Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ciência aposta no anestésico psicodélico cetamina contra compulsão por jogo https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/30/ciencia-aposta-no-anestesico-psicodelico-cetamina-contra-compulsao-por-jogo/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/30/ciencia-aposta-no-anestesico-psicodelico-cetamina-contra-compulsao-por-jogo/#respond Mon, 30 Aug 2021 19:50:52 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/JOGO.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=588 A continuar a ampliação da gama de aplicações psiquiátricas potenciais, drogas psicodélicas correm o risco de ter sua imagem desacreditadas como um emplastro Brás Cubas, panaceia duvidosa. Agora até a compulsão por jogos de azar entra na mira da pesquisa de tratamentos psicodélicos experimentais.

O rol de terapias sob investigação não para de crescer: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, TOC, alguns transtornos do espectro autista, anorexia, dependência química… propõe-se que até males vistos como puramente fisiológicos, como enxaqueca e danos cerebrais em boxeadores, possam ser mitigados com alteradores de consciência.

Quem cacifa a utilização de um psicodélico contra a propensão compulsiva a jogar e apostar é a empresa canadense Awakn. Ela está recrutando participantes para um estudo no Reino Unido, sob direção de Celia Morgan, da Universidade de Exeter, que almeja esmiuçar o efeito da cetamina nos sistemas de recompensa atuantes nessa compulsão e no pensamento supersticioso que a sustenta.

A cetamina é um anestésico dissociativo raramente abordado na cobertura jornalística sobre o renascimento psicodélico (não aparece em meu livro “Psiconautas”, p. ex.). Droga legalizada de largo uso médico, faz sucesso também na cena noturna como “key” e vem sendo usada por psiquiatras para tratar depressão há pelo menos 15 anos, como injeção.

Mais recentemente, uma variante do composto chamada escetamina ganhou formulação nasal para emprego como antidepressivo. Uma vantagem dessas substâncias está no efeito mais curto, compatível com uso ambulatorial, em comparação com psicodélicos como ayahuasca e psilocibina, igualmente estudados para depressão.

Estima-se que só nos Estados Unidos haja 10 milhões de pessoas viciadas em jogo (2,5% da população). A Awakn está de olho em ampliar seu mercado terapêutico com outras formas de compulsão potencialmente tratáveis com cetamina, como dependência de álcool, contra a qual também planeja utilizar MDMA (base do ecstasy).

Abrindo o leque das várias formas de adição, incluindo por exemplo sexo, a parcela da população norte-americana afetada pode chegar a 27%. No mundo, a dependência química seria de 15-20%.

É um senhor mercado, e também um nicho de pesquisa regiamente financiado pelo governo dos EUA. Só a iniciativa HEAL (acrônimo em inglês de Ajudando a Acabar com Adição no Longo Prazo), da czarina da pesquisa sobre drogas Nora Volkow, destinou em três anos mais de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 8 bilhões, o triplo do orçamento do MCTI) para 500 projetos.

Volkow é criticada pelo neurocientista americano Carl Hart, de quem ele já foi próximo. Ele a acusa no livro “Drogas para Adultos” (Zahar) de fomentar uma histeria em torno do abuso de opioides nos EUA. De todo modo, em 2020, ocorreram 93 mil mortes por overdose naquele país (três quartos após uso de opioides), 29% a mais que no ano anterior.

Não deixa de ser curiosa a opção da Awakn de investigar cetamina e MDMA para adição. Há cinco décadas de experiência com um outro psicodélico derivado de plantas africanas, ibogaína, em tratamentos alternativos de dependência química, inclusive no Brasil, mas com a desvantagem de seu efeito tomar muitas horas e exigir monitoramento cardíaco.

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Brasileiros reforçam pesquisa com o psicodélico ibogaína para dependência https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/#respond Mon, 23 Aug 2021 22:03:32 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=579 “Chega uma hora que a gente cansa de usar, muitas vezes ficava com o cachimbo [de crack] na mão, chorando e pensando: ‘Não tô querendo, mas tô usando’. Nossa, é uma tristeza, um sofrimento mesmo.”

Os depoimentos de dependentes de crack, como este de Luan (nome fictício), são sempre doloridos e penosos de ouvir. Não foi recolhido pelo blog, mas pelo psicólogo Bruno Ramos Gomes, para a tese de doutorado defendida em maio na Unicamp (houve breve referência ao trabalho aqui no blog, em post anterior, “Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida”.

Título da tese: “O Uso da Ibogaína no Manejo da Dependência de Drogas no Brasil: Um Estudo Qualitativo de Seguimento por Um Ano” (ainda não está disponível em biblioteca digital, mas o link será incluído aqui assim que aparecer). Eis uma contribuição importante para saber em que contextos o Brasil se tornou o país com talvez a maior experiência na aplicação do composto de origem africana para tratar abuso de substâncias.

Gomes faz parte de uma das equipes que preparam testes clínicos controlados com ibogaína em terapia para dependentes brasileiros, com epicentro no Instituto de Psiquiatria da USP em São Paulo e capitaneada pelo psiquiatra André Brooking Negrão. O outro grupo tem Rafael Guimarães dos Santos e Jaime Hallak à frente, na USP de Ribeirão Preto.

Santos e Hallak acabam de lançar no periódico Psychopharmacology, com colaboradores da Espanha, uma revisão internacional de 18 estudos publicados entre 2015 e 2020 sobre efeitos adversos da ibogaína. O levantamento agrega um caso novo de morte aos 33 arrolados em revisões anteriores (há outro óbito ocorrido no Brasil, não publicado).

O estudo dá detalhes dos problemas cardíacos, convulsões e sintomas menores (zumbido, vômito, diarreia) que podem acompanhar a viagem onírica com extratos da planta Tabernanthe iboga. Arritmias ocorrem em casos raros, mas são controláveis se o paciente estiver monitorado por pessoal médico. O artigo conclui pela necessidade de testes clínicos de fase 1 para refinar o conhecimento sobre uso seguro da ibogaína.

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Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Esse é um dos problemas da popularização de terapias para dependentes com iboga no Brasil, como relata Gomes: nem todo atendimento se dá em condições favoráveis.

É provável que boa parte deles tenha sido tratado com segurança pelo médico Bruno Rasmussen Chaves, com internação por 24 horas e monitoramento cardíaco contínuo. Esse foi o primeiro dos contextos documentados na tese de doutorado da Unicamp orientada pelo psiquiatra Luís Fernando Tófoli.

Chaves já tratou mais de 2.000 pessoas em um quarto de século de experiência com terapia psicodélica em Santa Cruz do Rio Pardo e depois Ourinhos, no interior paulista. Ele segue à risca normas da Anvisa para importar a droga com alto grau de pureza, processo burocrático específico para cada paciente. Nunca teve um caso fatal.

A segunda situação de pacientes entrevistados por Gomes na tese é parecida, mas com diferenças importantes. O autor não nomeia a instituição, mas meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora) indica que se trata do Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), de Paulínia, outra cidade paulista, que alega o dobro de atendimentos de Chaves e registrou em 2016 uma morte horas após aplicação de ibogaína.

Menos controlado se mostra o uso do composto nos outros contextos exemplificados na tese, indivíduos e grupos que o utilizam como recurso contra dependência química numa zona cinzenta entre terapias e cerimônias religiosas com a ayahuasca. O perigo aumenta, e não se descarta que outras mortes tenham acontecido nesse circuito paralelo da ibogaína, não documentadas.

Gomes conclui que “alguns dos problemas enfrentados pelos participantes mostram riscos que devem ser levados em conta no uso da ibogaína e também em futuras regulamentações do seu uso, principalmente em relação a triagem e preparo do paciente, administração e dosagem da ibogaína e suporte durante o efeito agudo”.

O forte da tese, para interessados no aspecto subjetivo (“fenomenológico”, no jargão da ciência psicodélica), são os cinco relatos de dependentes que o psicólogo acompanhou por um ano, com entrevistas trimestrais. Um dos mitos que se desfaz com a leitura é o da ibogaína como panaceia ou bala de prata para exterminar a dependência.

Os pacientes saem melhores da experiência e descrevem como passaram por uma renovação da própria vida, mas não se livram do crack num passe de mágica. Chico (nome fictício), por exemplo, chegou a crer que encontrara a cura, como descreveu na primeira entrevista três meses de acompanhamento:

“Eu falei que me vi no uso [de crack], no dia da dose alta [de ibogaína]. Fiquei com dó de mim mesmo… Me vi desde pequenininho. Como me tornei isso?” –relatou a Gomes. “Venho de 12 internações, 20 anos de uso de crack. Eu às vezes lembro, mas não dá um trisco de vontade, nada! A memória não vem muito também. É como se eu nunca tivesse usado.”

Depois disso Chico teve recaídas esparsas, tomou ibogaína mais algumas vezes, porém com menos efeito. Procurou ajuda também na ayahuasca. Nas conversas subsequentes, já não dizia acreditar estar curado da dependência, mas sim amadurecido:

“Me tornei uma pessoa melhor, mais regrada. Nunca fui desonesto, nunca fui de mexer nas coisas do outro, mas agora tô até meio chato nessa parte. Fiquei até meio velho… Acho que amadureci. Pude me sentir uma pessoa que se resolveu com ela mesma. Ficava esperando felicidade e perguntando de onde ela ia vir… E ela tá aqui comigo. Consegui ficar feliz com o que eu já tinha.”

É de mais histórias e relatos como esse, tocantes e lúcidos, que a ciência psicodélica nacional precisa. Além, claro, de resultados sólidos da pesquisa rigorosa que pôs o Brasil na terceira posição entre os que produzem mais artigos científicos de alto impacto.

Só assim será possível vencer o preconceito que joga os psicodélicos na vala comum das drogas “demoníacas” e impede o avanço que alguns de nosso melhores cientistas perseguem, em favor da saúde mental, não sem risco para a própria carreira e reputação.

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Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/como-a-ibogaina-esta-ajudando-uma-jornalista-a-retomar-controle-da-vida/#respond Mon, 16 Aug 2021 19:49:30 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/IbogaGiselleCamargo-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=568 Aos 37 anos, a catarinense Giselle Camargo não tem do que reclamar, ao menos em aparência: jornalista bem-sucedida fora do eixo SP-RJ-DF, diretora e apresentadora do podcast pioneiro Anticast (criado em 2011, está na origem da série de TV “Caso Evandro”), mãe de um menino de cinco anos morando numa das capitais com melhor qualidade de vida (Curitiba).

Em 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro, angustiada com a situação política e fantasmas próprios, passou a beber, entornando mais de uma garrafa de vinho por dia. Sentia esvair-se o controle da própria vida, do peso, do sono, da depressão. Tomou a decisão de reagir, e buscou na ibogaína ajuda para tirar o pé do lodo existencial em que chafurda o país: “Estamos todos doentes no Brasil”.

Cresceu numa família adventista de São Francisco do Sul (SC), onde o pai era sindicalista. Drogas não faltavam na cidade portuária. Conviveu com mais de um parente dependente químico.

Aos 23 anos partiu sozinha para São Paulo, onde teve contato com maconha, ecstasy e cocaína, sem apegar-se a nenhuma delas. “Tomei um quarto de LSD e foi horrível, muito medo.” Remédios para emagrecer eram uma constante desde os 14 anos. Em 2009 começou a tomar antidepressivos.

Com o casamento e a gravidez, a jovem de 1m72 engordou e chegou aos 127 kg. Uma cirurgia bariátrica a devolveu para 69 kg, mas ela começou a beber, algo não incomum em quem faz a cirurgia de redução do estômago. O ponteiro da balança voltou a subir: 72, 74, 78 kg.

Na pior fase, estava bebendo já de manhã, mesmo de ressaca. Seguia trabalhando normalmente e decidiu que ia mudar a vida de “alcoolista funcional”, como se define. Não se animou com tratamentos convencionais, pouco eficazes. Aí se lembrou da recomendação de um psiquiatra a um parente, anos antes, de terapia com ibogaína para dependência química.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta africana de cuja raiz se extrai a ibogaína(Marco Schmidt/Creative Commons)

“Estou velha, no sentido de mais madura. Fui atrás. Já deu. Não tem como não dar [certo]”, contou Giselle ao blog no final de maio. Essa primeira conversa ocorreu quatro dias antes de sua sessão com ibogaína em Ourinhos (SP), aos cuidados do médico Bruno Rasmussen Chaves e do psicólogo Bruno Ramos Gomes, aos quais chegou depois de muita pesquisa, como convém a uma jornalista.

O primeiro passo foram consultas remotas de preparação, com Gomes. Falou de seu medo de morrer e deixar o filho sozinho, caso algo acontecesse com ela e o marido em trânsito para o interior paulista.

Recebeu esclarecimentos sobre o baixo risco do procedimento, que Chaves compara com o de uma pequena cirurgia, e preferiu deixar uma carta para o menino explicando o propósito da viagem. No dia 1º de junho tornou-se uma entre mais de 2.000 pacientes tratados com ibogaína pelo médico.

Chaves, um gastroenterologista, começou a ministrar o composto da planta africana Tabernanthe iboga em 1994. Travou contato com o potencial terapêutico do extrato em encontro casual com Howard Lotsof, ex-dependente que abandonou a heroína e se tornou apóstolo da ibogaína nos Estados Unidos, onde ela permanece proibida (no Brasil se veda o comércio, mas a Anvisa admite importação, caso a caso, da droga não regulamentada).

Um pouco dessa história vai contada no quarto capítulo do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora), em que falo também do uso da iboga no culto Bwiti do Gabão. Nos próximos dias a newsletter MAPS Bulletin  publicará artigo sobre iniciativas pioneiras de pesquisadores brasileiros com ibogaína para drogadição.

O leitor também pode informar-se diretamente com Chaves, Gomes e o psiquiatra André Brooking Negrão, colaboradores num ensaio clínico da USP sobre dependência de crack e cocaína que participaram em 15 de julho de uma conversa sobre ibogaína organizada por Chacruna Latinoamérica.

Giselle tomou às 8h30 uma dose moderada de hidrocloreto de ibogaína (12 mg por quilo de peso), na versão semissintética com 99% de pureza da empresa Phytostan utilizada por Chaves, que mantém seus pacientes em observação por 24 horas na Santa Casa de Ourinhos. Em ambiente hospitalar, com monitoramento contínuo, fica mais fácil intervir no caso de raras arritmias cardíacas, que podem ser fatais.

Há registro de 33 mortes no mundo após ingestão de ibogaína, em geral associadas com doenças cardíacas preexistentes ou uso concomitante de outras drogas, como heroína e cocaína. Chaves nunca teve um caso de complicação grave assim.

A jornalista passou então pelas três fases características do efeito do alcaloide. Após uma hora, começou a sentir uma vibração intensa e, em seguida, tontura e zunido no ouvido, recebendo a recomendação de permanecer deitada.

Precisou de ajuda de uma enfermeira para caminhar até o banheiro. Batimentos cardíacos subiram para 89 por minuto, quando seu normal é 65-70, mas achou que era muito mais. “Aí eu caí, uma sensação no estômago, caindo no escuro, como num filme do Tim Burton.”

Era a segunda etapa, comumente descrita como inundação de pensamentos. “Eu chamaria de loucura, loucura, loucura”, conta Giselle. As primeiras imagens a passar na tela dos olhos fechados foi do marido, depois irmã, mãe e, apesar de poucas imagens da infância relatadas por outros psiconautas, uma senhora negra centenária de quando era criança, dona Alaíde.

“Pessoas para quem tenho de pedir perdão”, diz. “Chorei muito, muito. Estava sofrendo de olhos fechados. Experiências premonitórias muito doloridas.” Mas Giselle se sentia no comando da própria viagem, que lhe rendeu lampejos felizes: “Tive a sorte de ter uma mãe que gargalha”.

A bebida não apareceu em primeiro plano. Como diz Gomes, que defendeu em maio uma tese de doutorado na Unicamp sobre 12 pacientes tratados com ibogaína, ela não traz o que a pessoa quer, mas sim o que a pessoa precisa.

Giselle entrou na terceira etapa, de reflexão, que se estendeu por pelo menos 72 horas, com duas convicções. Uma: “Sou uma pessoa muito boa, apesar de ter magoado muita gente. Antes era muito crítica, achava ruim tudo que fazia”. Outra: “O que passou, passou; não vou conseguir voltar no tempo”.

Ela não encontra palavras para descrever o pico do efeito. “É inefável, não consigo dizer. Surreal. Pesado. Difícil”, afirma. “Espero nunca mais fazer isso de novo. É foda, foda, foda. Se não estiver muito preparada, é de endoidecer. Já saltei de paraquedas, e é mais difícil, é se jogar no desconhecido.”

Dois meses e meio depois da sessão, o blog faz novo contato com Giselle. Como está? “Sigo firme e forte nos propósitos que tinha ao tomar a ibogaína.” E a bebida? “Não voltei a beber e quase nunca penso nisso. Já o cigarro é mais traiçoeiro. Não tem um dia desde então em que não pense em fumar. Sonho que estou fumando.”

Um de seus receios, agora, antecipa o dia em que a Covid passar –se passar: “Quanto ao álcool, tenho medo de que a retomada da vida social, algo que ainda está em suspenso por causa da pandemia, torne a decisão de parar mais difícil. De batismo a velório, temos rituais que envolvem a bebida alcoólica”.

Um dia desses Giselle abriu um vinho branco para fazer risoto. A garrafa segue aberta na geladeira.“Não chego nem a olhar.” O porém: “Tem essa coisa de tira a droga, no meu caso álcool, e resolve o problema. Não, né? O problema só muda de lugar.”

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Estudo testa cogumelos ‘mágicos’ contra desespero na linha de frente da Covid https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/estudo-testa-cogumelos-magicos-contra-desespero-na-linha-de-frente-da-covid/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/estudo-testa-cogumelos-magicos-contra-desespero-na-linha-de-frente-da-covid/#respond Mon, 14 Jun 2021 00:10:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/PedroLadeiraFolhapress-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=518  

Parece impossível, nesta altura da pandemia, que o flagelo da Covid não resulte em danos sérios para a saúde mental. Luto, polarização, isolamento, perda de renda e de perspectivas, sequelas da infecção, proliferação de falsidades, aumento da desigualdade, regressão política –parece uma conspiração contra o equilíbrio emocional e a favor do desespero.

Nem tudo caminha para o fundo do poço, entretanto. Há um renascimento psicodélico em curso, e pesquisadores já se movimentam para buscar na revalorização dessas drogas um lenitivo para as primeiras vítimas da invasão dos coronavírus, os profissionais que atuam na linha de frente para salvar vidas.

Os sinais de deterioração na esfera psíquica estão à vista de todos. Nos Estados Unidos, por exemplo, em maio de 2020 –meros três meses após a chegada da Covid– ocorreram 42% mais mortes por overdose de opioides do que no mesmo mês do ano anterior. Teme-se que haja ainda uma alta de suicídios.

Uma revisão sistemática de 29 estudos sobre estado psicológico de profissionais de saúde atuando contra Covid concluiu que um quarto do pessoal nas enfermarias e UTIs sofre com depressão (24,3%) ou ansiedade (25,8%).

Noutro levantamento com 21 mil trabalhadores em 42 estabelecimentos do setor nos EUA, 61% relataram medo permanente de infectar-se e transmitir o vírus Sars-CoV-2, 43% se queixaram de sobrecarga de trabalho e 38% admitiram ansiedade ou depressão. Mais afetadas são as mulheres latinas ou negras.

Com a proliferação de bons resultados preliminares em testes de psilocibina (composto psicoativo dos chamados “cogumelos mágicos” do gênero Psilocybe) contra depressão, a Universidade de Washington e a empresa Cybin se uniram para lançar um ensaio clínico precisamente para sondar a possibilidade de que esse psicodélico clássico venha a aliviar o sofrimento de enfermeiras(os), assistentes e médicas(os) que trabalham diretamente com pacientes de Covid.

O teste clínico controlado duplo-cego será coordenado por Anthony Black em Seattle, noticiou o site da Forbes, uma cidade gravemente atingida pela pandemia. Como de hábito nesses estudos com psicodélicos para transtornos mentais, não será investigada só a droga, mas seu emprego como facilitadora de processos psicoterapêuticos, envolvendo várias sessões antes e depois da ingestão da droga.

O ensaio de Seattle se somará a outros 70 testes clínicos com psicodélicos identificados por pesquisadores do Canadá. A maioria tem por objeto MDMA (46%) –droga mais perto de ser aprovada para uso corrente, notadamente para tratar estresse pós-traumático– e psilocibina (41%), neste caso em geral contra depressão e ansiedade.

Só 21 desses estudos “renascentistas” tiveram resultados publicados, o que equivale a dizer que nada menos que meia centena de ensaios registrados estão em andamento ou para começar. Entre eles há dois testes clínicos em preparação no Brasil, na USP, com o psicodélico ibogaína para tratamento de dependência química (crack/cocaína e álcool).

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Hunter Biden usou veneno de sapo e ibogaína contra dependência de crack https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/#respond Thu, 27 May 2021 21:35:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/HunterBidenTomBrennerReuters-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=490 Não li a autobiografia de Hunter Biden, filho de Joe Biden, intitulada “Beautiful Things” (coisas bonitas); satisfiz-me com a descrição de Lúcia Guimarães na Folha. Aí topei com a notícia resumida no título acima e vi que precisaria escrever sobre ela (a notícia, não a autobiografia).

Não era desconhecido que Hunter atravessou 51 anos de vida com problemas de álcool e cocaína. No livro, ele aprofunda a questão para revelar que, na busca para interromper a dependência, recorreu a terapias psicodélicas, como narra David Carpenter no site Lucid News (em inglês).

Atente o leitor para o significado disso: o filho do presidente dos Estados Unidos e pivô do escândalo que Donald Trump tentou armar em torno do oponente era não só usuário de drogas como recorreu a duas outras substâncias proscritas em seu país, 5-MeO-DMT e ibogaína, para tentar livrar-se do abuso que ameaçava destruir sua vida.

Que Hunter se sinta à vontade para admitir isso por escrito é um sinal claro de que os psicodélicos deixaram de ser tabu. Se o fez no best seller, é porque a neurociência e outro livro muito vendido, “Como Mudar sua Mente”, de Michael Pollan, tinham aberto o caminho para tornar público a renascimento psicodélico.

Caso tivesse sido detido nos EUA com uma das substâncias, Hunter poderia ser condenado a 5 ou 10 anos de prisão. Mas ele não correu tal risco por ter procurado tratamento numa clínica do México, onde a droga 5-MeO-DMT não é regulamentada.

A primeira terapia foi com ibogaína, composto obtido da casca da raiz de uma planta africana, a Tabernanthe iboga. Sob o efeito onírico da droga, que pode durar várias horas, Hunter viu sua vida passar como se fosse uma apresentação de slides.

Depois, como parte do processo de cura que lhe propiciou mais de um ano de abstinência, o filho do presidente fumou 5-MeO-DMT, obtida da secreção das glândulas do sapo-do-deserto-de-sonora (Bufo alvarius, ou Incilius alvarius). A viagem dura 10 ou 15 minutos, mas já foi descrita por Pollan como decolar atado ao lado de fora de um foguete.

Sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius ou Incilius alvarius), do qual se obtém o psicodélico 5-MeO-DMT (Holger Krisp/Creative Commons)

“Sei que soa maluco”, escreve Hunter na autobiografia. “No entanto, o que quer que [a droga] tenha feito ou não, a experiência destravou sentimentos e feridas que eu tinha enterrado fundo por tempo demais. Serviu como um bálsamo.”

“Foi uma experiência profunda. [O veneno do sapo] me conectou, de modo vívido e renovado, a todas as pessoas em minha vida, vivas ou mortas. Senti como se estivesse vendo toda a existência de uma vez –e como algo único.”

Não terá sido a primeira vez em que se alcança sobriedade após uma vivência transformadora que muitos descrevem como mística. A sensação de participar da unidade do cosmo é elemento recorrente em relatos de viagens psicodélicas intensas, também chamada de dissolução do ego por quem prefere evitar os subtons espiritualistas.

O elo do misticismo psicodélico com a superação da dependência química remonta às origens da própria organização Alcoólicos Anônimos, como anota Carpenter. O fundador da AA Bill Wilson chegou a experimentar LSD, em 1956, e a recomendá-lo para frequentadores por seu poder de desencadear transformações espirituais favorecedoras da abstinência.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

A informação se encontra numa carta que Bill W. remeteu, em 1961, a ninguém menos que o psicólogo suíço Carl Jung. É o que conta Don Lattin (autor do ótimo livro “The Harvard Psychedelic Club”) em outra matéria de Lucid News: “Alguns de meus amigos da AA e eu tomamos o material [LSD] frequentemente e com muito proveito”, escreveu Wilson a Jung. Relatou que a droga deflagrava “grande alargamento e aprofundamento e elevação da consciência”.

O LSD teve farta distribuição como medicamento pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960, sob o nome Delysid. O ácido lisérgico foi usado contra alcoolismo e como apoio para psicoterapia, inclusive no Brasil.

Só acabou proibido nos EUA, e em seguida no mundo, depois de cair nas graças dos hippies e contestadores reunidos no vagalhão da contracultura. O renascimento dos psicodélicos para a ciência e a psiquiatria demorou quatro décadas para acontecer, e a confissão de Hunter Biden oferece indício eloquente de que parece ter voltado para ficar.

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USP testa psicodélico ibogaína contra dependência de crack e álcool https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/usp-testa-psicodelico-ibogaina-contra-dependencia-de-crack-e-alcool/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/usp-testa-psicodelico-ibogaina-contra-dependencia-de-crack-e-alcool/#respond Thu, 29 Apr 2021 21:00:14 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/CRACKZANONEFRAISSAT2021-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=433 A posição de destaque do Brasil em ciência psicodélica fica mais evidente com estudos da USP para combater dependência de crack/cocaína e álcool: há somente quatro ensaios clínicos duplo-cego registrados no mundo para novos testes da droga ibogaína, e dois deles acontecem aqui.

O composto originário da planta africana Tabernanthe iboga, é usado desde os anos 1960 para tratar crises de abstinência e interromper o uso compulsivo. Antes, era empregado em rituais da etnia bwiti, no Gabão e Camarões, e vendido como o antidepressivo Lambaréné na França, de 1939 a 1970, mas terminou abandonado quando se verificou o risco de arritmias cardíacas.

Tradicionalmente, a substância era obtida da raiz do vegetal. Hoje se utiliza a versão sintética purificada, cloridrato de ibogaína, nos estudos experimentais, em clínicas e grupos alternativos de tratamento.

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Tabernanthe iboga, planta africana da qual se extrai a ibogaína (Marco Schmidt/Creative Commons)

A ibogaína é proibida em vários países. No Brasil ela não aparece na lista de substâncias controladas nem está regulamentada para uso terapêutico. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só permite importação individual, com indicação médica, embora não haja estudos conclusivos sobre sua eficácia.

Duas unidades da USP decidiram enfrentar o desafio para suprir essa deficiência na literatura científica, diante do acúmulo de indícios de sucesso no tratamento de dependência. Duas clínicas no interior paulista, por exemplo, reúnem casuística contendo milhares de pacientes e alegam taxas de sucesso da ordem de 60-70%.

André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, lidera o estudo mais ambicioso. Em sua mira estão crack e cocaína, que levam dezenas de pessoas todos os meses a buscar socorro no ambulatório do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA).

“O dia a dia de quem cuida de [dependentes de] crack e coca é muito infeliz”, diz Negrão, referindo-se às altas taxas de reincidência. “Resolvi fazer isso [pesquisa com psicodélicos] o resto da minha vida”, diz o psiquiatra de São Paulo, frustrado com a ausência de medicamentos comprovadamente eficazes para pacientes que desejam reduzir ou abandonar o consumo.

O teste de fase 2b, para verificar eficácia e segurança, envolverá 80 dependentes de crack ou cocaína (40 homens e 40 mulheres). Eles serão internados por dez dias, os sete primeiros para assegurar abstinência, o que será confirmado por exames toxicológicos.

Todos passarão por oito sessões de psicoterapia, quatro de preparação e quatro de integração (discussão dos conteúdos psíquicos aflorados durante a experiência com ibogaína), com participação de familiares. Esse é o protocolo usual de pesquisa com psicodélicos para transtornos psíquicos como depressão e estresse pós-traumático, os mais adiantados.

Como os psicodélicos clássicos LSD, psilocibina (“cogumelos mágicos”) e DMT da ayahuasca, a ibogaína atua sobre receptores do neurotransmissor serotonina, importante na regulação de humor, libido e outras funções. A viagem pode durar muito, até mais de 24 horas, e lança a pessoa num estado de sonho lúcido.

Alguns pesquisadores preferem qualificar a substância como oniroide, onirofrênica ou onirogênica. São frequentes relatos de quem revive sob seu efeito situações difíceis, como overdoses, e sensações de morte e renascimento. Também se manifesta intensa empatia com sofrimento alheio e o próprio, não raro acompanhada de remorso por perceber-se como fonte de ambos.

A descoberta de que a ibogaína também suprime efeitos dolorosos da abstinência se atribui a Howard Lotsof. Em 1962, o americano dependente de heroína experimentou a droga africana com a promessa de dois dias de viagem; quando voltou do transe, surpreendeu-se sem os sintomas físicos da síndrome de abstinência.

Lotsof tornou-se a partir daí um apóstolo da ibogaína. Em 1994, o gastroenterologista Bruno Rasmussen Chaves almoçou com ele no refeitório da Universidade de Miami, durante um estágio, e tomou conhecimento da droga, que passou a empregar para tratar dependentes três anos depois, primeiro em Santa Cruz do Rio Pardo e depois em Ourinhos, ambas cidades paulistas.

O médico interna pacientes na Santa Casa, onde os monitora durante toda a viagem, para intervenção imediata em caso de arritmia cardíaca. Nunca teve um caso fatal, informa. Centenas de tratamentos depois, Chaves é hoje um dos colaboradores de Negrão no teste clínico.

“A administração do cloridrato de ibogaína no Brasil tem sido feita com base em protocolos inconsistentes quanto às doses terapêuticas, ao grau de pureza da ibogaína administrada e à adequação do suporte médico”, adverte Negrão a respeito de centros de tratamento alternativo.

“Há relatos na literatura de mortes associadas com o uso concomitante de ibogaína e outras substâncias psicoativas, além de um possível risco intrínseco da substância sobre a condução cardíaca.”

O pesquisador Geoffrey Noller, da Nova Zelândia, encontrou relatos de 19 mortes ocorridas entre 1990 e 2008 no prazo de três dias após ingestão de ibogaína. A maioria vitimou pessoas com problemas cardíacos prévios ou em decorrência de interação farmacológica com outras drogas cujo abuso não fora interrompido.

Em 2016 um grupo neozelandês liderado por Paul Glue publicou ensaio com 27 voluntários dependentes de opioides tratados com um composto aparentado, noribogaína, metabólito ativo no corpo de quem ingere ibogaína. O estudo teve a colaboração das empresas americanas DemeRx e iCardiac.

A comparação com o grupo de controle na USP, metade das mulheres e dos homens a serem recrutados que não receberá ibogaína, só psicoterapia, permitirá afirmar com segurança estatística se o psicodélico de fato surte efeito sobre a dependência. Afinal, melhoras espontâneas acontecem, oriundas de expectativa (efeito placebo) ou da determinação da pessoa para abandonar a droga.

Os pacientes e seus familiares serão acompanhados por três meses no ambulatório. Depois disso, por um ano, serão monitorados remotamente.

O estudo estava pronto para começar, com aprovação de comitês de ética, em maio do ano passado. A pandemia de Covid-19 inviabilizou o uso dos leitos oferecidos pelo Instituto de Psiquiatria e restringiu o fornecimento de ibogaína proveniente da Índia. Negrão afirma que o recrutamento será rápido assim que as vagas ficarem disponíveis novamente e a importação for retomada.

Garrafas de cerveja em depósito para reciclagem (Foto: Rogério Assis/Folhapress)

A eclosão da pandemia também atrapalhou o início do outro ensaio clínico da USP, aprovado e registrado ainda em 2017,  neste caso pelo grupo de neurociência e ciências do comportamento liderado por Jaime Hallak na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. O investigador principal do experimento é Rafael Guimarães dos Santos.

O estudo de Ribeirão não tem relação com o de São Paulo. Testará a tolerabilidade da ibogaína, com um grupo de apenas 12 pessoas, para outro tipo de dependência, alcoolismo. Segundo Santos, o álcool foi escolhido por causa da alta prevalência do abuso dessa substância legal no Brasil, que afeta cerca de 10% da população.

O desenho do experimento é bem diferente. Voluntários ficarão internados por 20 dias, e os primeiros três pacientes receberão três doses sucessivas e crescentes de ibogaína; não havendo efeitos adversos, os outros nove receberão a droga ou placebo, por sorteio.

O consumo de álcool pelos participantes será então acompanhado a cada semana no primeiro mês. Depois disso, nos 3º, 6º e 12º meses.

O primeiro estudo controlado do mundo com ibogaína estava planejado para acontecer na Espanha, onde Santos fez seu doutorado de 2006 a 2012 com o conhecido estudioso de psicodélicos Jordi Riba (morto em agosto de 2020). Outra morte, de Manel Barbanoj, que conduziria o ensaio com José Carlos Bouso, adiou os planos.

Assíduos colaboradores de Bouso, Hallak e Santos combinaram com ele efetuar o teste clínico no Brasil. Em paralelo, os brasileiros colaborarão com o pesquisador espanhol na realização de ensaio parecido, mas no tratamento da dependência de metadona, droga utilizada para redução de danos com dependentes do opioide heroína.

O quarto estudo clínico com ibogaína em preparação no mundo ocorrerá no Reino Unido. As empresas DemeRx e Atai Life Sciences tiveram sinal verde da agência reguladora britânica MHRA para testar a droga no tratamento justamente de dependentes de opioides.

O plano dos empresários britânicos é recrutar 110 voluntários, no total: primeiro 30 saudáveis (usuários recreativos de drogas), para estabelecer a segurança do composto, e 80 adictos numa segunda etapa, já com vistas à desintoxicação.

O fato de metade dos testes clínicos com ibogaína se realizarem no Brasil não é de todo surpreendente. O país tem tradição de pesquisa com psicodélicos, em especial DMT e outras substâncias da ayahuasca, facilitada pela legalização de seu uso em religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV).

Na voga atual de trabalhos científicos após meio século da fracassada Guerra às Drogas liderada pelos EUA (1971), o chamado renascimento psicodélico, brasileiros têm se destacado. Num levantamento de artigos maior impacto (número de citações), o Brasil ficou em terceiro lugar, após EUA e Reino Unido.

O composto mais estudado fora daqui é a psilocibina dos cogumelos Psilocybe, além de LSD e MDMA, para uma série de condições, como depressão (fase 2) e estresse pós-traumático (fase3). A ayahuasca motivou o primeiro teste clínico controlado por placebo de um psicodélico para depressão após o renascimento, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicado em 2018.

A ibogaína tem sido menos pesquisada, apesar do volume de relatos observacionais de sucesso no tratamento de dependência, por causa dos riscos cardíacos e das mortes, ainda que raras. Mas seu uso com acompanhamento médico, como em Ourinhos, tem demonstrado segurança suficiente para uma instituição como a USP se lançar na pesquisa.

A logística, entretanto, encarece o ensaio clínico, pela necessidade de internação e garantia de que os voluntários não tenham no organismo drogas que possam interagir com a ibogaína e afetar o coração. Só com os leitos para o estudo com usuários de crack Negrão orçou despesa de R$ 336 mil, já autorizada pelo Instituto de Psiquiatria (e adiada pela pandemia).

Um dos fatores para o interesse brasileiro pela ibogaína, cita Negrão, esteve em estudo retrospectivo (não controlado) publicado por Bruno Chaves e Eduardo Schenberg em 2014. “Houve um boom de clínicas fazendo iboga no Brasil”, diz.

O artigo descreve levantamento com 75 dependentes de álcool, maconha, cocaína e crack. Cinco meses após tratamento com ibogaína, 61% ainda estavam em abstinência.

Para Rafael dos Santos, da USP em Ribeirão Preto, o interesse do grupo de Jaime Hallak está em expandir as linhas de pesquisa. “A experiência acumulada com estudos de ayahuasca nos últimos quase 20 anos, aqui, nos trouxe o conhecimento para desenvolver pesquisas com esse tipo de substâncias que modificam profundamente a consciência.”

Santos enxerga como vantagem comparativa do Brasil a experiência com ayahuasca e ibogaína, que enfrentam mais restrições legais noutros países. “Por outro lado, temos mais dificuldades para realizar estudos com psilocibina e LSD.”

Os líderes dos testes clínicos reconhecem preconceito na academia com ciência psicodélica, mas não a ponto de dificultar a aprovação dos ensaios por comitês de ética. A liderança nacional nessa área efervescente da pesquisa mundial, entretanto, pode ainda sofrer com o clima político e ideológico no país polarizado.

A ibogaína entrou no radar do governo Jair Bolsonaro. Em reação ao emprego de ibogaína em comunidades terapêuticas para dependentes, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, baixou em agosto a nota técnica nº 64 ameaçando-as com descredenciamento e suspensão de contratos de prestação de serviços com o governo federal.

“Felizmente, as pesquisas com alucinógenos psicodélicos são vistas como pesquisas, sem tanto teor ideológico. Isso se deve em grande parte à seriedade dos grupos de pesquisa”, afirma Rafael dos Santos. “Somente com seriedade e rigor vamos avançar nessa área.”

Os dois estudos da USP serão apresentados ao público internacional na próxima edição do Maps Bulletin (no prelo), publicação quadrimestral da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos dos EUA. Trata-se da ONG responsável pelo teste clínico mais adiantado (fase 3) do mundo com terapia psicodélica para transtorno psiquiátrico (no caso, MDMA e estresse pós-traumático).

Curso “História das drogas psicodélicas para uso medicinal e sua demonização”, no site Bora Saber.

 

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‘Ibogaína’ não alucinógena mantém potencial contra dependência química https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/#respond Mon, 14 Dec 2020 14:39:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=169 Pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram a façanha de criar uma versão do psicodélico ibogaína que não causa alucinações, aparentemente, nem importa risco para o coração. Se conseguirem comprovar eficácia em seres humanos, seria uma grande promessa para o tratamento de dependência química.

Ibogaína é uma substância psicoativa derivada do arbusto Tabernanthe iboga, usado ritualmente pela etnia Bwiti, em países africanos como o Gabão e Camarões.  Ela lança a pessoa num estado onírico que pode durar um dia inteiro, ou mais.

Nos anos 1960, descobriu-se nos EUA sua capacidade de diminuir sintomas agudos da crise de abstinência em dependentes de heroína e de conter a urgência imperiosa de consumir a droga (“fissura”). Apesar de proibida, alguns países –como o Brasil– admitem o uso excepcional da ibogaína como tratamento para dependência química, com taxas de sucesso que chegam a superar 60%.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

O médico Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), administrou o composto a centenas de pacientes, assim como o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínia (SP). É mais que recomendável contar com acompanhamento médico durante a viagem da ibogaína, porque a droga afeta o ritmo do coração e pode ser fatal, cuidado nem sempre disponível em clínicas clandestinas.

Na literatura médica há registro de 22 mortes após uso da substância entre 1990 e 2015. Uma revisão de 19 casos de óbito após ibogaína indicou em 2012 que 12 dos 14 deles para os quais havia prontuários médicos detalhados envolviam distúrbios cardíacos prévios ou consumo concomitante de outras drogas, como cocaína.

O laboratório de David Olson na Universidade da Califórnia descreveu na revista Nature da semana passada como foi capaz de modificar a molécula de ibogaína e chegar à síntese de um análogo da substância que os autores afirmam não ser alucinógeno. Chamaram o composto de tabernanthólogo (TBG) e sustentam que a variante não altera perigosamente batimentos cardíacos, tampouco.

“É um trabalho revolucionário”, diz o neurocientista Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa efeitos terapêuticos da ayahuasca. “Abre a possibilidade única de investigar melhor quanto do efeito terapêutico nasce da bioquímica e quanto da experiência subjetiva em si [referindo-se ao estado onírico].”

A equipe de Olson, no entanto, testou o novo composto apenas com roedores. Outras substâncias psicodélicas que também atuam sobre o receptor 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, como LSD e psilocibina, provocam nos bichos um movimento característico da cabeça aceito por pesquisadores como correlato de alucinações.

Os experimentos mostraram que o TBG promove neuroplasticidade, ou seja, a formação de novas conexões entre neurônios que se acredita estar na origem dos benefícios terapêuticos de psicodélicos. Além disso, testes padronizados provaram que o TBG também reduz nos animais o consumo compulsivo de álcool e heroína, além de produzir efeitos análogos a antidepressivos.

Crescimento de espículas em dendritos de neurônios (setas azuis) indica neuroplasticidade após ibogaína (esq.) e TBG (dir.) (Reprodução da Nature)

O artigo indica ainda que obter TBG é mais simples que produzir ibogaína, pois a síntese química envolve apenas um passo, contra 9 a 16 para o composto original, e rende mais. Em resumo, projetaram uma droga que parece ter a mesma capacidade da ibogaína de tratar dependência química, mas desprovida do que chamam de “inaceitável perfil de segurança” –só falta comprovar isso em seres humanos.

“Ratos não têm experiências místicas”, brinca Araújo, da UFRN, para indicar que o trabalho de Olson e colegas toca num ponto nevrálgico do renascimento dos psicodélicos como drogas alternativas promissoras para tratar transtornos mentais: pressupõe-se que os conteúdos psíquicos produzidos ou aflorados durante as viagens sejam imprescindíveis para o progresso terapêutico.

Um estudo sobre ibogaína de Thomas Brown, Geoff Noller e Julie Denenberg no periódico Journal of Psychoactive Drugs defende que o efeito onirogênico da droga é decisivo para quebrar a dependência, ou pelo menos tão importante (pelas memórias e traumas que permite aflorar e que ficam disponíveis para elaboração psíquica das raízes da dependência) quanto o efeito farmacológico (neuroplasticidade).

A pergunta que Olson suscita é se, ao supostamente deletar o impacto alucinógeno, a TBG também não arriscaria cortar pela metade o potencial terapêutico antidependência. Restando apenas a modulação bioquímica, centrada no receptor serotoninérgico 5HT2A, o sonho de livrar-se da dependência talvez não se materialize em pessoas.

Araújo conta que, no caso do estudo de seu grupo que mostrou efeito antidepressivo rápido e duradouro da ayahuasca contra depressão, ambos os ingredientes –farmacologia e vivência subjetiva– parecem contribuir para o resultado terapêutico. Além disso, o efeito psicodélico não se resume ao alvo 5HT2A, e substâncias psicoativas atuam sobre vários outros receptores e sistemas, cada uma com um perfil peculiar.

O neurocientista brasileiro aponta, para reforçar seu raciocínio sobre a complexidade dos efeitos, que há mais serotonina espalhada pelo organismo do que no cérebro. No entanto, psicodélicos agem mais sobre a mente do que no restante do corpo.

Nicole Galvão-Coelho, coautora de Araújo na pesquisa sobre depressão, já demonstrou a capacidade da ayahuasca de modular tanto a neuroplasticidade quanto níveis de cortisol (hormônio do estresse) e um efeito anti-inflamatório.

O LSD, por seu lado, tem forte influência sobre a dopamina. Cetamina e escetamina, sobre o glutamato. MDMA, sobre a noradrenalina.

“Efeitos psicodélicos não estão necessariamente associados só com o receptor 5HT2A, é uma simplificação. Existem vários antidepressivos que atuam sobre a serotonina e não provocam experiências visuais”, ressalva Araújo. “Há outras danças por trás dos psicodélicos.”

Argumento parecido apareceu numa série de tuítes do psicólogo Matthew Johnson, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins: “Há um pouco de debate sobre o alvo errado. [Olson] não defende que efeitos subjetivos não possam ser terapêuticos. Provavelmente há múltiplos mecanismos subjacentes à eficácia da terapia psicodélica, e formas de neuroplasticidade podem ser uma delas”.

“Precisamos nos afastar de falsos debates entre experiência/psicologia e biologia, e pensar de maneiras mais nuançadas. A experiência, afinal de contas, tem uma biologia também.”

A antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna na Califórnia, se incomoda com abordagens muito reducionistas da questão: “A ciência procura separar os efeitos e chegar na suposta ‘essência’ da ‘cura’. A busca por uma droga ‘clean’, sem efeitos alucinógenos, deve ser entendida dentro de um cenário maior”, defende.

“Por um lado, uma tentativa moral de eliminar os supostos aspectos alucinógenos da experiência, que são vistos com ‘negativos’ ou ‘errados’. E, por outro, em função de interesses econômicos, isto é, patentear certos achados.”

Labate esteve em 2001 em Camarões para conhecer em profundidade os rituais da iboga. Do ponto de vista das populações tradicionais, de onde essas substâncias provêm, a cura é holística, explica.

“As concepções de enfermidade envolvem não só aspectos físicos, mas a relação dos humanos entre si, e entre humanos e não humanos. A cura advém da comunhão de plantas, que contêm múltiplos alcaloides, e da experiência mística e coletiva.”

 

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Oregon e Washington, DC descriminalizam psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/oregon-e-washington-dc-descriminalizam-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/oregon-e-washington-dc-descriminalizam-psicodelicos/#respond Wed, 04 Nov 2020 10:58:09 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Psilocybe-cubensis-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=71 Ao menos uma coisa já se decidiu nas eleições de terça-feira (3) nos EUA: em dois estados a população poderá contar com substâncias psicodélicas para enfrentar o resultado do pleito para presidente.

Oregon e Washington (DC) descriminalizaram a posse da psilocibina (cogumelos “mágicos”) e outros compostos. No segundo caso, porém, a decisão ainda depende da chancela do Congresso.

Em Oregon foram aprovadas as medidas 109 e 110. Na primeira, os eleitores aprovaram a psilocibina –um psicodélico em teste para tratamento de depressão—para uso como apoio para psicoterapia, em ambientes controlados, como clínicas.

A governadora Kate Brown nomeará agora um comitê para detalhar as condições em que a droga poderá ser ministrada.

A medida 110 é bem mais ampla: despenaliza todas as drogas –cocaína, heroína, crack etc. A posse de qualquer uma delas passa a ser punida apenas com multa de US$ 100, e não com prisão de um ano e até US$ 6.250 de sanção.

O usuário problemático pode, no entanto, livrar-se da multa se aceitar ser encaminhado para tratamento. É semelhante ao modelo de Portugal, que tem por objetivo recuperar o dependente químico no sistema de saúde, e não mais responsabilizá-lo pela via judicial.

No Distrito de Colúmbia (DC), a Iniciativa 81 exclui das prioridades de ação policial o uso individual de drogas extraídas de plantas e fungos, os chamados “enteógenos”, como a psilocibina, a ibogaína (da planta africana Tabernanthe iboga), a mescalina (do cacto peiote) e a dimetiltriptamina (DMT, do arbusto chacrona, usada na ayahuasca).

Legislações semelhantes já haviam sido adotadas em três cidades: Oakland e Santa Cruz, na Califórnia, e Ann Arbor, em Michigan. Em Denver, Colorado, a psilocibina também foi legalizada.

O Congresso americano tem prazo de 30 dias para revisar a medida na capital, pois lhe cabe a prerrogativa de derrubar a nova norma. Em 2014, eleitores de DC aprovaram a Iniciativa 71, que permitia o uso adulto da maconha, mas congressistas ainda impedem o governo local de usar fundos públicos para implementar a medida.

Outros estados americanos também realizaram na terça consultas públicas sobre a maconha. O consumo adulto recreativo foi aprovado nos seguintes lugares: Arizona, Dakota do Sul, Nova Jersey e Montana. E o uso médico, no Mississippi e, de novo, Dakota do Sul.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Antes da eleição, três dezenas de estados já haviam autorizado uma ou as duas modalidades de consumo de cânabis, totalizando uma população de 93 milhões de pessoas. Com os resultados desta eleição, agora 1 em cada 3 americanos podem contar com a erva para se divertir ou cuidar da saúde abalada.

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Psiconautas temem explosão de interesse do mercado por drogas ilícitas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/#respond Sun, 01 Nov 2020 18:19:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/CidadePsicodelicaGordonJo0hnson-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=61  

As drogas psicodélicas –LSD, ecstasy, cogumelos “mágicos”– caíram em desgraça com a voga proibicionista dos anos 1970/80, quando conservadores reagiram em pânico diante da contracultura. Agora são os herdeiros dos hippies a temer, em face da voracidade capitalista que ameaça neutralizar seu apelo libertário.

“Herdeiros dos hippies” pode soar pejorativo para os que se dedicam ao assunto intelectualmente; melhor falar em “psiconautas”. A área de estudos ficou pelo menos duas décadas submersa, mas vive um renascimento com a proliferação de estudos clínicos sobre benefícios para a saúde mental –que já atraem a atenção de investidores.

Quatro psiconautas renascentistas do Brasil participaram de um debate sobre o tema na quinta-feira (29): a antropóloga Bia Labate, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli e os psicólogos Bruno Gomes e Fernando Beserra. Promovida pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd), a discussão ofereceu boa amostra das preocupações que afligem quem não caiu de paraquedas nesse campo.

Bia fala de um ponto de vista privilegiado, desde a Califórnia, onde lidera o Instituto Chacruna, especializado em plantas medicinais como as que entram no chá ayahuasca. Ela disse no encontro virtual que o último ano assistiu a uma explosão em torno dos psicodélicos, nos EUA, na esteira da legalização da maconha medicinal e recreativa em vários estados.

Ela apontou duas vertentes para o que chamou de “verdadeiro Eldorado”. Primeiro, o avanço de testes clínicos com MDMA (ecstasy) para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e com a psilocibina dos cogumelos Psilocybe para depressão. Ambas as substâncias estão em via acelerada para obter autorização da FDA, agência americana de fármacos, o que a antropóloga previu para 2022 ou 2023.

A outra vertente se manifestou na descriminalização da psilocibina em quatro cidades americanas vanguardistas (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor). O movimento se encorpa agora com plebiscitos que vão na mesma direção, na próxima terça-feira (3), em Oregon e Washington DC (além de cinco outros estados que podem somar-se aos 30 em que o uso medicinal ou recreativo da maconha se tornou legal).

Multiplicam-se as conferências virtuais, documentários, manifestações de celebridades, lançamentos de empresas, cursos de capacitação, organizações não governamentais, assinalou Bia.

“Uma espiral sufocante. Os pesquisadores vão também precisar fazer tratamento para ansiedade”, brincou. E emendou, a sério: “É outro mundo, não o dos hippies. O cara que fez fortuna com cânabis medicinal agora vai investir em psilocibina para depressão”.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Em setembro a empresa londrina Compass Pathways, fundada há apenas quatro anos, abriu oferta de capital na bolsa de Nova York e viu seu valor de mercado saltar US$ 544 milhões. Dona de controvertida patente para uma versão sintética cristalizada da psilocibina, COMP360, lidera um dos estudos para seu uso como adjuvante de psicoterapia para depressão.

Tófoli, da Unicamp, concordou com a ideia de uma “invasão do capitalismo predatório”, segundo sua descrição, mas alertou que ainda não há comprovação completa do efeito terapêutico dos psicodélicos. Falta cumprir a etapa científica dos ensaios clínicos de fase 3 e vencer os obstáculos regulatórios para, aí sim, tentar derrubar os preconceitos que ainda sobrevivem na classe médica.

O psiquiatra antecipa que empresários possam ter dificuldade com o componente alterador da consciência dos psicodélicos, fonte do revide reacionário de décadas atrás, e que na sua opinião faz parte do pacote terapêutico. Nos EUA e no Brasil, a atmosfera não ajuda: “É romântico pensar que substâncias proscritas possam curar pessoas neste mundo doente.”

Tome-se o caso da microdosagem, que ganhou fama não como cura, mas capacitação, melhoramento. No Vale do Silício ou em Wall Street, recorre-se a doses subclínicas periódicas de psilocibina ou LSD (ou seja, incapazes de produzir efeito psicodélico) em busca de maior produtividade e criatividade. Fazer dinheiro, não viagens.

O psicólogo Fernando Beserra, um dos fundadores da Associação Psicodélica do Brasil, há cinco anos, reivindicou no debate que se retome a tradição política dessas substâncias, que corre o risco de diluir-se no seu enquadramento médico e comercial. “Será que a microdosagem tem de ser só produtivista, ou há um potencial transformador, [na linha] da contracultura?”

Beserra se preocupa com o futuro acesso a essas drogas, se e quando ficar provado seu sucesso clínico, diante das patentes e da investida empresarial. “Como vai chegar no Terceiro Mundo, no Brasil, ainda mais sob Bolsonaro? O debate político é para hoje, para agora, para poder sonhar um dia com outros cenários, outros caminhos.”

Nessa altura da discussão virtual, transcorrida quase uma hora, havia 84 pessoas assistindo. Uma delas escreveu na área de comentários: #PsicodélicosNoSUS.

O psicólogo Bruno Gomes, que mediava o debate, falou de outra explosão, a das culturas da ayahuasca no Brasil, que não se encontra mais restrita às religiões organizadas como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ocorreu uma popularização, uma capilarização, disse ele, com vários grupos a se multiplicar, religiosos ou não.

Mencionou também uma subcultura da ibogaína, composto psicodélico extraído de uma planta africana (Tabernanthe iboga). Apesar do risco de disfunção cardíaca, tem sido usada como terapia alternativa para dependência química. “Um mercado está se formando.”

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Nem sob efeito de psicodélicos é fácil imaginar que um dia eles cheguem ao SUS, num momento em que até seu exemplar Programa Nacional de Imunização enfrenta a ameaça da polarização ideológica –bem no meio de uma pandemia, e por causa de vacinas que ainda nem existem. Mas os cisnes negros existem, como prova o que acontece com a MDMA (base do ecstasy) e o TEPT nos Estados Unidos.

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês) está perto de conquistar a regulamentação do emprego da MDMA em psicoterapia para estresse pós-traumático, e conta para isso com a simpatia de militares e policiais (veja abaixo vídeo com depoimento do veterano Nick Blackston sobre sua recuperação, em inglês). Eles formam provavelmente o maior contingente dos 11,6 milhões de americanos que padecem desse transtorno.

A Maps publicou em 14 de outubro na revista científica PLoS One artigo animador sobre a economia que essa terapia para veteranos poderia trazer, na comparação com as opções terapêuticas disponíveis hoje (ineficazes para cerca de metade dos portadores). Só com hospitalizações por TEPT os EUA despendem a cada ano estimados US$ 4,4 bilhões.

O tratamento de um americano com o transtorno pode chegar a US$ 20 mil anuais. Recorrendo à psicoterapia com MDMA, gastam-se US$ 7.500 (90% disso para remunerar os terapeutas).

Tomando por base a melhora obtida por 74 participantes em seis estudos clínicos controlados randomizados de fase 2 realizados nos últimos anos, a Maps calculou que cada grupo de mil pacientes assim tratados permitiria a economia de US$ 103 milhões –em valores de hoje, já descontados– ao longo de 30 anos.

Essa linguagem os capitalistas dos planos de saúde entenderiam, assim como, talvez, os bons administradores remanescentes no Sistema Único de Saúde. E não faltam portadores de estresse pós-traumático no Brasil, com suas taxas vergonhosas de homicídios e letalidade policial, os cadáveres da fracassada guerra às drogas; se for a mesma proporção dos EUA, 3,5% da população, seriam mais de 7 milhões de brasileiros.

Louco, mesmo, talvez se mostre NÃO pensar em #PsicodélicosNoSUS.

 

 

 

 

 

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Além de Biden ou Trump, estados dos EUA votam psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/10/25/alem-de-biden-ou-trump-estados-dos-eua-votam-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/10/25/alem-de-biden-ou-trump-estados-dos-eua-votam-psicodelicos/#respond Sun, 25 Oct 2020 14:07:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/TabernantheibogaMarcoSchmidtCreativeCommons-255x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=44  

Oregon e Washington (DC) consultam eleitores sobre descriminalização de drogas como psilocibina e ibogaína

 

Em menos de dez dias eleitores americanos decidirão se seguem frente ou continuam presos ao passado. Não se trata só de escolher entre Joe Biden e Donald Trump, mas igualmente se vão descriminalizar substâncias psicodélicas (2 estados) e legalizar o uso medicinal ou recreativo de maconha (5 outros).

Olhando do Brasil de Jair Bolsonaro e Osmar Terra, parece incrível que 33 estados dos EUA já tenham legalizado a cânabis medicinal, dos quais 11 permitem também o consumo para recreação. Ou, ainda, que 4 cidades (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor) tenham descriminalizado, desde 2019, o composto psicoativo psilocibina de cogumelos do gênero Psilocybe.

Na legislação federal americana, assim como na brasileira e em tratados internacionais, as substâncias psicodélicas permanecem classificadas como drogas ilícitas. O impulso para a descriminalização local e regional vem de pesquisas científicas que têm mostrado resultados preliminares positivos no tratamento de distúrbios mentais como estresse pós-traumático e depressão.

No Distrito de Colúmbia (DC), sede da capital, os eleitores dirão sim ou não à radical Iniciativa 81. A exemplo do que se decidiu em Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor, a proposta pode tirar do rol de crimes a posse de fungos e plantas com compostos  como psilocibina, ibogaína (extraída do arbusto africano Tabernanthe iboga), mescalina (dos cactos peiote), dimetiltriptamina (DMT, presente na chacrona, planta usada no chá ayahuasca).

Proposta de 2020 “Política para Plantas e Fungos Enteogênicos”, a Iniciativa 81 (Reprodução)

Na apresentação da iniciativa, tais produtos são coletivamente descritos como “enteógenos”, neologismo criado com raízes gregas para “deus” e “interior”, etimologia similar à de “entusiasmo”. Refere-se à capacidade dessas substâncias de induzir alterações da consciência às quais recorrem xamãs e algumas religiões.

Em Oregon, duas medidas serão submetidas a voto em 3 de novembro, as de números 209 e 210. A 210 despenaliza a posse de drogas, que passa a ser punida com multa de US$ 100, e não mais com prisão máxima de um ano e até US$ 6.250 de sanção. Todas as drogas, cabe ressaltar, incluindo cocaína, heroína, crack, psicodélicos etc.

Não se trata de facilitar o consumo e o abuso dessas substâncias, mas de reorientar usuários problemáticos para o sistema de saúde (quem aceita tratamento pode livrar-se da multa). A Medida 210 segue o modelo alternativo à fracassada guerra contra drogas instituído com bons resultados em Portugal, como mostrou reportagem da série Estado Alterado na Folha.

A Medida 209 se concentra na psilocibina, reconhecida pela agência americana FDA como terapia de vanguarda (“breakthrough therapy”; esse status regulatório abre uma via mais rápida para testes clínicos por universidades e empresas). Ainda experimental, ela tem potencial para tratamento de depressão.

Se aprovada a medida em Oregon, o governador nomeará uma comissão de especialistas para normatizar como a droga poderá ser usada legalmente como adjuvante para psicoterapia em ambientes controlados.

Além dos psicodélicos em Oregon e DC, outros cinco estados decidirão sobre o uso medicinal e/ou recreativo de maconha: Arizona (Proposta 207), Dakota do Sul (Medida 26), Mississippi (Iniciativa 65), Montana (I-190), Nova Jersey (Questão Pública 1).

Página dos defensores da Iniciativa 65 no Mississippi, consulta sobre maconha medicinal (Reprodução)

 

Se alguém ainda tiver dúvida quanto a descriminalização e legalização –não só da maconha, mas de muitas drogas– se tornarem uma tendência respeitável de política pública, atente para o debate que se realizará quarta-feira (28) na Escola de Direito de Harvard, organizado pelo Centro Petrie-Flom para Políticas Legais de Saúde, Biotecnologia e Bioética.

Se preferir ouvir argumentos em português em favor da maconha, e também dar boas risadas, assista ao Greg News sobre maconha.

 

 

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