos psicodélicos, em comparação com os lentos antidepressivos disponíveis, mas sem alucinações ou dissolução do ego e sem os efeitos adversos dos ISRS (como insônia, zonzeiras e redução da libido).

O financiamento corresponde ao valor aproximado que a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) levou muitos anos a levantar para conseguir empreender estudos de fase 3 com MDMA (ecstasy) contra TEPT. Esses testes clínicos devem render autorização para uso geral da droga como adjuvante em psicoterapia, e não para uso contínuo, até 2023.

A aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA) é a grande esperança de tratamento para veteranos de guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Em 2016, havia 868 mil ex-combatentes recebendo benefícios por incapacidade provocada por TEPT, ao custo de US$ 17 bilhões anuais aos cofres americanos.

Entende-se, assim, o interesse do Departamento de Defesa no trabalho de Roth, para desgosto do ex-hippie Rick Doblin, fundador da Maps. A reportagem da Forbes registra todo seu descontentamento: “A tragédia que vejo é que a Darpa poderia ter um vencedor agora mesmo com MDMA para TEPT, mas está tentando dizer ‘dane-se a experiência psicodélica e vamos investir em psicodélicos não-psicodélicos’ enquanto 20 veteranos por dia estão se  matando”.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)
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Lista dos mais influentes em psicodélicos tem só duas brasileiras https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/#respond Mon, 03 May 2021 19:51:51 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/RankingMachosBrancosPsicodelicos-300x158.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=446 ADENDO: depois de publicada a nota, veio ao meu conhecimento que Adriana Kertzer, 97a. da lista, advogada atuante no Plant Medicine Law Group dos EUA, nasceu em São Paulo. São, portanto DUAS brasileiras no ranking. Texto modificado para incluir essa informação.

Um ranking das cem personalidades com maior influência no campo psicodélico está dando o que falar. Toda lista de bambambãs se sujeita a controvérsia, mas essa caprichou em ignorar a diversidade hoje esperada de qualquer elenco, sob pena de perpetuar vieses que mantêm em posição subalterna quem deveria brilhar tanto ou mais que homens brancos ricos, famosos e poderosos.

A lista dos psiconautas mais influentes foi montada pelo serviço de informações Psychedelic Invest, dando peso sobretudo para audiência em redes sociais. Os organizadores do ranking se penitenciaram pela falta de diversidades, que privilegiou machos caucasianos em todas as 20 primeiras colocações.

Contei apenas 17 mulheres na relação de 100 nomes, entre elas DUAS únicas pessoas naturais do Brasil: Beatriz Caiuby Labate, antropóloga estudiosa de ayahuasca conhecida como Bia Labate, e a advogada Adriana Kertzer.

A antropóloga brasileira Bia Labate  (Divulgação)

Obviamente negros também só se veem dois: o especialista em abuso de drogas Carl Hart e o boxeador Mike Tyson, que em dezembro devorou 4g de cogumelos psicodélicos Psilocybe durante entrevista.

O destaque para Labate é justo. Ela já organizou, editou e escreveu duas dezenas de livros sobre ayahuasca, peiote, povos tradicionais que usam psicodélicos e sua redescoberta pela neurociência e pela psiquiatria.

O último deles, “Ayahuasca Healing and Science” (cura e ciência da ayahuasca, minha tradução para o título), foi editado com Clancy Cavnar, companheira com que administra o Chacruna Institute for Psychedelic Plant Medicines, em São Francisco (EUA).

(Reprodução)

Labate também trabalha como especialista em educação pública e cultura da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), cujo fundador, Rick Doblin, é o terceiro do ranking. (Possível conflito de interesses para o leitor conhecer e ponderar: já publiquei quatro artigos pagos na página Chacruna e tenho um no prelo do MAPS Bulletin, todos a convite de Labate.)

O volume contém ensaios de vários pesquisadores do Brasil, terceiro país com mais artigos científicos de impacto. O prefácio é do neurocientista Sidarta Ribeiro (40,4 mil seguidores), e o livro tem autores brasileiros como o psiquiatra Luís Fernando Tófoli (30,6 mil) e o físico Dráulio de Araújo, pesquisador principal do estudo sobre ayahuasca e depressão que aparece em sexto lugar naquele ranking dos artigos com mais citações (38/ano).

SAIBA MAIS

Livro

(Reprodução)

Curso

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Liberação de terapia com psilocibina em Oregon enfrenta resistência empresarial https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/26/liberacao-de-terapia-com-psilocibina-em-oregon-enfrenta-resistencia-empresarial/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/26/liberacao-de-terapia-com-psilocibina-em-oregon-enfrenta-resistencia-empresarial/#respond Mon, 26 Apr 2021 14:42:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/measure-109-logo-215x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=427  

No estágio atual do renascimento psicodélico em psiquiatria e psicoterapia, fica cada vez mais claro que está longe de ser um movimento unificado a aproximar pesquisadores, investidores e psiconautas, todos marchando na mesma direção. Ele se parece mais e mais com pessoas convergindo a uma sorveteria após longos passeios separados num dia de verão, quando cada cliente está ansioso por escolher a guloseima com maior probabilidade de propiciar a melhor experiência ao paladar –no caso dos psicodélicos, os melhores benefícios para a saúde mental.

Há um senão: cada cliente deve pensar duas vezes antes de optar por uma cumbuca misturada. Alguns sabores simplesmente não combinam com outros e podem arruinar o dia agradável.

O sorvete de creme do empreendimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização, com testes clínicos, aprovação por agências reguladoras, investidores capitalistas, patenteamento de moléculas e processos e todo o percurso burocrático voltado para reembolso por planos de saúde. Este é o sabor que faz barulho nos círculos e publicações empresariais, que costumam se entusiasmar com qualquer oportunidade de investimento num mercado de massa com potencial para alcançar centenas de bilhões de dólares em poucos anos.

A escolha pouco imaginativa tem por cobertura alguma controvérsia, também, causada por empresas como a Compass Pathways e suas patentes amplas demais em aplicações de psicoterapia com psilocibina sintética, o ingrediente psicoativo orginalmente obtido de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe, atualmente em testes clínicos para tratar depressão e várias outras condições.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Há também uma versão menos previsível do sabor popular, por assim dizer o sorvete de pistache da psicodelia. Iniciativas como a Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) acrescentam ingredientes incomuns à receita convencional ao abrir mão de lucros como objetivo primário e de direitos de propriedade intelectual (PI) sobre inovação por meio de patentes. De olho no benefício público, a Maps prefere privilegiar direitos exclusivos de comercialização de tratamento, menos restritivos, conferidos pela FDA (agência americana de fármacos) ao aprovar uma nova terapia. Com a diferença de que tal exclusividade sobre dados clínicos não impede que outros atores produzam seus próprios dados.

O Instituto Usona, de Wisconsin, segue trilha semelhante ao publicar todos os passos que desenvolveu para a síntese da psilocibina e tornar sua própria versão da droga disponível a outros pesquisadores interessados em testá-la.

Por fim, há o sabor açaí do acesso a psicodélicos, por sua excentricidade, aprovado em Oregon em novembro de 2020 com 56% dos votos: a Medida 109. Os eleitores desse estado do noroeste dos EUA ignoraram as opções creme e pistache e partiram direto para a novidade mais surpreendente, incluída no menu por Tom e Sheri Eckert, iniciadores e peticionadores principais da 109, que estabeleceu um programa estadual de psicoterapia com psilocibina, longe do alcance dos reguladores de Washington DC a da trilha batida das patentes.

Além disso, outra medida de Oregon, a 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), foi aprovada com 58% dos votos. De acordo com um artigo de Ismail Ali na última edição do MAPS Builletin, trata-se possivelmente da mais promissora reforma de política de drogas até agora nos EUA, pois é a que chega mais perto de repudiar a mentalidade de criminalização consagrada na Guerra às Drogas e de substituí-la por outra baseada em saúde pública, compaixão e tratamento não-coercitivo.

“Particularmente, a Medida 110 foi o primeiro esforço bem-sucedido nos EUA para descriminalizar o uso pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína, ao mesmo tempo em que adotava a pioneira descriminalização em nível estadual de plantas, cactos e fungos do Schedule 1 [lista de substâncias proibidas e controladas].”

Em outras palavras, um lance ainda mais radical, já que a Medida 110 vai muito além da 109 ao abranger todas as drogas e o assim chamado uso recreativo, não só a psilocibina para terapeutas licenciados.

A pergunta de centenas de bilhões de dólares que permanece, para retornar aos sorvetes salpicados com psilocibina: Há espaço para todos os sabores na mesma cumbuca psicodélica? Poderia o açaí se mostrar forte demais para os frequentadores costumeiros? Ou ainda, vice-versa, poderia a preferência de capitalistas pelo sabor creme das patentes e reembolsos submergir os esforços em Oregon para tornar a psilocibina mais acessível para os que dela precisam?

“Uma inspiração para a campanha [da 109] foi simplesmente terminar a proibição de 50 anos para a terapia psicodélica, o que já passava da hora, na minha opinião”, disse Tom Eckert em resposta por email. Sheri, Tom e seus companheiros estavam igualmente dedicados a refletir sobre a melhor maneira de integrar os psicodélicos de volta na cultura:

“Vimos a iniciativa de votação como ferramenta perfeita para cavar um espaço para a psicoterapia com psilocibina e erguê-la sobre uma fundação própria. Isso é importante porque os marcos de referência existentes, seja a medicalização movida pela indústria farmacêutica, seja a legalização ao estilo da cânabis, não pareciam ser bem o correto, ou, no caso da medicalização, pareciam incompletos em termos de acesso. Por isso queríamos entalhar uma moldura que desse conta da oferta.

Eckert integra a Comissão Consultiva para Psilobina formada pela Autoridade de Saúde de Oregon (OHA em inglês), como previsto na 109, com a tarefa de desenvolver as normas e regulamentos para disciplinar as aplicações e licenciá-las, assim como manufatura e rastreamento do composto, além do provimento de terapias. A comissão tem até junho de 2022 para fazer suas recomendações, e se espera que a OHA comece a aceitar pedidos de licenciamento de terapeutas e produtores em janeiro de 2023.

Esse cronograma é capaz de tornar a terapia assistida por psicodélicos disponível para o público de Oregon mais rápido que qualquer das iniciativas pela via da FDA. Os ensaios clínicos com psilocibina para depressão da empresa Compass e do Instituto Usona se encontram na fase 2, e mesmo a fase 3 da MAPS com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático não deve ganhar aprovação antes disso. Talvez seja essa a razão pela qual alguns entusiastas do sorvete de creme torcem o nariz para o açaí de Oregon.

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

Um dos primeiros a pôr a boca no trombone foi David Bronner, auto-intitulado Executivo de Engajamento Cósmico (CEO em inglês) da Dr. Bronner’s, empresa fornecedora dos sabonetes naturais mais vendidos nos EUA. Num artigo publicado no blog da companhia, All-One, sob o título “Sounding the Alarm on Compass’s Interference With Oregon’s Psilocybin Therapy Program” (soando o alarme contra a interferência da Compass no programa de terapia com psilocibina de Oregon), Bronner afirmou não só que as patentes da Compass sobre a síntese de psilocibina poderiam dificultar a produção do medicamento pelo Usona, mas também que o CEO da Compass, George Goldsmith, estaria tentando organizar oposição à 109 entre pesquisadores psicodélicos na Universidade de Saúde e Ciência de Oregon.

A Compass nega qualquer interferência. “Não estamos tentando mobilizar oposição à implementação da 109”, afirmou em mensagem de email a chefe de comunicação Tracy Cheung. “O povo de Oregon votou a favor da medida, refletindo a imensa necessidade não atendida em cuidados de saúde mental. Respeitamos e entendemos isso, e não é nossa intenção fazer coisa alguma para mudá-lo.” Após elogiar a 109 como abordagem radicalmente nova para acesso a terapia com psilocibina capaz de ajudar milhões de pessoas, Cheung afirmou que ela “também levanta desafios e questões sobre como será implementada para assegurar segurança e acesso equitativo para os necessitados”.

“Acreditamos que a via médica regulamentada é a melhor maneira de assegurar segurança, eficácia e qualidade para qualquer medicamento ou terapia. Para tanto, estamos desenvolvendo nossa terapia com psilocibina COMP360 por meio de testes clínicos”, ressalvou. “Evidência clínica e aprovação regulatória são também pré-requisitos para qualquer consideração de reembolso. Isso significa que acreditamos ser a via médica a forma mais segura e eficaz de introduzir terapia com psilocibina (se aprovada) no sistema de saúde, com reembolso e tornada disponível para todos que possam beneficiar-se dela.”

Eckert explicou ter conversado com Goldsmith durante a campanha da 109, mas não depois disso. “Foi informativo e cordial, apenas uma troca de perspectivas. Ele vê a psilocibina com as lentes médicas, enquanto eu vejo mais um modelo de acesso, ou um modelo de terapia e bem-estar”, disse, negando ter qualquer informação sobre os alegados contatos de Goldsmith com pesquisadores de Oregon.

Eckert não acredita que os movimentos e patentes da Compass possam afetar o trajeto psicodélico de Oregon. O estado emitirá licenças para cultivadores e desenvolvedores de produtos de acordo com seus próprios padrões. Um espectro de produtos ou medicamentos será provavelmente oferecido para uso conforme a regulamentação, incluindo versões orgânicas, extraídas dos cogumelos.

“Aqui em Oregon, embora conhecedor de padrões de saúde, minha impressão é que realmente não enxergamos a psilocibina como uma droga farmacêutica e, assim, não a regulamentaremos dessa maneira. É claro que a própria psilocibina não pode ser patenteada, e, diante do marco regulatório e das provisões legais de Oregon para produtos inclusivos, patentes sobre processos específicos de produção não parecem relevantes. Você não pode realmente patentear o cultivo de cogumelos, e protocolos para produtos sintéticos ou biossintéticos estão cada vez mais em domínio público, segundo entendo.”

O principal argumento contra as pretensões da Compass se baseia, de fato, no princípio de que algo inerente ao estado da técnica (prior art) não pode ser patenteado. A psilocibina naturalmente existente tem sido usada há séculos em situações rituais por povos tradicionais <https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/artigo-pede-retribuicao-a-povo-mazateca-por-revelar-espiritu-de-cogumelos/> e por décadas em tratamentos alternativos por terapeutas, legalmente antes da proibição e sob o radar depois disso. Embora a empresa já tenha obtido três patentes de psilocibina nos EUA, uma maneira de contestar seus esforços de “cercamento” está em reunir num único repositório acessível toda a informação existente sobre aquela substância particular e outros compostos psicodélicos.

Pelo menos essa é a visão no Usona sobre a questão. Bill Linton, diretor executivo, deixou claro em mensagem de email que ele não é contra patentes em geral: “Acreditamos firmemente no sistema de patentes, que promove o reconhecimento de reivindicações consideradas legítimas, novas, úteis e não óbvias. Funcionários de patentes precisam se basear em dados que possam obter facilmente a respeito de informações no domínio público, de maneira a saber se devem aceitar pedidos de patentes”.

Nas próximas semanas, segundo informou, uma organização independente passará a prover um portal de referência projetado para ajudar agentes de patentes e funcionários no mundo todo a acessar facilmente milhões de documentos, artigos publicados, resultados de pesquisa científica, conferências, simpósios, bibliotecas de arquivos, notas na rede e fontes similares de informação relacionadas com terapias psicodélicas e temas associados. “Isso estará acessível para qualquer indivíduo ou organização, economizando tempo e despesas envolvidas em determinar patentabilidade”, afirmou, sem dar mais detalhes.

Um exemplo nessa linha é Freedom to Operate (liberdade de operação), organização sem fins lucrativos lançada por Carey Turnbull, que integra o comitê diretor do próprio Usona. Ele fundou a ONG com o propósito de proteger a ciência psicodélica e o desenvolvimento médico no interesse público, por meio de desafios a patentes inapropriadas –aquelas que tentam se apoderar de conhecimento preexistente no espaço público e depois vendê-lo de volta como invenção. O princípio é que patentes equivocadamente emitidas impedem a pesquisa e a inovação por outras organizações e criam ônus excessivo ou perdas para a eficiência da economia.

É o caso de perguntar se essas iniciativas não serão muito pouco muito tarde, em face do tremendo impulso ganho por investidores quando tomaram o bonde andando dos psicodélicos.

Eckert, de sua parte, nada tem de pessimista quando se trata dos vários modelos para levar benefícios de psicodélicos para quem precisa: “A aprovação da FDA para psilocibina e MDMA será enormemente positiva, e cumprimento organizações como Usona e Maps por sua tentativa de inovar abordagens baseadas em ciência aberta, melhores, talvez, do que costumamos esperar da indústria farmacêutica”.

Na sua visão, se um modelo de prescrição médica com reembolso por planos de saúde vier a ser aprovado, a infraestrutura em desenvolvimento em Oregon iria apoiá-lo e facilitá-lo, ao mesmo tempo em que continuaria a oferecer acesso seguro para um número de pessoas presumivelmente maior sem prescrições ou diagnósticos. “Ambos os modelos deveriam coexistir naturalmente dentro de um esquema integrado. Para aqueles em busca de cura psicodélica, deveria ser uma questão de conforto e escolha; todas as opções de uso responsável deveriam ser permitidas. O sucesso de cada área ou abordagem não deveria de modo algum bloquear o sucesso de outra. A coesão entre medicina, terapia e bem-estar representa o melhor serviço para o movimento e para o público.”

Em resumo: misturar o sabor peculiar do açaí com outros sorvetes na mesma cumbuca não parece ser a melhor escolha para paladares convencionais, mas todos devem ter a liberdade de fazer essa opção. A precondição para tanto é manter o açaí no menu da sorveteria psicodélica.

Uma versão deste texto foi originalmente publicada em inglês na página do Instituto Chacruna

https://www.borasaber.art.br/marcelo-leite-historia-das-drogas-para-uso-medicinal

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Corrida por patentes ameaça pesquisa com terapias psicodélicas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/corrida-por-patentes-ameaca-pesquisa-com-terapias-psicodelicas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/corrida-por-patentes-ameaca-pesquisa-com-terapias-psicodelicas/#respond Fri, 19 Mar 2021 14:03:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Magic_mushroomsJanieWikiCommons-300x202.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=369 Um espectro ronda o renascimento psicodélico e ameaça a liberdade de pesquisa no campo das novas terapias para transtornos mentais como depressão. Bem no momento em que compostos como LSD, psilocibina e MDMA –substâncias ainda proibidas, bom lembrar– deixam a clandestinidade científica para retornar ao altar de templos da biomedicina acadêmica como Harvard, Johns Hopkins e Imperial College, reivindicações de propriedade intelectual podem barrar estudos clínicos já em andamento.

Após o presidente americano Richard Nixon declarar Guerra às Drogas em 1971, a pesquisa clínica com psicodélicos ficou abafada por três décadas, tornando-se uma linha de estudo suicida para a carreira de pesquisadores. Isso começou a mudar na passagem do século 20 para o 21, com a atenção renovada atraída por uma série cada vez mais encorpada de estudos clínicos.

A promessa de terapias inovadoras para distúrbios mentais fortaleceu-se a ponto de gerar um excesso de interesse da parte de investidores. Como resultado, a corrida para garantir direitos de patente sobre substâncias e práticas curativas muito antigas agora põe em risco a própria avalanche de estudos.

Veja o caso da psilocibina, ingrediente psicoativo dos “cogumelos mágicos” (principalmente as mais de 200 espécies do gênero Psilocybe). Vários deles são usados tradicionalmente em cerimônias por povos como os mazatecas do México, que revelaram o poder desses fungos para a ciência ocidental e nunca foram devidamente reconhecidos por isso.

De acordo com o diretório de patentes da área mantido pelo site Psilocybin alpha (uma fonte útil para análises do setor emergente de medicina psicodélica), existem 44 patentes concedidas ou sob análise tratando da psilocibina, 41 delas após o ano 2000; outras 24 foram solicitadas depois de 2019. Números similares abrangem pedidos de propriedade intelectual relativas a MDMA (53 patentes, 47 desde 2000) e DMT, psicodélico presente na ayahuasca (55, das quais 53 desde 2000).

A lógica por trás do privilégio de patente é remunerar o investimento realizado por inovadores, dando-lhes exclusividade sobre a invenção por 20 anos. O simples número de solicitações apresentadas, no entanto, assim como a abrangência do privilégio contido algumas delas, suscitaram muita preocupação nessa área.

A corrida pode ser comparada com uma onda de “cercamentos”, em que recém-chegados tentam garantir rapidamente um pedaço de chão tão grande quanto possível no terreno agora acessível. O movimento implica a exclusão daqueles que preservaram a área no passado, sejam eles xamãs experimentados no uso ou pesquisadores pioneiros e teimosos, que assumiram riscos quando quase ninguém ousava enfrentar a árdua viagem por território não cartografado.

Uma onda de “cercamentos”, em que recém-chegados tentam garantir rapidamente um pedaço de chão tão grande quanto possível

O primeiro alarme soou em 2018, após a empresa Compass Pathways, baseada no Reino Unido, solicitar três patentes para o uso de psilocibina para depressão resistente a outros tratamentos. Uma delas já foi concedida pelo Escritório de Patentes dos EUA (USPTO) em 31 de dezembro de 2019, deslanchando uma onda de protestos.

A reação partia do entendimento de que tal proteção poderia impedir o uso medicinal, recreativo ou ritual de cogumelos Psilocybe por terceiros. A preocupação arrefeceu desde então, à medida que se tornou mais claro que a patente cobre apenas uma forma cristalina específica de psilocibina sintética (COMP360), não o próprio fungo natural.

Apesar disso, prosseguiu acesa a apreensão quanto ao escopo amplo das patentes apresentadas pela Compass e seus impactos esperados sobre a pesquisa. Na realidade, ela entrou em combustão acelerada nas últimas semanas graças ao escritor, podcaster e investidor Tim Ferriss.

Numa série de tuítes, ele lançou o toque de reunir: “Estou muito preocupado com a grilagem patentária em preparação no mundo psicodélico do lucro (…) quando companhias tentam obter patentes amplas que poderiam impedir pesquisa científica, competição razoável (isto é, para obter escala e acesso amplo, precisamos de competição para reduzir custos)”.

Ferriss é muito influente nos círculos psicodélicos, como investidor visionário que despejou milhões de dólares e ajudou a levantar outro tanto para pôr de pé os pioneiros Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres e Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência. Também apoiou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês).

Seria simplório acusá-lo de ser anticapitalista ou de ingenuamente colocar os interesses de xamãs à frente dos daqueles que sofrem com transtornos mentais debilitantes como depressão resistente ou estresse pós-traumático (TEPT) e poderiam beneficiar-se de eventuais medicamentos psicodélicos. Entretanto, essas acusações parecem insinuar-se nas entrelinhas da brusca refutação que partiu de Christian Angermayer, investidor que já financiou a Compass e fundou a empresa Atai Life Sciences, companhia alemã de biotecnologia interessada em psicodélicos.

Angermayer escreveu que Ferriss estaria “incrivelmente desorientado” nessa questão: “A Atai e a Compass (…) levantaram perto de US$ 650 milhões para essa causa só nos últimos anos, ao mesmo tempo em que trouxeram as melhores cabeças e inovação crítica para esse desafio. Se incluirmos capital levantado por outras empresas nesse campo, a soma vai para mais de US$ 1 bilhão”, argumentou o empresário. “Esse é nível de recursos, talento e compromisso necessário para finalmente mudar as coisas, e isso se torna possível por haver um modelo de negócios viável.”

“Se essas companhias forem bem-sucedidas, centenas de milhões de pessoas que sofrem atualmente poderão beneficiar-se, e, como essas drogas serão provavelmente aprovadas como drogas medicinais, há uma probabilidade significativa de que seguros de saúde as cubram”, escreveu Angermayer.

A troca de tuítes evoluiu para cartas abertas publicadas por Ferriss e Angermayer. A longa argumentação pode ser resumida assim:

1) De acordo com Ferriss, iniciativas em busca de lucro têm um papel crítico, mas não ganham por isso um passe livre, pois enfrentam incentivos para tomar decisões anti-éticas de maneira a gerar renda extra, tais como patentear “invenções” que não são invenções;

2) Angermayer alega que propriedade intelectual e dinheiro grosso são a chave para acelerar o acesso a novos remédios psicodélicos e compara o investimento requerido a uma hipoteca para adquirir uma casa que de outro modo não caberia no orçamento do cidadão mediano: “Por um certo período, a sociedade precisa pagar o financiamento (presumindo que a casa seja ótima e que a pessoa queira mudar-se para nela), mas depois disso a sociedade se torna proprietária e pode morar nela sem pagar aluguel”.

A argumentação de Angermayer se apoia sobre dois pilares. Primeiro, que a Compass não está patenteando um produto natural, e sim uma forma específica de psilocibina cristalizada (polimorfo A) produzida em grandes quantidades seguindo etapas de síntese otimizadas pela empresa. Depois, que a patente cobre o uso dessa inovação particular em terapia para depressão resistente a tratamento.

Os questionamentos às patentes da Compass se baseiam em vários argumentos: o polimorfo A quase certamente está presente tanto no produto natural quanto em outras formas do composto sintetizado; a Compass usa informações sobre a síntese publicadas anos atrás; o uso de psilocibina como adjuvante de psicoterapia para depressão já esteve em teste em vários ensaios clínicos, realizados, entre outros centros, pelo Imperial College e pela Johns Hopkins (para não falar de séculos ou milênios de uso medicinal).

Há preocupação geral com o risco de a incursão da Compass no domínio público psicodélico evolua para barreiras ao estudo clínico de fase 2 com psilocibina para depressão patrocinado pelo Instituto Usona. Afinal, o Usona é um competidor e obteve da FDA (agência americana de fármacos) o mesmo status de terapia revolucionária (breakthrough therapy) conferido à Compass.

Há risco de que a incursão da Compass no domínio público psicodélico  evolua para barreiras ao estudo clínico de fase 2 com psilocibina para depressão

A iniciativa da Usona, porém, se fundamenta numa abordagem oposta: o instituto publica todos os passos para a síntese de psilocibina, põe sua versão do composto à disposição de outros pesquisadores e não busca patentes para processos ou terapias relacionadas, contando em lugar disso com os cinco ou seis anos de direitos exclusivos que a aprovação pela FDA garante ao uso de dados do estudo clínico e à comercialização dos protocolos terapêuticos relacionados.

Cinco ou seis anos de direitos exclusivos, comparados com duas décadas de privilégio garantido por patentes, pode parecer pouco tempo para investidores em busca de enormes taxas de rendimento. Para muitos que não chegaram agora para o campo de batalha psicodélico, por outro lado, parecem ser uma maneira mais equitativa de tornar os novos medicamentos acessíveis a preços mais módicos

O argumento mais difícil de contrariar, contudo, é aquele dizendo que abrir mão de patentes não produzirá o montante de capital necessário –centenas de milhões de dólares, diz-se– para fazer um novo remédio chegar ao mercado. Sem essa montanha de dinheiro, pode-se atrasar desnecessariamente o acesso para quem precisa.

Não são só capitalistas gananciosos que adotam esse ponto de vista na matéria. Pesquisadores respeitados também, como David Nutt, do Imperial College, que me disse numa entrevista de 2019 serem as patentes um preço que teremos de pagar para ver psicodélicos regulamentados o mais cedo possível.

O mesmo se dá com David Nichols, professor emérito da Universidade Purdue e consultor da Compass listado como co-autor do pedido de patente. Nichols declarou a Ann Harrison, de Lucid News: “Há tamanha necessidade de novas terapias para tratar depressão e dependência química que me parece improvável uma estratégia sem fins lucrativos ser sustentável. Aplaudo os esforços do Instituto Usona para tornar essa medicação de uso global, mas pessoalmente não vejo como isso possa ser operado”.

Há que considerar, entretanto, o gigantesco mercado potencial para tratamento de transtornos mentais como depressão resistente, em especial após todo o sofrimento e isolamento impostos pela pandemia de Covid-19. Harrison relata em Lucid News que o mercado de todas as doenças que psicodélicos têm potencial para tratar está avaliado em US$ 400 bilhões anuais.

Em outras palavras, há muito dinheiro para ganhar com psicodélicos. Obviamente, essa é a razão que torna investidores tão ansiosos para garantir propriedade intelectual sobre essas aplicações.

Há muito dinheiro para ganhar com psicodélicos. Essa é a razão que torna investidores tão ansiosos para garantir propriedade intelectual

Se Nichols se alinha com a Compass, a estratégia do Usona obtém apoio de Rick Doblin, força motriz por trás da Maps, ONG que ele fundou 35 anos atrás. Nessa época, Ferriss e Angermayer ainda estavam no ensino fundamental.

É eloquente que a terapia psicodélica mais próxima de aprovação pela FDA –MDMA para estresse pós-traumático (TEPT)– decorra do trabalho desbravador realizado a muito custo por Doblin e seus colegas da Maps, e não por uma startup qualquer cheia de dinheiro depois de uma oferta pública de ações (IPO) bem-sucedida. O ensaio clínico multicêntrico de fase 3 em curso pela Maps sobre MDMA/TEPT deve publicar resultados promissores, neste ano ou no próximo, graças a financiamento obtido em anos e anos de campanhas.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Não chega a ser surpresa que Doblin tenha apoiado Ferriss e questionado Angermayer numa série de tuítes. “Christian [Angermayer] não está certo quanto a patentes serem essenciais para obter direitos exclusivos para comercializar um medicamento”, escreveu.

“A exclusividade de dados difere de patentes pelo fato de não bloquear que outros patrocinadores gerem seu próprios dados para obter aprovação e comercializar o mesmo remédio para a mesma indicação ao mesmo tempo, se outros patrocinadores decidirem gastar tempo e dinheiro. Estamos muitos anos e US$ 50 milhões, por aí, à frente de quaisquer outros.”

Doblin foi mais longe: “Na medida em que a Atai e a Compass buscam lucro bloqueando os outros por meio de patentes sobre processos [de sínteses] ou processos terapêuticos que não inventaram, elas fracassarão e vão desperdiçar seu potencial para ser uma força em favor de curas e de lucros”.

Ativistas do campo psicodélico também protestaram contra essas pretensões. Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna, assinala que “reivindicar ser preciso recorrer a técnicas agressivas de patenteamento a fim de tratar milhões de pessoas doentes em todo o globo seria como dizer que é preciso uma cadeia grande como a Starbucks para que as pessoas possam tomar café”.

Além de Angermayer, os avanços patentários da Compass também já haviam sido defendidos por Ekaterina Malievskaia, principal executiva médica da empresa e sua co-fundadora com o parceiro George Goldsmith, num artigo publicado pela Maps. Após narrar como a firma se distanciou de acordos anteriores de colaboração com os institutos Usona e Heffter, ela afirmou:

“Nossas patentes não impedem nenhum outro clínico de usar nosso produto ou quaisquer produtos contendo psilocibina em conjunção com os tipos de terapia ou apoio psicológico que julgarem útil, desde que não ameacem a segurança do paciente”, escreveu. “Por fim, nem nossas patentes nem estratégias regulatória e de preços têm impacto sobre as práticas da comunidade subterrânea de praticantes em situações não clínicas.”

Malievskaia e Angermayer não tiveram sucesso até aqui em convencer outros atores do campo psicodélico de que a Compass não pôs seus interesses comerciais e projeções de rentabilidade à frente de benefícios para a saúde pública e da liberdade de pesquisa. Uma das razões está em outra patente pedida pela empresa, WO2020212952.

Nesse pedido a Compass reclama propriedade intelectual sobre um método de tratar depressão descrito em 162 cláusulas. Elas incluem até a administração de psilocibina num recinto com aparência substancialmente não clínica, mobília aconchegante, decoração em cores suaves, um sistema de som de alta fidelidade e uma cama ou divã…

“Patentear métodos terapêuticos inventados por outros está fadado a fracassar, são terríveis para reputação e capitalismo fora-da-lei”

Qualquer pessoa familiarizada com protocolos de tratamentos psicodélicos desenvolvidos por legiões de terapeutas desde os anos 1960, alguns sob risco pessoal ao trabalhar sob o radar da lei em tempos de proibicionismo, pode reconhecer de imediato que não há novidade nenhuma aí. Fica visível uma intenção não muito sutil de impedir competição com a Compass. Doblin tuitou: “Tentativas de patentear métodos terapêuticos inventados por outros estão fadados a fracassar, são terríveis para a reputação e capitalismo fora-da-lei [capitalism gone rogue]”.

Tim Ferriss, ao que parece, estava certo quando redigiu diplomaticamente que “até as mais puras intenções podem ser distorcidas quando colidem com as duras realidades do negócio”.

Uma versão deste texto foi publicada em inglês no site do Instituto Chacruna

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Saiba quem é Rick Doblin, ex-hippie há 35 anos na vanguarda psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/saiba-quem-e-rick-doblin-ex-hippie-ha-35-anos-vanguarda-da-ciencia-psicodelica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/saiba-quem-e-rick-doblin-ex-hippie-ha-35-anos-vanguarda-da-ciencia-psicodelica/#respond Thu, 11 Mar 2021 16:32:47 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Rick-Doblin-MAPS-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=361 Chovia a cântaros naquela noitinha de outubro de 2018 quando bati à casa de Rick Doblin em Belmont, subúrbio de Boston. Um dos principais responsáveis pelo que se convencionou chamar de renascimento psicodélico abriu a porta com o sorriso que lhe é peculiar e um celular na orelha, gesticulando para que o desconhecido encharcado entrasse.

Fomos direto para a mesa de fórmica na cozinha onde Rick trabalhava com um laptop e a tigela de pipoca à frente. O ex-hippie é uma usina multitarefa hiperativa, que parece dedicar cada minuto da vida à sua maior obra, a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), que completa 35 anos de militância no mês que vem.

Foi preciso esperar uns 20 minutos até começar a entrevista para o livro “Psiconautas”, que sai agora em maio pela Editora Fósforo. Rick discutia com um aliado os próximos passos após o sucesso do debate sobre medicina psicodélica do dia anterior no Instituto Broad, iniciativa conjunta da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) consagrada à genômica. Falava também da bem-recebida palestra recente para uma reunião de chefes de polícia, na Flórida.

Graças em boa medida a sua persistência, substâncias psicodélicas como LSD, psilocibina, MDMA e DMT estão de volta ao panteão farmacológico da medicina, ainda que em fase experimental. Templos da biomedicina como o Imperial College de Londres, os hospitais Massachusetts General e Mount Sinai e as universidades de Nova York (NYU) e Johns Hopkins se apressam a abrir centros dedicados ao tema emergente de pesquisa clínica, seguindo a liderança da Maps.

Em 1986, contudo, era preciso muito tutano para criar uma ONG dessas apenas um ano depois de o governo americano proibir o MDMA. Primeira missão: processar a agência antidrogas DEA por isso. Era o auge da guerra às drogas deflagrada nos EUA pelo presidente Richard Nixon, que não via com bons olhos a crescente popularidade nas baladas de pílulas então conhecidas como ecstasy (hoje se fala mais MDMA, balinha, molly e até Michael Douglas).

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

O argumento de Rick era que não havia base científica para proscrever a droga empatógena –ao contrário– sob o pretexto de que não teria benefício para a saúde e carregaria potencial para criar dependência química. Mais de três décadas depois, ele caminha para vencer a disputa. Graças aos estudos patrocinados pela Maps, o MDMA é a substância psicodélica mais próxima de obter aprovação da FDA (agência americana de fármacos) para uso em tratamento psicoterápico para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Não deixa de ser ironia que um filho do movimento de objetores de consciência contra a Guerra do Vietnã, como Rick, se torne o campeão da luta por um remédio para aliviar o sofrimento psíquico de quase 900 mil veteranos de guerra americanos que padecem com TEPT. Não poucos desses ex-militares se tornam policiais e bombeiros, fechando a tríade de heróis que os conservadores dos EUA adoram cultuar.

Foi uma tacada de mestre da Maps e de Rick eleger esse transtorno e uma droga não alucinogênica para o teste clínico, alargando assim a trilha aberta pela descriminalização da maconha, que também começou pelo uso medicinal. Alguns estados americanos já começam a modificar suas leis e regulamentos para admitir o uso terapêutico de substâncias como psilocibina (psicoativo originalmente extraído dos cogumelos Psilocybe), com resultados promissores contra depressão e outros distúrbios mentais.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

A Maps prepara agora a publicação dos resultados dos estudos clínicos de fase 3 realizados com MDMA para TEPT. Com isso, já tendo obtido acesso a uma via rápida de licenciamento na FDA como terapia revolucionária (breakthrough therapy), estima-se que o tratamento possa ser aprovado em 2022.

Não há dúvida de que Rick e a Maps têm mesmo muito o que comemorar.

 

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Estudo britânico confirma potencial do MDMA para tratar abuso de álcool https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/estudo-britanico-confirma-potencial-do-mdma-para-tratar-abuso-de-alcool/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/estudo-britanico-confirma-potencial-do-mdma-para-tratar-abuso-de-alcool/#respond Sat, 27 Feb 2021 18:12:09 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/AlcoolJamesCridlandCC-300x198.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=335 Antes de ser banido da farmacopeia psiquiátrica nos anos 1970, o LSD deu bons resultados em clínicas para tratar uso abusivo de álcool, em especial no Canadá. As pesquisas com ácido estão retornando, mas pesquisadores no Reino Unido investem em outra substância psicoativa, o MDMA (ecstasy), para tratar a condição que mata 3 milhões por ano no mundo.

Os estudos ainda são preliminares. Em 2019, a equipe de Ben Sessa no Imperial College de Londres já havia apresentado indicações animadoras com 11 pacientes. Agora, com um grupo um pouco maior (14), confirmou potencial encorajador.

O trabalho saiu dia 18 no periódico Journal of Psychopharmacology, sob o título “Primeiro Estudo de Segurança e Tolerabilidade de Psicoterapia Assistida por 3,4-Metilenodioximetanfetamina em Pacientes com Transtorno de Uso de Álcool”. Depois de desintoxicados, os 14 voluntários passaram dois meses em terapia, incluindo duas sessões em que tomaram 187,5 mg de MDMA, na terceira e na sexta semana.

Em seguida, os 8 homens e 6 mulheres foram acompanhados por nove meses. Ao final do período, verificou-se que seu consumo médio de álcool se reduzira em 86% –em 11 dos 14 casos, para níveis comparáveis ao chamado consumo social.

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

O MDMA tem sobre o LSD e outros psicodélicos “clássicos” a vantagem de não desencadear manifestações visuais, efeito que poderia afastar da possível terapia pessoas com receio da experiência completa de dissolução do ego que substâncias como o ácido, a psilocibina de cogumelos e o DMT da ayahuasca podem ocasionar. Por causa dessa diferença, há quem defenda que o composto de base do ecstasy deve ser classificado como “empatógeno”, e não “psicodélico”.

O forte do MDMA está no derrame de empatia que provoca na pessoa, predispondo-a para a psicoterapia. O efeito, sob esse aspecto, é similar ao de outros psicodélicos, razão pela qual eles vêm sendo estudados no tratamento de depressão, ansiedade e traumas –não por acaso condições que muitas vezes subjazem ao consumo abusivo de álcool.

No retorno triunfal dos psicodélicos ao proscênio psiquiátrico, o ecstasy tem papel de destaque. É a droga mais próxima de alcançar aprovação como tratamento da FDA, a agência de fármacos dos Estados Unidos, com estudos de fase 3 em vias de consagrar o MDMA como terapia para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), patrocinadora deste clínico, foi estratégica na escolha de uma droga sem o estigma do LSD e de uma patologia que aflige 3,5% dos americanos, em especial veteranos de guerra. Políticos conservadores tendem a levantar menos obstáculos para pesquisas que objetivem minimizar o dano causado pelo TEPT a esses indivíduos e à sociedade, cujo custo anual pode chegar a US$ 30 bilhões (quase R$ 170 bilhões) nos EUA.

No Brasil, o MDMA foi empregado num estudo preliminar de pequeno porte para tratar vítimas de abuso sexual. Saiba mais sobre o trabalho neste resumo publicado em reportagem de Fernando Tadeu Moraes na Folha:

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