Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Detroit e Seattle abrem caminho para descriminalização de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/#respond Tue, 09 Nov 2021 12:56:21 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/DETROITponteAmbassador-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=733 Detroit e Seattle, cidades norte-americanas mais conhecidas de brasileiros por seu papel na música pop, entraram para a lista de municipalidades cujas polícias não mais perseguirão quem usa psicodélicos. Farão companhia, assim, para Denver, Santa Cruz, Oakland, Ann Arbor, Cambridge, Sommerville e Northampton.

No plano regional, legislações parecidas foram adotadas em Oregon e Washington (D.C.). Califórnia e Colorado poderão segui-los dentro de pouco tempo, relegando substâncias como psilocibina (cogumelos “mágicos”), ayahuasca, ibogaína e mescalina à condição de prioridade mais baixa para repressão policial se não forem destinadas ao comércio ilegal.

Não se trata, portanto, de legalização, mas de orientar agentes da lei para deixar de prender portadores de pequenas quantidades dessas drogas alteradoras da consciência. O carro-chefe das campanhas movidas por organizações como Decriminalize Nature tem sido a psilocibina, com seu reconhecido potencial terapêutico (mais sobre  a substância no final do texto).

“Curandera” em Huautla de Jimenez, Oaxaca, México (Efren Del Sosa/Creative Commons)

É o que se chama de uso adulto. As mudanças refletem evidências científicas de que psicodélicos clássicos como mescalina, LSD, psilocibina e dimetiltriptamina (DMT, da ayahuasca) têm perfil toxicológico administrável, não causam dependência e apresentam, sim, potencial médico. O que não quer dizer que não tenham contra-indicações e que possam ser usados por qualquer pessoa; não se recomenda, por exemplo, para quem tem histórico pessoal ou familiar de psicose.

Nessas novas normas se usa em geral a denominação de “enteógenos”, de radicais gregos para algo como “gerador de inspiração (divina)”, e não “psicodélicos”. É alusão aos usos ancestrais de plantas e fungos em cerimônias, que os militantes consideram um direito fundamental.

A medida aprovada em Seattle diz que “enteógenos têm sido reconhecidos como sagrados para culturas humanas no mundo todo, por séculos, e continuam a ser reverenciadas e usadas até hoje por líderes e comunidades culturais e espirituais veneráveis e sinceros através do mundo e dos Estados Unidos”.

Em Oregon, aprovou-se em 2020 por 56% do voto popular a Medida 109, que cria um programa estadual de psicoterapia com o psicoativo dos cogumelos do gênero Psilocybe. Na mesma eleição saiu referendada a Medida 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), que descriminaliza a posse pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína.

No caso de Seattle, regulamentou-se apenas o uso da mescalina sintética, não obtida diretamente do peiote, cacto de reprodução lenta que cresce no sudoeste dos EUA e no México e caminha para risco de extinção na natureza se for coletado de forma intensiva. É uma vitória de grupos de indígenas norte-americanos, como os praticantes da Native American Church, que temem por sua planta sagrada.

Psilocibina x MDMA

A empresa britânica Compass Pathways, objeto de controvérsia por suas patentes de psilocibina em psicoterapia para depressão, anunciou que fará ensaio clínico de fase 2 sobre tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) com a mesma droga. Serão 20 pacientes no estudo a cargo do King’s College de Londres.

O mesmo transtorno é objeto do teste clínico mais avançado de psicodélico para TEPT, de fase 3, com o empatógeno MDMA (ou ecstasy, que não ocasiona efeitos visuais), patrocinado pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos. O Boletim Psylocybin alpha ouviu a respeito Rick Doblin, líder da entidade mais conhecida pela sigla em inglês Maps.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Rick disse não ver a psilocibina para TEPT como concorrente, pois se trata de maximizar benefícios para portadores: “Dou boas-vindas à pesquisa da Compass sobre psicoterapia assistida por psilocibina para TEPT, assim como para pesquisas com cetamina, ibogaína e outros tratamentos”.

A própria Maps investiga o uso de maconha para TEPT em 300 veteranos de guerra, com financiamento de US$ 12,9 milhões (mais de R$ 70 milhões). Rick vê com interesse a ideia de comparar e detalhar efeitos de ambas as drogas, inclusive para investigar a possibilidade de associá-las em fases sucessivas do tratamento, ou mesmo em conjunto, no que se conhece como “candy-flipping”.

“É nossa opinião que a terapia assistida por MDMA tem probabilidade de ser mais segura e eficaz do que a terapia assistida por psilocibina para TEPT, ou LSD, por causa das propriedades redutoras do medo no MDMA. Entretanto, essa é uma questão empírica que precisa ser resolvida por meio de pesquisa, e é por isso que damos as boas-vindas ao estudo da Compass”, disse o dirigente da Maps ao boletim.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

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Renascimento psicodélico chega à Escola de Direito da Universidade Harvard https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/05/renascimento-psicodelico-chega-a-escola-de-direito-da-universidade-harvard/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/05/renascimento-psicodelico-chega-a-escola-de-direito-da-universidade-harvard/#respond Mon, 05 Jul 2021 18:36:59 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/PFC_Logo-New-Horizontal_slide_400_300_65_s_c1-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=538 Harvard, em alguns rankings a melhor universidade do mundo, entra com os dois pés no terreno fértil da pesquisa sobre psicodélicos. Cinco meses depois de seu hospital-escola Mass General abrir um Centro para Neurociência de Psicodélicos, a Escola de Direito de Harvard lança o Projeto sobre Direito e Regulação de Psicodélicos.

A iniciativa do Centro Petrie-Flom atende pelo simpático acrônimo Poplar, que em inglês é um nome de árvore, choupo. O projeto tem conexão com o pioneirismo de Oregon na descriminalização de psicodélicos, na pessoa do líder do projeto Mason Marks, membro do Comitê Consultivo de Psilocibina daquele estado americano.

O Poplar focalizará cinco áreas: ética em pesquisa e terapêutica psicodélica; desafios na intersecção de psicodélicos com direito de propriedade intelectual; oportunidades para fomento federal de pesquisa psicodélica; acesso a terapias psicodélicas e equidade na indústria psicodélica emergente; e papel de psicodélicos na cura de traumas.

Com efeito, um dos temas legais mais espinhosos em torno de psicodélicos são as patentes abusivas. A Vice, por exemplo, publicou quinta-feira passada (1) reportagem de Shayla Love apontando a concessão de patente para tratamento de alergias alimentares com LSD, algo que nem mesmo se encontra em estudo.

A corrida por direitos de propriedade intelectual parte dos bons resultados experimentais obtidos por psicodélicos contra transtornos psiquiátricos. A substância mais próxima de obter regulamentação da agência de fármacos americana (FDA) é o MDMA (base do ecstasy), para tratamento do estresse pós-traumático –uma patologia enfrentada por mais de 800 mil veteranos dos EUA, um país dado a cultuá-los como heróis.

Acesso futuro aos tratamentos inovadores, inclusão de grupos minoritários na nova indústria e repartição de benefícios com povos tradicionais são outros temas emergentes. Agora é a hora de contemplá-los nas normas regulatórias que estão pipocando por toda parte nos Estados Unidos e noutros países.

Maine, Vermont, Flórida, Iowa, Califórnia, Massachusetts, Connecticut e Havaí debatem legislações com vistas a descriminalização (extinção de penas para quem usa ou possui pequenas quantidades) ou legalização (permissão para comercializar) de psicodélicos e até opioides. Também o Canadá debate se segue essa via, aberta há duas décadas por Portugal, um caso de sucesso na prevenção de overdoses e mortes.

Não se descarta nem que a legislação federal americana acabe indo na linha que tantas cidades e estados acabaram adotando com maconha medicinal, depois com uso recreativo e, nos últimos meses, com psicodélicos. No mesmo dia (17 de junho) em que a Guerra às Drogas de Richard Nixon completou 50 anos, a Câmara dos Representantes recebeu um projeto de lei para reforma da política de drogas.

Trecho de notícia publicada no jornal britânico The Guardian (Reprodução)

De autoria de das deputadas democratas Bonnie Watson e Cori Bush, a proposta prevê acabar com penalidades criminais para posse de drogas. Prescreve ainda a transferência de jurisdição sobre as substâncias e seus usuários do Departamento de Justiça para a Secretaria de Saúde e Serviços Humanos, mudança similar à executada em Portugal.

O projeto contou com consultoria da Aliança para Políticas de Drogas (DPA, em inglês). Kassandra Frederique, diretora-executiva da DPA, disse em depoimento na Câmara que o fracasso da Guerra às Drogas em reduzir mortes (além de encarcerar em massa negros e latinos) “exacerbou os perigos de mercados ilícitos e impediu a implementação de sistemas robustos de redução de danos, afastando as pessoas que querem e precisam de ajuda para longe dos recursos de saúde pública”.

Plantação de maconha em clube de cultivo perto de Montevidéu, Uruguai (Danilo Verpa/Folhapress)

No Brasil, recurso extraordinário aguarda há uma década decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade de manter como crime a posse de maconha. Mais de 1/5 da população carcerária aqui está trancafiada por tráfico de drogas, acusação e condenação mais comuns, muitos por flagrantes com quantidades mínimas de maconha, cocaína ou crack.

O julgamento começou em 2015, com três ministros a favor da descriminalização. Em 2019, o julgamento poderia ter sido reiniciado, mas os presidentes do STF Dias Toffoli e Luiz Fux tiraram o tema da pauta desde então, para não melindrar Jair Bolsonaro. Zero de ativismo judicial aqui.

O presidente, aliás, já prometeu vetar qualquer coisa que saia do Congresso no sentido de legalizar até a maconha medicinal. Decisão da Anvisa autorizou esse tipo de uso, mas o plantio de cânabis para obter o fármaco canabidiol segue proibido, forçando pacientes –crianças com epilepsia grave, por exemplo– a pagar caro por produtos importados.

Bolsonaro et caterva só imitam Estados Unidos  e Israel no que eles têm de pior.

Não se pode esperar outra coisa de um governo que trivializa a morte de 520 mil brasileiros e cumprimenta policiais pela chacina de Jacarezinho. E que dificulta por meses a compra da vacina mais moderna enquanto move mundos e fundos para acelerar contrato com vistas a 400 milhões de doses inexistentes oferecidas por empresa de três funcionários do Texas representada por um cabo da PM de Minas Gerais que denunciou pedido de propina pelo Ministério da Saúde.

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‘Efeito comitiva’ distingue ayahuasca e cogumelos de outros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/#respond Sat, 06 Feb 2021 19:35:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/jaguve2horizontal-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=303 Muita gente sabe que o chá ayahuasca se prepara com duas plantas, o arbusto chacrona (Psychotria viridis) e o cipó-mariri ou jagube (Banisteriopsis caapi), mas não por que essa mistura é importante para seu poder psicodélico. Por trás de sua força está o “efeito comitiva” (entourage effect), sinergia entre substâncias vegetais que tornam o daime algo único entre compostos psicodélicos.

Eis aí um tema quente no panorama da neurociência dos produtos também chamados de “entactógenos”. Um exemplo da atenção que o assunto desperta está no artigo “O Papel da Ayahuasca no Efeito Comitiva e Depressão”, de José Alexandre Salerno, que apareceu em 28 de janeiro na Psychedelic Science Review.

Salerno faz doutorado com Stevens Rehen na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Rehen se destaca na neurociência brasileira pelo uso de organoides cerebrais (“minicérebros” construídos em laboratório a partir de células pluripotentes) para desvendar o perfil de ação de psicodélicos sobre tecidos neurais.

“Vejo muitos autores-cientistas escrevendo sobre a ayahuasca e seu potencial terapêutico, mas quase sempre restritos  às moléculas, sem dar muitas satisfações ao leitor sobre a complexidade da infusão”, diz Salerno,  “incluindo todos os aspectos socioculturais que poucos conhecem –o que é irônico, já que a ayahuasca foi testada em humanos como a infusão completa e natural.”

A alteração da consciência propiciada pela ayahuasca tem sua origem no composto n,n-dimetiltriptamina (DMT). Presente nas folhas da chacrona, a substância seria incapaz de ocasionar visões –as “mirações” de religiões ayahuasqueiras como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha– e a dissolução do ego características do efeito psicodélico ao ser ingerida sozinha, porque seria degradada no trato digestivo.

Folha de chacrona, Psychotria viridis (Marcelo Leite/Folhapress)

Para chegar ao cérebro, a DMT precisa da ajuda da harmina, uma das substâncias do grupo das betacarbolinas presentes no jagube. A harmina inibe a ação da enzima monoamina-oxidase (MAO) do estômago e do fígado, que sem o componente do cipó quebraria a DMT, impedindo sua difusão no organismo pela corrente sanguínea.

Essa parceria produtiva entre harmina e DMT é a base do que se convencionou designar como “efeito comitiva”, o entourage effect da expressão franco-anglo-saxônica (a harmina e demais betacarbolinas fazem mais, entretanto, como se verá adiante). A locução nasceu em 1998 para designar outro casamento feliz, desta vez entre componentes da maconha em sua interação com os receptores “promíscuos” para canabinoides no cérebro, na expressão do pioneiro em pesquisa com cânabis Raphael Mechoulam, do Instituto Weizman.

Plantação de maconha em clube de cultivo perto de Montevidéu, Uruguai (Danilo Verpa/Folhapress)

A primeira vez em que ouvi fala de efeito comitiva foi em palestra do neurocientista Sidarta Ribeiro na conferência Psychedelic Science de 2017, em Oakland (Califórnia). O pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) fez uma defesa ao mesmo tempo racional e apaixonada de produtos naturais, como variedades de marijuana com maiores ou menores teores relativos de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) e a própria ayahuasca.

Quase quatro anos atrás, ao responder uma questão da plateia em Oakland, Ribeiro disse desconhecer se o efeito comitiva também caracterizava um psicodélico natural muito popular, os cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe. Depois disso, explica agora, artigo de Barbara Bauer na mesma PSR descreveu a interação entre psilocibina e aeruginascina.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

“À medida que a gente começa a entender melhor essas substâncias e essas interações, a tendência é crescer essa lógica”, diz Ribeiro. “O conceito mais geral é que, quando se usa uma preparação com muitos análogos de uma mesma molécula-base, um padrão como no caso da serotonina, se alcance esse efeito de um ataque complexo a esse receptor, de maneira que ele nunca caminhe para a tolerância e para sua própria diminuição. Parece que isso começa a emergir como um princípio amplo.”

Na maconha e nos cogumelos, a comitiva de moléculas se apresenta naturalmente, mas não na ayahuasca, uma invenção humana. Nunca será possível saber de que povo nem quando surgiu a técnica de ferver os dois vegetais, mas a pesquisa vem demonstrando que os efeitos neurológicos da infusão parecem ir muito além da sinergia entre betacarbolinas e DMT que propicia a alteração da consciência e engendra as mirações.

No centro das atenções está a harmina. O grupo de Rehen na UFRJ e no Idor mostrou, com ajuda de organoides, ter ela mesma relação estreita com o fenômeno da neuroplasticidade que se postula estar por trás do potencial antidepressivo do daime.

Outro estudo de pesquisadores brasileiros e australianos, com Nicole Galvão-Coelho à frente, mostrou que os compostos presentes na ayahuasca também têm efeito anti-inflamatório, provável componente da depressão resistente a medicamentos. Seu grupo na UFRN mediu o nível da proteína C-reativa no sangue de pacientes que tomaram ayahuasca e verificou que eles tinham níveis diminuídos.

Proteína C-reativa, marcador de inflamação que tem baixa quantidade em quem toma ayahuasca

“A substância harmina é mais estudada na literatura científica do que a própria DMT, o psicodélico da infusão”, diz Salerno. “Sem querer roubar o protagonismo do psicodélico, acho importante a reflexão científica de que provavelmente a mistura complexa da ayahuasca vai muito além do que já conseguimos responder até hoje sob o rigor do método científico.”

O aluno de Rehen pondera que a ayahuasca já é considerada eficaz há milhares de anos por povos nativos. “Talvez falte diálogo da ciência biomédica com as sociais para que as razões dessa eficácia possam eventualmente ser respondidas pela ciência biomédica também.”

“Compostos isolados, e até os sintéticos, oferecem a grande vantagem do controle mais rigoroso, especialmente de qualidade, e tornam a proposta de terapia assistida com psicodélicos bem mais atrativa e comercializável pelas gigantes farmacêuticas. Mas talvez estejamos deixando escapar variáveis importantes ao considerar os compostos isolados.”

A defesa das comitivas naturais parece mais comum entre estudiosos de alteradores de consciência que os investigam também da perspectiva da fenomenologia, ou seja, com experiência própria. Eles costumam ainda dar reconhecimento a saberes ancestrais que legaram seu uso para a ciência.

No polo oposto da tensão que percorre a cena psicodélica ficam os psicofarmacólogos mais reducionistas. Seu feijão-com-arroz é isolar princípios ativos e sintetizá-los, na convicção de que moléculas e receptores específicos são individualmente responsáveis por fenômenos neurais discretos.

Algo similar se viu na história da genética, em que o paradigma um gene/uma função (ou uma característica) acabou cedendo lugar, por força de observações empíricas, para uma visão mais complexa. Hoje se buscam mais associações entre genes espalhados pelo genoma inteiro, partindo do princípio de que fenótipos resultam da interação de vários genes entre si e com fatores ambientais e do organismo, como as marcas epigenéticas agregadas ao genoma no curso da vida.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

Existe até quem acredite que o efeito psicodélico propriamente dito –visões, dissolução do ego, sinestesia etc. –possa ser dispensável A psiquiatria poderia assim lançar mão do poder reparador dessas substâncias expurgado da alteração da consciência. Mas há também estudos indicando que o benefício terapêutico é proporcional a intensidade da experiência mística (outros diriam: do grau de dissolução do ego).

Em resumo, haveria um outro efeito comitiva, por assim dizer, nos psicodélicos em geral: não se vence a ruminação sem uma dose de dissociação, ou, como diz Robin Carhart-Harris, sem um aumento de entropia no cérebro. A ciência psicodélica precisa de mais jogo de cintura.

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Timothy Leary prova que não se fazem mais influencers como antigamente https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/#respond Mon, 28 Dec 2020 10:35:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/TimothyLeary-LectureTour-OnStage-SUNYAB-1969DennisBogdan-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=214 No começo dos anos 1970, a mudança para uma casa maior trouxe a chance de realizar o sonho dos três adolescentes: um quarto para cada um. Em lugar disso, os dois rapazes abriram mão da privacidade ao repartir um dos cômodos e concretizar no sobressalente sonho ainda mais poderoso: ter espaço exclusivo para a moçada “curtir”.

Uma das paredes foi pintada de azul escuro, e sobre ela aplicaram-se dezenas de estrelas prateadas com um molde e tinta em spray. Um colchão direto sobre o piso, coberto com colcha indiana, recebeu várias almofadas. As estampas preferidas de tecidos eram artesanais, em geral tie-dye.

Instalaram sobre estante de tábua e tijolos vazados o bem mais precioso: um conjunto de som estéreo Gradiente (amplificador, duas caixas de som e fones de ouvido) conectado ao toca-discos Garrard e ao gravador Akai de rolo. Ali se refugiavam para ouvir música, em discos de vinil emprestados (copiados em fitas BASF) por amigos mais afortunados que tinham feito intercâmbio nos EUA.

Os três jovens talvez não soubessem (um certamente não sabia), mas seguiam os conselhos psicodélicos de Timothy Leary sobre set e setting. Ou seja, queriam expandir a consciência e projetaram um ambiente acolhedor para suas viagens.

O avô de todos os influencers havia criado o lema corrosivo da contracultura: turn on, tune in, drop out (ligue, sintonize, caia fora, em tradução pobre). No Brasil se dizia “desbunde”:  mergulhar na vida interior, sob influência de música e drogas, recusando o caminho previsível estudo-trabalho-família oferecido pelo “sistema”.

Ouviam-se Beatles, Pink Floyd e Traffic em meio à fumaça de maconha. O LSD prescrito por Leary era caro e raro, mas aparecia. Os mais atirados se mandavam para Arembepe ou Caixa-Prego, na Bahia; outros conseguiam alcançar a Meca lisérgica em Londres ou Amsterdã, “num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, como cantou Gilberto Gil.

Praia de Arembepe, na Bahia (Divulgação)

Milhões de adolescentes seguiram essa trilha pelo mundo. Até hoje, meio século depois, ainda se ouvem os ecos da revolução hippie –não é por acaso que se traduziu o like das redes sociais como curtir, gíria criada na época. Filhos e netos daqueles cabeludos ainda escutam Beatles e gozam da liberdade sexual conquistada por eles.

Leary não foi o único líder de uma geração que se insurgiu contra a Guerra do Vietnã e as ditaduras militares, apenas seu profeta mais midiático. Hoje é fácil ser influencer, com YouTube e Instagram na palma da mão –e também mais efêmero. Quem acredita que daqui a 50 anos vai ter tiozão cabeça escrevendo sobre Felipe Neto ou Whindersson Nunes?

Ninguém nem sonhava com internet nos anos 1970. As ideias se propagavam de um continente a outro em LPs, livros, revistas e cartas, ou viajavam na cabeça dos abastados que conseguiam ir e voltar de avião. Leary se tornou inimigo público número um nos EUA gravando conselhos em discos de vinil e exibindo na TV seu sorriso inconfundível (no que seguia a recomendação de Marshall McLuhan, teórico pioneiro da comunicação de massa).

Capa do LP “L.S.D.”, de Timothy Leary (Reprodução)

Leary gravou três discos de propaganda psicodélica: “Turn on, Tune in, Drop out”, “The Psychedelic Experience” e “L.S.D.” (todos disponíveis no Spotify). O psicólogo banido de Harvard pelos excessos do Projeto Psilocibina fala inglês devagar, quase hipnoticamente, com longas pausas entre as frases. Não há estridência, só convite a reflexão, suavidade e bondade. Parece incrível, ouvindo-o hoje, que tenha deixado marcas tão profundas na memória coletiva que chamamos de cultura.

Timothy Leary acabou preso várias vezes, fugiu da prisão e peregrinou pelo mundo. Um câncer de próstata o matou em 1996. Seu corpo foi cremado e, dez meses depois, sete gramas das cinzas foram lançadas no espaço a bordo de um foguete Pegasus, junto com as de outras 23 pessoas –entre elas Gene Roddenberry, criador de “Jornada nas Estrelas”.

Os luminares do renascimento atual são neurocientistas e querem provar em bancadas de laboratório os benefícios mentais que Leary e seus companheiros pretendiam espalhar pelo mundo. Fazem de tudo para se desvincular de sua pregação messiânica, e têm boas razões para isso, pois foi o potencial político subversivo que deu pretexto para a reação conservadora proibicionista enterrar a ciência psicodélica por três décadas.

Sinal dos tempos, contam até com um influencer, por coincidência outro Timothy: Tim Ferriss, coach de negócios e investidor que ajudou a levantar US$ 30 milhões para os testes clínicos de MDMA (ecstasy) contra transtorno de estresse pós-traumático, que deve levar à autorização da primeira terapia psicodélica em 2023.

Estaremos ainda falando de Tim Ferriss em 2070 como hoje lembramos de Tim Leary? Meu palpite é que não se fazem mais influencers como antigamente.

Bom 2021 a todos.

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ONU e EUA dão nova vida à maconha; Brasil elege morte por armas de fogo https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/onu-e-eua-dao-nova-vida-a-maconha-brasil-elege-morte-por-armas-de-fogo/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/onu-e-eua-dao-nova-vida-a-maconha-brasil-elege-morte-por-armas-de-fogo/#respond Fri, 11 Dec 2020 10:46:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/MaconhaFlorDaniloVerpaFev2020-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=158 A reclassificação da maconha no imaginário moral e na legislação avança pelo mundo. As Nações Unidas deram o passo mais recente na reforma de políticas de drogas, semana passada, quando sua Comissão sobre Drogas Narcóticas retirou a cânabis do Anexo 4 (Schedule IV) da convenção da ONU sobre a matéria.

A Convenção Única sobre Drogas Narcóticas data de 1961 e foi emendada pelo Protocolo de 1972 (há ainda uma Convenção sobre Drogas Psicotrópicas de 1971). O Anexo 4 relaciona as substâncias supostamente mais perigosas e causadoras de dependência, e manter a marijuana ali estava em franca contradição com a tendência liberalizante observada em várias partes do mundo –mas não no Brasil, claro.

Vários referendos e plebiscitos na eleição presidencial americana mudaram o status legal da maconha em alguns dos 50 estados. Agora são 38 deles em que o uso medicinal está autorizado e 16 em que se permite o uso recreativo adulto.

O último lance partiu da Câmara dos Deputados de lá, que retirou a planta da lei de substâncias controladas, em que figurava ao lado de cocaína e heroína, muito mais perigosas. Para que a descriminalização federal se efetive, há que aprovar a nova legislação no Senado ainda dominado por republicanos, o que parece improvável.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

De certo modo mais surpreendente, vista do Brasil, foi a descriminalização de cogumelos psicodélicos Psilocybe em Oregon e Washington, DC. Isso embora as substâncias psicoativas dos fungos, psilocibina e psilocina, continuem nas listas de compostos proscritos.

As mudanças legais são impulsionadas pela pesquisa biomédica, que comprovam a cada dia benefícios terapêuticos tanto da maconha quanto de psicodélicos. No primeiro caso, para tratar várias condições, como certos tipos de epilepsia e efeitos adversos de quimioterapia.

No caso da psilocibina e de psicodélicos como DMT (presente na ayahuasca), ibogaína, LSD e MDMA (ecstasy), estão na mira transtornos mentais como depressão, estresse pós-traumático, anorexia, ansiedade, tabagismo, alcoolismo e outras formas de dependência química. Os estudos ainda são experimentais, mas cada vez mais perto de obter aprovação para uso medicinal, pelo menos os que se referem a psilocibina para depressão e MDMA para estresse pós-traumático.

Na Holanda, o micélio de fungos Psilocybe (aglomerado de filamentos da hifa que se espalham abaixo do cogumelo propriamente dito), conhecido como “trufas psicodélicas”, é vendido até em cafés, porque essa variante não está especificamente proibida e acaba tolerada. No Brasil, situação parecida faz com que cogumelos secos possam ser adquiridos pela internet (para não falar da ayahuasca, legalizada para uso religioso).

Enquanto isso, arrasta-se no Congresso brasileiro, desde 2015, o projeto de lei 399, com vistas a “viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação”. O ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, se empenha pessoalmente para que a proposta não seja aprovada.

Plantação de cannabis da Cannasure, empresa israelense de maconha medicinal. (Lalo de Almeida/ Folhapress)

Outra frente se encontra paralisada no Supremo Tribunal Federal. O plenário iniciou também há cinco anos o debate sobre descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal, mas, após três votos favoráveis, o tema espinhoso não voltou à pauta –é de pensar que os presidentes do STF, em condição de fazê-lo, se encolhem por temor da reação bolsonarista.

Nesse quadro para lá de retrógrado, parece impensável que entre em pauta a regulamentação de substâncias psicodélicas. Isso embora o país tenha tradição de pesquisa na área, desde pioneiros como Elisaldo Carlini na Unifesp, passando pela USP de Ribeirão Preto e, mais recentemente, pela UFRN, Unicamp e outras instituições de pesquisa.

O presidente Jair Bolsonaro não se importa com saúde e vida, como tem deixado evidente na reação à Covid-19. Faz pouco caso da tortura, do estupro, da homofobia, do racismo, da violência miliciano-policial e dos 180 mil mortos pelo coronavírus, mas vê sentido em eliminar impostos para importação de armas de fogo em meio a grave repique da epidemia.

Seu negócio é a morte, sempre foi. Só num país de gente frouxa ele poderia chegar ao poder e nele se manter por dois anos inteiros, rindo até de quem o elegeu.

Os então deputados Alberto Fraga e Jair Bolsonaro fazem sinal com as mãos imitando armas de fogo (Alan Marques/ Folhapress-2015)
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Oregon e Washington, DC descriminalizam psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/oregon-e-washington-dc-descriminalizam-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/oregon-e-washington-dc-descriminalizam-psicodelicos/#respond Wed, 04 Nov 2020 10:58:09 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Psilocybe-cubensis-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=71 Ao menos uma coisa já se decidiu nas eleições de terça-feira (3) nos EUA: em dois estados a população poderá contar com substâncias psicodélicas para enfrentar o resultado do pleito para presidente.

Oregon e Washington (DC) descriminalizaram a posse da psilocibina (cogumelos “mágicos”) e outros compostos. No segundo caso, porém, a decisão ainda depende da chancela do Congresso.

Em Oregon foram aprovadas as medidas 109 e 110. Na primeira, os eleitores aprovaram a psilocibina –um psicodélico em teste para tratamento de depressão—para uso como apoio para psicoterapia, em ambientes controlados, como clínicas.

A governadora Kate Brown nomeará agora um comitê para detalhar as condições em que a droga poderá ser ministrada.

A medida 110 é bem mais ampla: despenaliza todas as drogas –cocaína, heroína, crack etc. A posse de qualquer uma delas passa a ser punida apenas com multa de US$ 100, e não com prisão de um ano e até US$ 6.250 de sanção.

O usuário problemático pode, no entanto, livrar-se da multa se aceitar ser encaminhado para tratamento. É semelhante ao modelo de Portugal, que tem por objetivo recuperar o dependente químico no sistema de saúde, e não mais responsabilizá-lo pela via judicial.

No Distrito de Colúmbia (DC), a Iniciativa 81 exclui das prioridades de ação policial o uso individual de drogas extraídas de plantas e fungos, os chamados “enteógenos”, como a psilocibina, a ibogaína (da planta africana Tabernanthe iboga), a mescalina (do cacto peiote) e a dimetiltriptamina (DMT, do arbusto chacrona, usada na ayahuasca).

Legislações semelhantes já haviam sido adotadas em três cidades: Oakland e Santa Cruz, na Califórnia, e Ann Arbor, em Michigan. Em Denver, Colorado, a psilocibina também foi legalizada.

O Congresso americano tem prazo de 30 dias para revisar a medida na capital, pois lhe cabe a prerrogativa de derrubar a nova norma. Em 2014, eleitores de DC aprovaram a Iniciativa 71, que permitia o uso adulto da maconha, mas congressistas ainda impedem o governo local de usar fundos públicos para implementar a medida.

Outros estados americanos também realizaram na terça consultas públicas sobre a maconha. O consumo adulto recreativo foi aprovado nos seguintes lugares: Arizona, Dakota do Sul, Nova Jersey e Montana. E o uso médico, no Mississippi e, de novo, Dakota do Sul.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Antes da eleição, três dezenas de estados já haviam autorizado uma ou as duas modalidades de consumo de cânabis, totalizando uma população de 93 milhões de pessoas. Com os resultados desta eleição, agora 1 em cada 3 americanos podem contar com a erva para se divertir ou cuidar da saúde abalada.

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Psiconautas temem explosão de interesse do mercado por drogas ilícitas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/#respond Sun, 01 Nov 2020 18:19:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/CidadePsicodelicaGordonJo0hnson-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=61  

As drogas psicodélicas –LSD, ecstasy, cogumelos “mágicos”– caíram em desgraça com a voga proibicionista dos anos 1970/80, quando conservadores reagiram em pânico diante da contracultura. Agora são os herdeiros dos hippies a temer, em face da voracidade capitalista que ameaça neutralizar seu apelo libertário.

“Herdeiros dos hippies” pode soar pejorativo para os que se dedicam ao assunto intelectualmente; melhor falar em “psiconautas”. A área de estudos ficou pelo menos duas décadas submersa, mas vive um renascimento com a proliferação de estudos clínicos sobre benefícios para a saúde mental –que já atraem a atenção de investidores.

Quatro psiconautas renascentistas do Brasil participaram de um debate sobre o tema na quinta-feira (29): a antropóloga Bia Labate, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli e os psicólogos Bruno Gomes e Fernando Beserra. Promovida pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd), a discussão ofereceu boa amostra das preocupações que afligem quem não caiu de paraquedas nesse campo.

Bia fala de um ponto de vista privilegiado, desde a Califórnia, onde lidera o Instituto Chacruna, especializado em plantas medicinais como as que entram no chá ayahuasca. Ela disse no encontro virtual que o último ano assistiu a uma explosão em torno dos psicodélicos, nos EUA, na esteira da legalização da maconha medicinal e recreativa em vários estados.

Ela apontou duas vertentes para o que chamou de “verdadeiro Eldorado”. Primeiro, o avanço de testes clínicos com MDMA (ecstasy) para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e com a psilocibina dos cogumelos Psilocybe para depressão. Ambas as substâncias estão em via acelerada para obter autorização da FDA, agência americana de fármacos, o que a antropóloga previu para 2022 ou 2023.

A outra vertente se manifestou na descriminalização da psilocibina em quatro cidades americanas vanguardistas (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor). O movimento se encorpa agora com plebiscitos que vão na mesma direção, na próxima terça-feira (3), em Oregon e Washington DC (além de cinco outros estados que podem somar-se aos 30 em que o uso medicinal ou recreativo da maconha se tornou legal).

Multiplicam-se as conferências virtuais, documentários, manifestações de celebridades, lançamentos de empresas, cursos de capacitação, organizações não governamentais, assinalou Bia.

“Uma espiral sufocante. Os pesquisadores vão também precisar fazer tratamento para ansiedade”, brincou. E emendou, a sério: “É outro mundo, não o dos hippies. O cara que fez fortuna com cânabis medicinal agora vai investir em psilocibina para depressão”.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Em setembro a empresa londrina Compass Pathways, fundada há apenas quatro anos, abriu oferta de capital na bolsa de Nova York e viu seu valor de mercado saltar US$ 544 milhões. Dona de controvertida patente para uma versão sintética cristalizada da psilocibina, COMP360, lidera um dos estudos para seu uso como adjuvante de psicoterapia para depressão.

Tófoli, da Unicamp, concordou com a ideia de uma “invasão do capitalismo predatório”, segundo sua descrição, mas alertou que ainda não há comprovação completa do efeito terapêutico dos psicodélicos. Falta cumprir a etapa científica dos ensaios clínicos de fase 3 e vencer os obstáculos regulatórios para, aí sim, tentar derrubar os preconceitos que ainda sobrevivem na classe médica.

O psiquiatra antecipa que empresários possam ter dificuldade com o componente alterador da consciência dos psicodélicos, fonte do revide reacionário de décadas atrás, e que na sua opinião faz parte do pacote terapêutico. Nos EUA e no Brasil, a atmosfera não ajuda: “É romântico pensar que substâncias proscritas possam curar pessoas neste mundo doente.”

Tome-se o caso da microdosagem, que ganhou fama não como cura, mas capacitação, melhoramento. No Vale do Silício ou em Wall Street, recorre-se a doses subclínicas periódicas de psilocibina ou LSD (ou seja, incapazes de produzir efeito psicodélico) em busca de maior produtividade e criatividade. Fazer dinheiro, não viagens.

O psicólogo Fernando Beserra, um dos fundadores da Associação Psicodélica do Brasil, há cinco anos, reivindicou no debate que se retome a tradição política dessas substâncias, que corre o risco de diluir-se no seu enquadramento médico e comercial. “Será que a microdosagem tem de ser só produtivista, ou há um potencial transformador, [na linha] da contracultura?”

Beserra se preocupa com o futuro acesso a essas drogas, se e quando ficar provado seu sucesso clínico, diante das patentes e da investida empresarial. “Como vai chegar no Terceiro Mundo, no Brasil, ainda mais sob Bolsonaro? O debate político é para hoje, para agora, para poder sonhar um dia com outros cenários, outros caminhos.”

Nessa altura da discussão virtual, transcorrida quase uma hora, havia 84 pessoas assistindo. Uma delas escreveu na área de comentários: #PsicodélicosNoSUS.

O psicólogo Bruno Gomes, que mediava o debate, falou de outra explosão, a das culturas da ayahuasca no Brasil, que não se encontra mais restrita às religiões organizadas como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ocorreu uma popularização, uma capilarização, disse ele, com vários grupos a se multiplicar, religiosos ou não.

Mencionou também uma subcultura da ibogaína, composto psicodélico extraído de uma planta africana (Tabernanthe iboga). Apesar do risco de disfunção cardíaca, tem sido usada como terapia alternativa para dependência química. “Um mercado está se formando.”

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Nem sob efeito de psicodélicos é fácil imaginar que um dia eles cheguem ao SUS, num momento em que até seu exemplar Programa Nacional de Imunização enfrenta a ameaça da polarização ideológica –bem no meio de uma pandemia, e por causa de vacinas que ainda nem existem. Mas os cisnes negros existem, como prova o que acontece com a MDMA (base do ecstasy) e o TEPT nos Estados Unidos.

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês) está perto de conquistar a regulamentação do emprego da MDMA em psicoterapia para estresse pós-traumático, e conta para isso com a simpatia de militares e policiais (veja abaixo vídeo com depoimento do veterano Nick Blackston sobre sua recuperação, em inglês). Eles formam provavelmente o maior contingente dos 11,6 milhões de americanos que padecem desse transtorno.

A Maps publicou em 14 de outubro na revista científica PLoS One artigo animador sobre a economia que essa terapia para veteranos poderia trazer, na comparação com as opções terapêuticas disponíveis hoje (ineficazes para cerca de metade dos portadores). Só com hospitalizações por TEPT os EUA despendem a cada ano estimados US$ 4,4 bilhões.

O tratamento de um americano com o transtorno pode chegar a US$ 20 mil anuais. Recorrendo à psicoterapia com MDMA, gastam-se US$ 7.500 (90% disso para remunerar os terapeutas).

Tomando por base a melhora obtida por 74 participantes em seis estudos clínicos controlados randomizados de fase 2 realizados nos últimos anos, a Maps calculou que cada grupo de mil pacientes assim tratados permitiria a economia de US$ 103 milhões –em valores de hoje, já descontados– ao longo de 30 anos.

Essa linguagem os capitalistas dos planos de saúde entenderiam, assim como, talvez, os bons administradores remanescentes no Sistema Único de Saúde. E não faltam portadores de estresse pós-traumático no Brasil, com suas taxas vergonhosas de homicídios e letalidade policial, os cadáveres da fracassada guerra às drogas; se for a mesma proporção dos EUA, 3,5% da população, seriam mais de 7 milhões de brasileiros.

Louco, mesmo, talvez se mostre NÃO pensar em #PsicodélicosNoSUS.

 

 

 

 

 

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Além de Biden ou Trump, estados dos EUA votam psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/10/25/alem-de-biden-ou-trump-estados-dos-eua-votam-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/10/25/alem-de-biden-ou-trump-estados-dos-eua-votam-psicodelicos/#respond Sun, 25 Oct 2020 14:07:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/TabernantheibogaMarcoSchmidtCreativeCommons-255x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=44  

Oregon e Washington (DC) consultam eleitores sobre descriminalização de drogas como psilocibina e ibogaína

 

Em menos de dez dias eleitores americanos decidirão se seguem frente ou continuam presos ao passado. Não se trata só de escolher entre Joe Biden e Donald Trump, mas igualmente se vão descriminalizar substâncias psicodélicas (2 estados) e legalizar o uso medicinal ou recreativo de maconha (5 outros).

Olhando do Brasil de Jair Bolsonaro e Osmar Terra, parece incrível que 33 estados dos EUA já tenham legalizado a cânabis medicinal, dos quais 11 permitem também o consumo para recreação. Ou, ainda, que 4 cidades (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor) tenham descriminalizado, desde 2019, o composto psicoativo psilocibina de cogumelos do gênero Psilocybe.

Na legislação federal americana, assim como na brasileira e em tratados internacionais, as substâncias psicodélicas permanecem classificadas como drogas ilícitas. O impulso para a descriminalização local e regional vem de pesquisas científicas que têm mostrado resultados preliminares positivos no tratamento de distúrbios mentais como estresse pós-traumático e depressão.

No Distrito de Colúmbia (DC), sede da capital, os eleitores dirão sim ou não à radical Iniciativa 81. A exemplo do que se decidiu em Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor, a proposta pode tirar do rol de crimes a posse de fungos e plantas com compostos  como psilocibina, ibogaína (extraída do arbusto africano Tabernanthe iboga), mescalina (dos cactos peiote), dimetiltriptamina (DMT, presente na chacrona, planta usada no chá ayahuasca).

Proposta de 2020 “Política para Plantas e Fungos Enteogênicos”, a Iniciativa 81 (Reprodução)

Na apresentação da iniciativa, tais produtos são coletivamente descritos como “enteógenos”, neologismo criado com raízes gregas para “deus” e “interior”, etimologia similar à de “entusiasmo”. Refere-se à capacidade dessas substâncias de induzir alterações da consciência às quais recorrem xamãs e algumas religiões.

Em Oregon, duas medidas serão submetidas a voto em 3 de novembro, as de números 209 e 210. A 210 despenaliza a posse de drogas, que passa a ser punida com multa de US$ 100, e não mais com prisão máxima de um ano e até US$ 6.250 de sanção. Todas as drogas, cabe ressaltar, incluindo cocaína, heroína, crack, psicodélicos etc.

Não se trata de facilitar o consumo e o abuso dessas substâncias, mas de reorientar usuários problemáticos para o sistema de saúde (quem aceita tratamento pode livrar-se da multa). A Medida 210 segue o modelo alternativo à fracassada guerra contra drogas instituído com bons resultados em Portugal, como mostrou reportagem da série Estado Alterado na Folha.

A Medida 209 se concentra na psilocibina, reconhecida pela agência americana FDA como terapia de vanguarda (“breakthrough therapy”; esse status regulatório abre uma via mais rápida para testes clínicos por universidades e empresas). Ainda experimental, ela tem potencial para tratamento de depressão.

Se aprovada a medida em Oregon, o governador nomeará uma comissão de especialistas para normatizar como a droga poderá ser usada legalmente como adjuvante para psicoterapia em ambientes controlados.

Além dos psicodélicos em Oregon e DC, outros cinco estados decidirão sobre o uso medicinal e/ou recreativo de maconha: Arizona (Proposta 207), Dakota do Sul (Medida 26), Mississippi (Iniciativa 65), Montana (I-190), Nova Jersey (Questão Pública 1).

Página dos defensores da Iniciativa 65 no Mississippi, consulta sobre maconha medicinal (Reprodução)

 

Se alguém ainda tiver dúvida quanto a descriminalização e legalização –não só da maconha, mas de muitas drogas– se tornarem uma tendência respeitável de política pública, atente para o debate que se realizará quarta-feira (28) na Escola de Direito de Harvard, organizado pelo Centro Petrie-Flom para Políticas Legais de Saúde, Biotecnologia e Bioética.

Se preferir ouvir argumentos em português em favor da maconha, e também dar boas risadas, assista ao Greg News sobre maconha.

 

 

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