Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Estudo na Unicamp indica janela psicoterapêutica aberta pelo LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/#respond Mon, 01 Nov 2021 21:50:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/LuciaKochInhotim-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=727 Nova pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas pôs mais uma pedra no edifício em reconstrução da ciência psicodélica: se o LSD for usado como adjuvante de psicoterapia, o momento propício para a chamada terapia psicolítica provavelmente recairia quatro horas após a ingestão da substância.

“Baixa Dose de LSD e Corrente do Pensamento: Descontinuidade Aumentada da Mente, Pensamento Profundo e Fluxo Abstrato”, diz o título do segundo artigo publicado pelo grupo de Luís Fernando Tófoli. O trabalho saiu no periódico Psychopharmacology, tendo como primeira autora a alemã Isabel Wießner, orientanda de doutorado de Tófoli, e colaboradores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

O primeiro estudo dos autores havia sido publicado em julho, como noticiou o blog. Ambos os trabalhos tomam por base observações com 24 voluntários saudáveis que participaram de duas sessões experimentais.

Num dos encontros, a pessoa tomava 50 microgramas de LSD, e, no outro, um placebo, mas sem saber em qual deles tomava o quê. Wießner e o psiquiatra Marcelo Falchi, presentes na sala com os participantes por cerca de dez horas, tampouco sabiam.

Durante esse tempo, os voluntários respondiam a perguntas verbais, marcavam em escalas a intensidade das alterações mentais experimentadas e realizam testes num computador. Neste segundo artigo, a equipe deu destaque para alterações no fluxo de pensamento ao longo do tempo, algo ainda pouco conhecido no efeito lisérgico.

É bom mencionar que o LSD só foi proibido para usos não científicos na década de 1970. Antes disso, distribuído pelo laboratório suíço Sandoz com a marca Delysid, teve largo emprego em consultórios e estudos para tratar transtornos mentais e dependência de álcool, mas não com as metodologias e os controles rigorosos hoje usuais em pesquisa biomédica. Com a proibição e a demonização, o psicodélico quase desapareceu da pesquisa científica.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

No desenho da investigação liderada pela Unicamp, o controle residiu na comparação entre os efeitos medidos nos dias de ácido com os do dia de placebo. É o método conhecido como “cross-over”.

Num dos testes, o voluntário tinha de encadear a cada duas horas uma lista de palavras que lhe viessem à cabeça sob estímulo de um vocábulo-semente de três tipos (animais, objetos e palavras abstratas). Posteriormente, o time usou medidas de distância semântica para caracterizar o fluxo de pensamento –por exemplo, a separação entre “gado” e “vaca” é menor do que entre “gado” e “jornada”.

Para mensurar a divagação mental (“mind wandering”), empregou-se o Questionário Amsterdã de Estado de Repouso (ARSQ, na sigla em inglês). São 55 questões, por exemplo sobre descontinuidade da mente, planejamento, sonolência, conforto, percepção do corpo, preocupação com saúde e pensamento visual ou verbal que o participante tinha de responder no computador logo após passar cinco minutos de olhos fechados. Cada item solicitava que a pessoa indicasse seu grau de concordância/discordância numa escala de cinco pontos.

Resumindo muito a profusão de dados, o grupo constatou que o LSD, comparado com placebo,     acentuou aspectos caóticos, significativos e sensoriais do pensamento, como seria de esperar. Quanto ao fluxo da mente, curiosamente, as distâncias semânticas foram maiores quando as sementes eram palavras abstratas, mais que animais ou objetos.

Observaram-se também diferenças temporais. No pico inicial da experiência lisérgica, mesmo com a dose baixa de 50 mcg (1/5 a 1/4 de uma dose psicodélica plena), o caos dificultava até a comunicação e aumentava a arbitrariedade aparente das respostas aos testes.

 

Por volta das quatro horas de experimento, porém, a entropia mental causada pela LSD arrefecia e passava do polo caótico para um estado caracterizado por um fluxo mais livre nas associações, criativas e flexíveis. O oposto do fluxo disfuncional de pensamento caraterizado pela rigidez e fixação de certos transtornos mentais, como a ruminação presente em casos graves de depressão.

Eis o que os autores, tentativamente, apontaram como possível janela terapêutica. “A principal conclusão seria que vários elementos dos resultados (aumento de significado, fluxo abstrato) indicam que uma tal janela após quatro horas parece juntar vários efeitos interessantes com potencial terapêutico nessa dose relativamente baixa”, diz Wießner.

“Porém, nosso estudo avaliou participantes saudáveis, então outros estudos com pacientes serão necessários para dizer algo mais concreto em termos de benefícios terapêuticos durante essa janela.”

A pesquisadora se diz surpresa com o fluxo mais livre de pensamento estimulado por palavras abstratas. “Uma potencial interpretação é que palavras abstratas estimulam um pensamento amplo, em termos de distâncias semânticas, mais viagens mentais e na linguagem”, especula Wießner.

Uma interpretação alternativa seria que termos abstratos são mais difíceis de processar no cérebro, se comparados com animais e objetos, que evocariam processos mais automáticos. “Essa segunda interpretação iria na linha da redução de controle frontal: pode ser que o cérebro não consiga controlar suficientemente os processos cognitivos, e, assim, quando chegam estímulos mais difíceis, essa perda de controle se reflete num ‘caos’ de distâncias semânticas aumentadas na cadeia de palavras.”

A continuidade natural do estudo, propõe a pesquisadora alemã, seria investigar o potencial do LSD para quebrar esses padrões de fluxos de pensamento disfuncionais em pacientes ou demonstrar e ensinar outros fluxos possíveis, por exemplo mais orientados a coisas que ganharam um significado especial durante o estado lisérgico.

Isso, evidentemente, se um dia o LSD –que não causa overdose nem dependência– for um dia retirado da lista de substâncias proibidas em que foi parar como bode expiatório da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1970. Até lá, a janela terapêutica que ele e outros psicodélicos banidos podem abrir continuará fechada.

Tófoli, o autor sênior da pesquisa, chama a atenção para o fato de “o LSD ser proposto hoje em dia menos como molécula terapêutica e mais como ferramenta para caracterizar o efeito subjetivo”. Isso porque com outros psicodélicos, como a psilocibina (cogumelos) e a dimetiltriptamina (DMT), o efeito tem duração mais curta.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

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Enquete global confirma força da ayahuasca contra álcool e drogas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/08/enquete-global-confirma-forca-da-ayahuasca-contra-alcool-e-drogas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/08/enquete-global-confirma-forca-da-ayahuasca-contra-alcool-e-drogas/#respond Sun, 08 Aug 2021 19:31:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/InnerVisionsCapa-300x186.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=560 Pesquisa na internet realizada por pesquisadores na Austrália, Brasil e Espanha atesta com base numa grande amostra aquilo que evidências anedóticas de igrejas da ayahuasca já indicavam: o chá psicodélico está diretamente relacionado com menor incidência de uso problemático de drogas, em particular o álcool.

O Projeto Ayahuasca Global colheu em 40 países testemunhos de 10.836 usuários do chá, dos quais 8.629 relataram uso de álcool ou drogas e foram incluídos na análise publicada em 25 de julho no periódico Drug and Alcohol Review. Dos oito autores, três atuam no Brasil: Emerita S. Opaleye (Unifesp), Luís Fernando Tófoli (Unicamp) e Nicole L. Galvão-Coelho (UFRN).

Alguns vão torcer o nariz para a ideia de tratar abuso de drogas com outra droga, mas a DMT da ayahuasca, o LSD e a psilocibina de cogumelos são especiais. Pouco tóxicos, não causam dependência química e estão de volta à pesquisa de tratamentos psiquiátricos, após meio século de proibicionismo, com o ímpeto de um renascimento psicodélico.

De depressão a anorexia, vários são os transtornos para os quais ensaios clínicos apontam aplicações terapêuticas promissoras. Tão promissoras que instituições acadêmicas como Imperial College, Johns Hopkins, Harvard, o hospital Mount Sinai e as universidades de Nova York e da Califórnia abriram centros de estudos específicos para psicodelia. Pipocam investimentos privados bilionários na novidade psicofarmacológica.

O centro mais recente surgiu em Melbourne, Austrália: Instituto Psychae, voltado a testes clínicos de compostos farmacêuticos para medicina psicodélica. Segundo noticiou o jornal The Sydney Morning Herald, o centro de pesquisa nasce com dotação de 40 milhões de dólares australianos (R$ 154 milhões) doados por empresa americana de biotecnologia que prefere não ser identificada.

O Psychae terá como co-diretores Jerome Sarris, da Universidade Western Sydney, e Daniel Perkins, da Universidade de Melbourne. Não por acaso são respectivamente primeiro e último autores do artigo na Drug and Alcohol Review sobre ayahuasca, pois a dimetiltriptamina (DMT, principal psicoativo do chá) está nos planos de ensaios clínicos do novo instituto, por exemplo para tratar transtorno de uso de drogas (abuso e dependência).

Testemunhos obtidos pela internet implicam vieses de seleção, pois usuários de ayahuasca com más experiências provavelmente estariam menos motivados a preencher uma série de formulários padronizados. O forte dessa enquete, por outro lado, está no tamanho avantajado da amostra e na composição multicultural.

A análise revelou que há correlação estatística significativa entre frequência no uso da ayahuasca e menor incidência de uso ou abuso de álcool e outras drogas. E mostrou que esse benefício de saúde mental independe, em certa medida, de beber o chá em rituais religiosos (embora o uso em contexto cerimonial pareça, sim, robustecer o efeito terapêutico).

A presença destacada de brasileiros entre autores e participantes não é coincidência. O estudo da ayahuasca foi facilitado aqui pela legalização do chá para uso religioso a partir de 2004, o que tornou o Brasil o terceiro maior produtor de pesquisas de impacto em ciência psicodélica.

O estudo brasileiro de maior repercussão foi justamente um teste clínico randomizado controlado por grupo placebo com ayahuasca para depressão resistente a medicamentos, de 2018. Chefiado por Dráulio Araújo e Fernanda Palhano-Fontes, o ensaio pioneiro contou com participação de Nicole Galvão-Coelho (todos da UFRN).

Nicole Leite Galvão-Coelho em seu laboratório na UFRN. (UFRN/Divulgação)

A fisiologista retornou há poucos meses de um sabático na Austrália. Sua especialidade são marcadores relacionados com transtornos, como inflamação, cortisol e BDNF (fator cerebral importante na formação de sinapses).

Nicole acaba de publicar artigo sobre os perfis bioquímicos em pacientes com diferentes estágios de depressão, de recém-diagnosticados àqueles que não melhoram com antidepressivos disponíveis. Esse detalhamento poderá ajudar na sintonia fina de terapias com substâncias como a ayahuasca (que normaliza níveis de cortisol em pacientes graves resistentes, por exemplo).

O time potiguar trabalha no planejamento de testes clínicos mais ambiciosos de psicodélicos, com as dificuldades usuais enfrentadas por pesquisadores brasileiros. Grupos da USP também preparam ensaios controlados com o psicodélico ibogaína para dependência química (crack e álcool), mas ainda não abriram recrutamento.

Com frequência este blog recebe consultas sobre oportunidades para participar desses estudos e, quem sabe, beneficiar-se dos efeitos terapêuticos que a ciência vem constatando. Não cabe aqui fazer qualquer recomendação, porque a maioria dos psicodélicos permanece proibida e porque não sou médico nem psicólogo. Psicodélicos não são panaceia emocional, têm contraindição para muitas pessoas e não estão isentos de efeitos adversos, como qualquer substância.

Dito isso, cabe assinalar que havia no final de 2020 pelo menos 70 testes clínicos de psicodélicos com registro ativo no mundo. Entre eles, 56 estavam recrutando voluntários ainda no mês passado.

Seria ótimo se a parceria de pesquisadores nacionais com o milionário Instituto Psychae da Austrália colaborasse para impulsionar mais e maiores ensaios como esses no Brasil, necessitado como está o país de sacudir a depressão galopante (para não dizer ruminante), e manter sua posição de destaque em ciência psicodélica.

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Lista dos mais influentes em psicodélicos tem só duas brasileiras https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/#respond Mon, 03 May 2021 19:51:51 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/RankingMachosBrancosPsicodelicos-300x158.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=446 ADENDO: depois de publicada a nota, veio ao meu conhecimento que Adriana Kertzer, 97a. da lista, advogada atuante no Plant Medicine Law Group dos EUA, nasceu em São Paulo. São, portanto DUAS brasileiras no ranking. Texto modificado para incluir essa informação.

Um ranking das cem personalidades com maior influência no campo psicodélico está dando o que falar. Toda lista de bambambãs se sujeita a controvérsia, mas essa caprichou em ignorar a diversidade hoje esperada de qualquer elenco, sob pena de perpetuar vieses que mantêm em posição subalterna quem deveria brilhar tanto ou mais que homens brancos ricos, famosos e poderosos.

A lista dos psiconautas mais influentes foi montada pelo serviço de informações Psychedelic Invest, dando peso sobretudo para audiência em redes sociais. Os organizadores do ranking se penitenciaram pela falta de diversidades, que privilegiou machos caucasianos em todas as 20 primeiras colocações.

Contei apenas 17 mulheres na relação de 100 nomes, entre elas DUAS únicas pessoas naturais do Brasil: Beatriz Caiuby Labate, antropóloga estudiosa de ayahuasca conhecida como Bia Labate, e a advogada Adriana Kertzer.

A antropóloga brasileira Bia Labate  (Divulgação)

Obviamente negros também só se veem dois: o especialista em abuso de drogas Carl Hart e o boxeador Mike Tyson, que em dezembro devorou 4g de cogumelos psicodélicos Psilocybe durante entrevista.

O destaque para Labate é justo. Ela já organizou, editou e escreveu duas dezenas de livros sobre ayahuasca, peiote, povos tradicionais que usam psicodélicos e sua redescoberta pela neurociência e pela psiquiatria.

O último deles, “Ayahuasca Healing and Science” (cura e ciência da ayahuasca, minha tradução para o título), foi editado com Clancy Cavnar, companheira com que administra o Chacruna Institute for Psychedelic Plant Medicines, em São Francisco (EUA).

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Labate também trabalha como especialista em educação pública e cultura da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), cujo fundador, Rick Doblin, é o terceiro do ranking. (Possível conflito de interesses para o leitor conhecer e ponderar: já publiquei quatro artigos pagos na página Chacruna e tenho um no prelo do MAPS Bulletin, todos a convite de Labate.)

O volume contém ensaios de vários pesquisadores do Brasil, terceiro país com mais artigos científicos de impacto. O prefácio é do neurocientista Sidarta Ribeiro (40,4 mil seguidores), e o livro tem autores brasileiros como o psiquiatra Luís Fernando Tófoli (30,6 mil) e o físico Dráulio de Araújo, pesquisador principal do estudo sobre ayahuasca e depressão que aparece em sexto lugar naquele ranking dos artigos com mais citações (38/ano).

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Nasce a Scirama, primeira empresa de inovação psicodélica do Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/#respond Mon, 19 Apr 2021 02:15:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/LOGO-SCIRAMA-FUNDO-BRANCO-215x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=419 O renascimento psicodélico ganha nesta segunda-feira (19) a primeira empresa brasileira de inovação nesse campo efervescente, Scirama. Por trás dela está Marcel Grecco, 38, criador de The Green Hub, aceleradora na área de maconha medicinal e cânhamo que tem dez startups no portifólio.

O momento foi bem escolhido: 19 de abril é o Dia da Bicicleta, data em que o químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), descobridor do LSD nos laboratórios Sandoz, realizou a primeira viagem lisérgica da história, em 1943. Até a proibição nos EUA em 1968, a droga foi distribuída para distúrbios como o alcoolismo, sob o nome Delysid.

A partir de 1980, estudos clínicos com quase todos os compostos psicodélicos caíram no ostracismo. Ressurgiram a partir da virada do século e hoje entusiasmam neurocientistas e investidores, sobretudo a psilocibina dos cogumelos “mágicos”, por seu potencial para tratar transtornos mentais como a depressão resistente a medicamentos.

Nos últimos cinco anos quase 3 mil artigos científicos foram publicados acerca do tema. Estimativas sobre o mercado mundial para psicoterapia apoiada em psicodélicos partem de US$ 100 bilhões anuais (R$ 560 bilhões), e várias empresas travam hoje uma corrida para patentear moléculas e aplicações psicodélicas.

Nos EUA, governo, universidades e empresas investiram, no primeiro semestre de 2020, US$ 250 milhões em pesquisa psicodélica. A Janssen (Johnson & Johnson) lançou o spray nasal antidepressivo Spravato (escetamina, variante da cetamina, anestésico já usado contra depressão), com vendas de US$ 1,5 bilhão anuais.

“A Scirama [pronuncia-se ‘sairama’] nasceu a partir de uma dor, o mal do século na saúde mental”, diz Grecco, referindo-se principalmente a depressão e ansiedade. “Isso agora vai se intensificar, com o luto pós-Covid, a dor de quem perdeu alguém ou teve a doença, e os impactos econômicos, na perda de empregos e negócios.”

Marcel Grecco, criador de The Green Hub e da empresa psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

O empresário conta que, depois de criar The Green Hub em 2016, foi atraído pela promessa medicinal dos alteradores de consciência. Numa primeira rodada entre investidores para lançar a Scirama, obteve fundos da ordem de R$ 1,5 milhão.

“O uso de cânabis e de psicodélicos é disruptivo [revolucionário] para o setor de saúde”, diz, aludindo aos estudos que os apontam como alternativa para as terapias existentes, que no caso de depressão não funcionam para ao menos um terço dos doentes.

Grecco já conhecia como colaborador científico da aceleradora The Green Hub o neurocientista Stevens Rehen, 50, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), que tem estudos publicados sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos ayahuasca e 5-MeO-DMT (extraído originalmente do veneno do sapo-do-rio-colorado).

O neurocientista Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres.
(Mercelo Leite/Folhapress 2019)

Chamou Rehen para compor o comitê científico da Scirama ao lado de Sidarta Ribeiro, 50, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN). Ambos já trabalharam juntos em pesquisa básica com LSD, em colaboração com Dráulio de Araújo (ICe-UFRN) e Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Completa o time Clarice Pires, 36, economista especializada em inovação com quem Rehen atuou na startup de biotecnologia Hygeia, um raro caso de sucesso no problemático campo de inovação no Brasil. A empresa desenvolveu novas formulações do medicamento octreotida (supressor do hormônio de crescimento e antidiarreico) e as licenciou no Brasil e no exterior.

Clarice Pires, administradora da startup psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

“Stevens e Sidarta têm todo o conhecimento, sabem para onde a ciência está indo”, diz Grecco. Com efeito, esse grupo de colaboradores está no epicentro da pesquisa nacional na área, favorecida pela legalização da ayahuasca por motivos religiosos, que pôs o Brasil em terceiro lugar na quantidade de artigos científicos de grande impacto sobre psicodélicos, atrás dos EUA e do Reino Unido apenas.

A ideia da Scirama é dar o financiamento inicial e ajuda na estruturação de produtos e terapias derivados das propriedades já conhecidas de psicodélicos. Entre elas estão a capacidade de estimular novas conexões cerebrais (neuroplasticidade) e a ação anti-inflamatória, que poderá gerar aplicações para transtornos mentais e doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

No exterior, já se investiga o uso de psicodélicos até para acidentes vasculares cerebrais, anorexia e enxaqueca. Entre os alvos da Scirama estarão também protocolos para o tratamento de dependência química, em especial de álcool –como se fazia com LSD nos anos 1950/60. A startup lançará em breve um edital para receber propostas de pesquisadores brasileiros.

No curto prazo, a equipe espera receber ideias na área de psicoterapia com psicodélicos clássicos (ayahuasca, LSD, psilocibina) e mesmo para cultivo de organismos produtores, como os cogumelos Psilocybe. No longo prazo, aplicações para envelhecimento, não dependentes do efeito psicodélico terapêutico propriamente dito (alterações da consciência, como a chamada dissolução do ego e o aumento de empatia).

Outro setor em que a Scirama pretende inovar é o de compensações para os povos tradicionais que usam psicodélicos em rituais há séculos e legaram esse conhecimento para a ciência contemporânea (um flanco aberto para intensa controvérsia). O próprio logotipo da firma faz alusão a isso, ao reunir filamentos de conexão entre neurônios em formato que lembra um cocar.

A administradora Clarice Pires afirma que patentes e propriedade intelectual são cruciais para seu modelo de negócios, mas que em breve a empresa apresentará um modelo sobre como pretende fazer esse ressarcimento. O assunto já está na pauta das próximas reuniões.

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo. E em 19 de maio começa o curso no canal Bora Saber:

 

 

 

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Psicodélico empata com antidepressivo e pode ganhar partida nos pênaltis https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/psicodelico-empata-com-antidepressivo-e-pode-ganhar-partida-nos-penaltis/#respond Wed, 14 Apr 2021 21:00:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/DepressaoLeticiaMoreiraFolhapress-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=411 Apoio científico importante para o renascimento psicodélico sai nesta quarta-feira (14) no New England Journal of Medicine (NEJM), o periódico médico mais lido e citado no mundo: em confronto direto com o antidepressivo escitalopram (Lexapro), o psicodélico psilocibina demonstrou bom desempenho ao reduzir sintomas de depressão.

Poucas pessoas não conhecem alguém tratado com escitalopram ou outro remédio para depressão. É o mal psíquico do século 21, agravado agora pelo flagelo da Covid-19, e pelo menos um terço dos deprimidos não se dá bem com esses medicamentos, os modernos inibidores seletivos de reabsorção de serotonina (ISRS).

Um empate estatístico como o descrito no NEJM já seria grande notícia para substâncias psicodélicas, ora em vias de retornar à farmacopeia da psiquiatria. O autor principal do artigo do Imperial College de Londres, no entanto, vai além e indica que o composto dos “cogumelos mágicos” se sai melhor na disputa dos pênaltis, por assim dizer.

A metáfora futebolística cai bem para descrever a interpretação apresentada em tuítes, nos últimos dias, por Robin Carhart-Harris. Estrela da vanguarda psicodélica, ele acaba de ter seu passe comprado do Imperial pela Universidade da Califórnia em São Francisco, cujo centro de neurociência Neuroscape criou para Carhart-Harris a cátedra Ralph Metzner, dotada com US$ 4 milhões (quase R$ 23 milhões).

RCH parece querer evitar a conclusão de que seu estudo apresenta uma conclusão desfavorável para a psilocibina, substância originalmente extraída de fungos do gênero Psilocybe (em testes clínicos se usam fórmulas sintéticas). Isso porque o artigo na NEJM deixa claro que o desfecho (resultado) principal buscado na investigação com 59 voluntários portadores de depressão moderada não produziu diferença estatisticamente significativa entre o psicodélico e o escitalopram.

Três dezenas de participantes caíram no grupo que recebeu a psilocibina, e os outros 29 tomaram o antidepressivo. No primeiro caso, duas doses de 25 mg do psicodélico separadas por 21 dias, mais seis semanas de placebo; no outro, doses inócuas de psilocibina (1 mg) no mesmo intervalo e seis semanas de escitalopram.

Todos os 59 desconheciam qual dose de psilocibina ingeriam (assim como os experimentadores). E todos foram submetidos a várias sessões de orientação, psicoterapia e monitoramento de efeitos adversos ou sintomas depressivos ao longo das nove semanas de duração do experimento.

Observou-se melhora nos dois contingentes de voluntários, com base na escala de depressão QIDS-SR-16, que tem um máximo de 29 pontos –quanto mais pontos, pior o transtorno. O grupo da psilocibina partiu de um escore mediano de 14,5 e perdeu 8 pontos (redução de 55%); entre os que tomaram escitalopram, a pontuação inicial foi de 16,4 e a redução, de 6 pontos (-37%). Pelo desenho estatístico, a divergência não se provou significativa.

As conclusões do artigo são bem cuidadosas: “Com base na mudança em escores de depressão na QIDS-SR-16 na sexta semana, este ensaio não mostrou uma diferença significativa em efeitos antidepressivos entre psilocibina e escitalopram num grupo selecionado de pacientes”, advertem os autores.

Eles ressalvam que “desfechos secundários [outras escalas padronizadas sobre bem-estar etc.] em geral favoreceram a psilocibina sobre o escitalopram”. RCH e colaboradores, entre eles a farmacologista brasileira Bruna Giribaldi, recorrem à fórmula típica de artigos médicos para sinalizar cautela: “Ensaios maiores e mais longos são necessários para comparar psilocibina com antidepressivos estabelecidos”.

Em contato por email com o blog, o neurocientista britânico revelou que, pessoalmente, não tem planos de empreender novos estudos sobre depressão na Califórnia. Não deixa de ser curioso, tendo em vista que seu time no Imperial foi um dos pioneiros em investigar psilocibina para depressão, com trabalho publicado em 2016.

Na mesma mensagem RCH ofereceu uma interpretação mais positiva dos resultados que a apresentada no artigo. “O [desfecho] primário falhou, mas os secundários todos mostraram significativa superioridade em favor da psilocibina, [algo] bem notável, eu diria”, comentou. “Suspeito que o [desfecho] primário falho seja um falso negativo, em face do panorama mais amplo.”

Dráulio de Araújo, físico neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do primeiro estudo no mundo a comparar o efeito antidepressivo de um psicodélico (ayahuasca) contra placebo, saudou o artigo na NEJM como um marco para a ciência psicodélica –isso apesar de o trabalho britânico não incluir grupo de controle com placebo.

“Considero o estudo muito bem-conduzido, embora com o desenho metodológico um pouco complicado, que parece favorecer o escitalopram –e mesmo assim o efeito robusto da psilocibina se mantém”, disse o pesquisador da UFRN, que planeja comparar o efeito antidepressivo da ayahuasca com o anestésico cetamina. “É um dado surpreendente.”

Com Araújo concorda o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seu coautor no trabalho sobre ayahuasca. “O fato de a resposta ter sido a mesma no desfecho primário para um antidepressivo que é reputado entre os melhores dos ISRS é um feito e tanto para a psilocibina”, avalia.

“Considerando o preconceito que a terapia baseada em psicodélicos sofreu ao longo de décadas, empatar com um tratamento consolidado é uma vitória não desprezível.”

Para o psiquiatra, o ideal seria que o estudo tivesse um terceiro braço, com apenas uma dose irrisória de psilocibina e placebo (sem psilocibina e sem escitalopram). Também há a desvantagem de o estudo ser relativamente curto: “Não sabemos quanto os efeitos antidepressivos de um lado e do outro se sustentariam, se ampliariam ou se reduziriam”, ressalva. “A depressão é um mal crônico, e essa não é uma informação desprezível.”

“Ainda assim, o estudo é alvissareiro para as potencialidades abertas pela psiquiatria psicodélica. Sobre os desfechos secundários, embora sistematicamente eles tenham sidos melhores para o grupo da psilocibina, o próprio estudo pede que eles sejam desconsiderados, pois não foi possível fazer o cálculo estatístico.”

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo.

 

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Mais estudos atestam potencial psicodélico contra pandemia de suicídios https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/mais-estudos-atestam-potencial-psicodelico-contra-pandemia-de-suicidios/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/mais-estudos-atestam-potencial-psicodelico-contra-pandemia-de-suicidios/#respond Mon, 05 Apr 2021 15:16:07 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/knottedgun-300x154.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=404 Um ano atrás, em 29 de março de 2020, o corpo de Thomas Schäfer foi encontrado junto de trilhos de trem perto de Wiesbaden, na Alemanha. Ele era secretário da Fazenda do estado de Hesse, e sua morte foi atribuída a suicídio após desespero com a impotência diante do desastre na economia e no emprego causado pela Covid-19. Dias depois, outro funcionário da secretaria tirou a própria vida.

A pandemia generalizou o temor de um crescimento no número de suicídios (são mais de 800 mil por ano no mundo), na tempestade perfeita a combinar angústia, isolamento social, desemprego e perda de renda. Não há dados ainda para confirmar uma tendência, mas é certo que ao menos nos EUA há mais gente pensando em tirar a própria vida, segundo os Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), num país que sem a Covid já contava 48 mil desses óbitos por ano, e aumentando.

Em paralelo, avolumam-se indicações da pesquisa biomédica de que psicodélicos clássicos como a psilocibina de cogumelos “mágicos” e o DMT da ayahuasca podem ser úteis na prevenção dessas mortes. No entanto, essa classe de substâncias permanece banida na maior parte dos países, sob a justificativa de que os chamados “alucinógenos” causam dependência e têm alta toxicidade –coisas que a ciência comprova ser uma falsidade.

O potencial de psicodélicos na prevenção do suicídio já foi tratado aqui. Pesquisadores brasileiros, favorecidos pelo fato de a ayahuasca ser legal no país, mostravam então que o chá ritual de religiões como Santo Daime, Barquinha e UDV pode ser útil nessa empreitada.

Agora, mais estudos surgem para corroborar essa promessa terapêutica e a irracionalidade manifesta de manter tais compostos no rol de substâncias proibidas e controladas, o que só dificulta a pesquisa. Um deles, sobre ansiedade de pacientes com câncer grave e risco de suicídio multiplicado por quatro, tem como co-autor Richard Zeifman, do Imperial College, que já aparecera entre os responsáveis pelo artigo de brasileiros sobre ayahuasca e suicídio, liderado por Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

No novo trabalho, publicado em 18 de março, Zeifman, Stephen Ross e outros mostram que a diminuição de ideações suicidas entre diagnosticados com câncer submetidos a psicoterapia com psilocibina permanece até 4,5 anos depois. Para os autores, o psicoativo dos cogumelos Psilocybe aparece como boa alternativa aos antidepressivos disponíveis na prevenção do problema.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

Zeifman também participa do outro estudo, lançado em 11 de março, neste caso sobre risco de suicídio e psicodélicos clássico em geral, não só psilocibina. Trata-se de uma revisão sistemática, tipo de artigo que busca reunir conclusões de vários outros estudos para robustecer relações causais pressupostas.

Foram considerados 64 trabalhos, 41 deles sobre a associação entre uso não clínico de psicodélicos e comportamentos suicidas e 23 sobre terapias psicodélicas e seu impacto no risco de morte autoprovocada. Nada conseguiram concluir sobre uso continuado dessas substâncias e aumento ou diminuição de risco, mas nos estudos clínicos recentes sobre psicodélicos encontraram evidências preliminares de redução acentuada e sustentada em ideações suicidas.

Para saber mais:

 

 

 

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Britânicos testam DMT, psicodélico da ayahuasca, contra depressão grave https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/21/britanicos-testam-dmt-psicodelico-da-ayahuasca-contra-depressao-grave/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/21/britanicos-testam-dmt-psicodelico-da-ayahuasca-contra-depressao-grave/#respond Sun, 21 Mar 2021 14:18:42 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/GloboDeNeveRobertCouseBaker-269x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=380 A startup Small Pharma, do Reino Unido, recebeu autorização para iniciar estudos clínicos preliminares (fase 1) com dimetiltriptamina (DMT) contra depressão e deve começar em breve. DMT é o principal causador do efeito psicodélico da ayahuasca, e seu potencial contra o transtorno que aflige mais de 300 milhões de pessoas no mundo foi já comprovado por pesquisadores brasileiros.

A BBC noticiou o ensaio clínico afirmando que “o poderoso alucinogênico conhecido por seu papel em rituais xamânicos está sendo testado pela primeira vez como uma cura potencial para depressão”. A afirmação contém algo de impreciso, pois o efeito antidepressivo da DMT afinal foi testado antes, ainda que apenas na combinação com os outros ingredientes do chá usado em cerimônias de Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.

Arbusto chacrona, usado no preparo do chá ayahuasca  (Juca Varella/Folhapress)

No caso britânico, o composto em estado puro será provavelmente administrado por injeção, porque na via oral ele termina degradado por enzimas presentes no aparelho digestivo, como a monoamina-oxidase (MAO). A ingestão da ayahuasca não tem o mesmo resultado porque a infusão, além das folhas da chacrona que fornecem DMT, contém inibidores da MAO provenientes do cipó-mariri.

Cipó-mariri, ou jagube, usado no chá ayahuasca  (Marcelo Leite/Folhapress)

Chama a atenção o estudo ser da Small Pharma, uma empresa, e não de instituição acadêmica. Verdade que ele será conduzido em parceria com o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres, mas o envolvimento de uma startup que recebeu incentivo financeiro do governo britânico exemplifica o interesse crescente de investidores nos psicodélicos, não sem alguma controvérsia.

Muitas empresas estão sendo criadas e capitalizadas para investigar e quiçá patentear várias substâncias psicodélicas (DMT, LSD, MDMA, 5-MeO-DMT etc.) para tratar vários transtornos psíquicos e físicos, de estresse e enxaqueca a alcoolismo e anorexia. DMT, por exemplo, está para ser testado contra Alzheimer e AVC.

Participarão da primeira etapa do estudo da Small Pharma 32 voluntários sem experiência anterior com psicodélicos. O objetivo desta fase 1 é estabelecer a dose mínima capaz de desencadear algum efeito psicodélico, como as famosas “mirações” da ayahuasca. Na fase 2, o grupo será de 36 pessoas com depressão crônica grave.

A diretora médico-científica da Small Pharma, Carol Routledge, mencionou estudos anteriores sobre ayahuasca e depressão ao boletim Psilocybin alpha, mas justificou a escolha por DMT dizendo que o chá “contém meio que um coquetel de componentes ativos, e como tal tem perfil de segurança muito mais fraco e experiência psicodélica significativamente mais longa comparada com DMT”.

A expectativa é que o tratamento com DMT encurte sessões de terapia para no máximo duas horas. Isso reduziria custos de um eventual tratamento, diante das seis horas que pode durar uma sessão com ayahuasca –e tempo parecido com a psilocibina de cogumelos “mágicos”, outro psicodélico em testes avançados contra depressão <>.

Routledge comparou o efeito de uma dose alta de DMT com agitar um globo de neve, aquele objeto de vidro cheio de água e alguma cena em geral bucólica. “Sacudir um globo de neve perturba padrões de pensamento insalubres e oferecem uma oportunidade para que se reassentem de maneira diferente” –o que não chega a ser uma metáfora feliz, pois no caso do enfeite estado inicial e estado final são indistinguíveis.

Dráulio Barros de Araújo, físico do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que liderou o estudo sobre ayahuasca e depressão publicado eletronicamente em 2018, seguirá a pista aberta no Brasil investigando também DMT separadamente. Seu plano é apresentar o projeto em breve ao comitê de ética em pesquisa da UFRN.

Para saber mais sobre o pioneirismo psicodélico no Brasil, duas oportunidades surgirão em maio:

Na primeira semana deverá ser lançado meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”, pela Editora Fósforo;

Na segunda quinzena, entrando por junho, um curso com quatro aulas no site Bora Saber.

 

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Brasil é 3º país com mais artigos de impacto sobre psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/#respond Tue, 09 Feb 2021 14:44:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/FernandaPalhanoFontesFotoDeAnastaciaVazUFRN-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=311 Pesquisadores brasileiros e a ayahuasca ocupam posição invejável num campo de estudo em crescimento acelerado, o chamado renascimento psicodélico, que ganhou impulso após 2010. Segundo ranking publicado na última quarta-feira (3), o Brasil é o terceiro país que mais produz estudos de impacto, atrás somente dos EUA e do Reino Unido.

O levantamento de David Wyndham Lawrence saiu no Journal of Psychoactive Drugs. Ele montou duas listas de artigos sobre LSD, psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), DMT (da ayahuasca), mescalina (do cacto peiote) e 5-MeO-DMT (do sapo-do-rio-colorado) –classificados como psicodélicos clássicos, que atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina.

A primeira lista traz os 50 trabalhos sobre o assunto que foram mais citados na literatura científica desde 1957, ano de um trabalho de Julius Axelrod sobre LSD que colecionou desde então 154 menções de outros especialistas. O campeão é Stephen Peroutka, com estudo de 1979 sobre LSD e receptores de serotonina detentor de 1.557 citações.

A segunda relação contém artigos com as maiores taxas anuais de citação, uma maneira de descontar a vantagem numérica conferida pela antiguidade. Nos dois casos, os rankings se limitam a 50 trabalhos cada um (77 ao todo, já que vários aparecem nas duas listas).

Lawrence dividiu os artigos em dois grupos temporais: uma primeira geração de 37 estudos em que predominavam investigações farmacológicas e observacionais, sobretudo sobre LSD; e a geração atual de trabalhos (40) com dominância de testes clínicos sobre efeitos terapêuticos em que se destaca a psilocibina. Após o primeiro pico de produção, 1965-75, a proibição de psicodélicos massacrou a pesquisa, que retornaria com força a partir de 2010.

(Reprodução/Journal of Psychoactive Drugs)

Na leva pioneira o Brasil nem aparece. Já na segunda figura em terceiro lugar com 5 artigos (12,5% do total), à frente da Suíça com 4 (10%). Em primeira colocação estão os EUA, com 15 (37,5%), seguido pelo Reino Unido, com 13 (32,5%). Ou seja, apenas quatro países reúnem 92,5% da produção científica mais relevante sobre psicodélicos.

Estudiosos brasileiros se destacam entre os artigos com maior taxa de citações, com Fernanda Palhano-Fontes na liderança. A engenheira de 35 anos especializada em imagens cerebrais atua no grupo do físico Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro e no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Palhano-Fontes é a primeira autora de um artigo pioneiro sobre tratamento de depressão resistente com ayahuasca noticiado em 2018 na Folha. O texto aparece em sexto lugar no ranking daqueles com maior média anual de citações, 38/ano; os cinco que o precedem marcam de 38,6 a 50,2 citações/ano.

Há bom motivo para um estudo de país relativamente periférico em pesquisa científica destacar-se assim: nunca antes um teste clínico randomizado duplo-cego controlado com placebo havia investigado o efeito terapêutico de um psicodélico (DMT) contra depressão.

Maceração do cipó-mariri, um dos ingredientes da infusão de ayahuasca (Marcelo Leite/Folhapress)

“Aparecer na 6ª posição desse ranking, ao lado de nomes tão importantes do campo da pesquisa psicodélicas, reafirma o valor do nosso trabalho, feito completamente no Brasil, e me estimula a continuar fazendo pesquisa de qualidade”, disse a pesquisadora da UFRN ao blog.

Palhano-Fontes se refere ao fato de dois dos quatro autores do levantamento no Journal of Psychoactive Drugs serem estrelas da neurociência psicodélica: Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, e Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Não por acaso eles parecem com quatro artigos cada um no ranking.

“Entre os ensaios clínicos que aparecem mais bem citados, o nosso é o único em que a ayahuasca foi investigada”, destaca a neurocientista da UFRN. “Isso mostra o potencial que temos no Brasil, uma vez que essa substância faz parte da cultura brasileira e tem seu uso religioso regulamentado aqui.”

A engenheira aparece com dois trabalhos no levantamento, o segundo também sobre ayahuasca, de 2015. Os outros três autores brasileiros citados também publicaram estudos sobre ayahuasca: Flávia Osório, Rafael Sanches e Rafael dos Santos, todos do grupo da USP de Ribeirão Preto liderado por Jaime Hallak, pioneiro na investigação de efeitos antidepressivos da ayahuasca e co-autor dos estudos na UFRN com Araújo, que trabalhou com Hallak na USP.

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‘Ibogaína’ não alucinógena mantém potencial contra dependência química https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/#respond Mon, 14 Dec 2020 14:39:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=169 Pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram a façanha de criar uma versão do psicodélico ibogaína que não causa alucinações, aparentemente, nem importa risco para o coração. Se conseguirem comprovar eficácia em seres humanos, seria uma grande promessa para o tratamento de dependência química.

Ibogaína é uma substância psicoativa derivada do arbusto Tabernanthe iboga, usado ritualmente pela etnia Bwiti, em países africanos como o Gabão e Camarões.  Ela lança a pessoa num estado onírico que pode durar um dia inteiro, ou mais.

Nos anos 1960, descobriu-se nos EUA sua capacidade de diminuir sintomas agudos da crise de abstinência em dependentes de heroína e de conter a urgência imperiosa de consumir a droga (“fissura”). Apesar de proibida, alguns países –como o Brasil– admitem o uso excepcional da ibogaína como tratamento para dependência química, com taxas de sucesso que chegam a superar 60%.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

O médico Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), administrou o composto a centenas de pacientes, assim como o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínia (SP). É mais que recomendável contar com acompanhamento médico durante a viagem da ibogaína, porque a droga afeta o ritmo do coração e pode ser fatal, cuidado nem sempre disponível em clínicas clandestinas.

Na literatura médica há registro de 22 mortes após uso da substância entre 1990 e 2015. Uma revisão de 19 casos de óbito após ibogaína indicou em 2012 que 12 dos 14 deles para os quais havia prontuários médicos detalhados envolviam distúrbios cardíacos prévios ou consumo concomitante de outras drogas, como cocaína.

O laboratório de David Olson na Universidade da Califórnia descreveu na revista Nature da semana passada como foi capaz de modificar a molécula de ibogaína e chegar à síntese de um análogo da substância que os autores afirmam não ser alucinógeno. Chamaram o composto de tabernanthólogo (TBG) e sustentam que a variante não altera perigosamente batimentos cardíacos, tampouco.

“É um trabalho revolucionário”, diz o neurocientista Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa efeitos terapêuticos da ayahuasca. “Abre a possibilidade única de investigar melhor quanto do efeito terapêutico nasce da bioquímica e quanto da experiência subjetiva em si [referindo-se ao estado onírico].”

A equipe de Olson, no entanto, testou o novo composto apenas com roedores. Outras substâncias psicodélicas que também atuam sobre o receptor 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, como LSD e psilocibina, provocam nos bichos um movimento característico da cabeça aceito por pesquisadores como correlato de alucinações.

Os experimentos mostraram que o TBG promove neuroplasticidade, ou seja, a formação de novas conexões entre neurônios que se acredita estar na origem dos benefícios terapêuticos de psicodélicos. Além disso, testes padronizados provaram que o TBG também reduz nos animais o consumo compulsivo de álcool e heroína, além de produzir efeitos análogos a antidepressivos.

Crescimento de espículas em dendritos de neurônios (setas azuis) indica neuroplasticidade após ibogaína (esq.) e TBG (dir.) (Reprodução da Nature)

O artigo indica ainda que obter TBG é mais simples que produzir ibogaína, pois a síntese química envolve apenas um passo, contra 9 a 16 para o composto original, e rende mais. Em resumo, projetaram uma droga que parece ter a mesma capacidade da ibogaína de tratar dependência química, mas desprovida do que chamam de “inaceitável perfil de segurança” –só falta comprovar isso em seres humanos.

“Ratos não têm experiências místicas”, brinca Araújo, da UFRN, para indicar que o trabalho de Olson e colegas toca num ponto nevrálgico do renascimento dos psicodélicos como drogas alternativas promissoras para tratar transtornos mentais: pressupõe-se que os conteúdos psíquicos produzidos ou aflorados durante as viagens sejam imprescindíveis para o progresso terapêutico.

Um estudo sobre ibogaína de Thomas Brown, Geoff Noller e Julie Denenberg no periódico Journal of Psychoactive Drugs defende que o efeito onirogênico da droga é decisivo para quebrar a dependência, ou pelo menos tão importante (pelas memórias e traumas que permite aflorar e que ficam disponíveis para elaboração psíquica das raízes da dependência) quanto o efeito farmacológico (neuroplasticidade).

A pergunta que Olson suscita é se, ao supostamente deletar o impacto alucinógeno, a TBG também não arriscaria cortar pela metade o potencial terapêutico antidependência. Restando apenas a modulação bioquímica, centrada no receptor serotoninérgico 5HT2A, o sonho de livrar-se da dependência talvez não se materialize em pessoas.

Araújo conta que, no caso do estudo de seu grupo que mostrou efeito antidepressivo rápido e duradouro da ayahuasca contra depressão, ambos os ingredientes –farmacologia e vivência subjetiva– parecem contribuir para o resultado terapêutico. Além disso, o efeito psicodélico não se resume ao alvo 5HT2A, e substâncias psicoativas atuam sobre vários outros receptores e sistemas, cada uma com um perfil peculiar.

O neurocientista brasileiro aponta, para reforçar seu raciocínio sobre a complexidade dos efeitos, que há mais serotonina espalhada pelo organismo do que no cérebro. No entanto, psicodélicos agem mais sobre a mente do que no restante do corpo.

Nicole Galvão-Coelho, coautora de Araújo na pesquisa sobre depressão, já demonstrou a capacidade da ayahuasca de modular tanto a neuroplasticidade quanto níveis de cortisol (hormônio do estresse) e um efeito anti-inflamatório.

O LSD, por seu lado, tem forte influência sobre a dopamina. Cetamina e escetamina, sobre o glutamato. MDMA, sobre a noradrenalina.

“Efeitos psicodélicos não estão necessariamente associados só com o receptor 5HT2A, é uma simplificação. Existem vários antidepressivos que atuam sobre a serotonina e não provocam experiências visuais”, ressalva Araújo. “Há outras danças por trás dos psicodélicos.”

Argumento parecido apareceu numa série de tuítes do psicólogo Matthew Johnson, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins: “Há um pouco de debate sobre o alvo errado. [Olson] não defende que efeitos subjetivos não possam ser terapêuticos. Provavelmente há múltiplos mecanismos subjacentes à eficácia da terapia psicodélica, e formas de neuroplasticidade podem ser uma delas”.

“Precisamos nos afastar de falsos debates entre experiência/psicologia e biologia, e pensar de maneiras mais nuançadas. A experiência, afinal de contas, tem uma biologia também.”

A antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna na Califórnia, se incomoda com abordagens muito reducionistas da questão: “A ciência procura separar os efeitos e chegar na suposta ‘essência’ da ‘cura’. A busca por uma droga ‘clean’, sem efeitos alucinógenos, deve ser entendida dentro de um cenário maior”, defende.

“Por um lado, uma tentativa moral de eliminar os supostos aspectos alucinógenos da experiência, que são vistos com ‘negativos’ ou ‘errados’. E, por outro, em função de interesses econômicos, isto é, patentear certos achados.”

Labate esteve em 2001 em Camarões para conhecer em profundidade os rituais da iboga. Do ponto de vista das populações tradicionais, de onde essas substâncias provêm, a cura é holística, explica.

“As concepções de enfermidade envolvem não só aspectos físicos, mas a relação dos humanos entre si, e entre humanos e não humanos. A cura advém da comunhão de plantas, que contêm múltiplos alcaloides, e da experiência mística e coletiva.”

 

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Ilusões psicodélicas não são patológicas e podem até fazer enxergar melhor https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/#respond Tue, 08 Dec 2020 01:43:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/FOTOOLHOSidney-Goncalves-Do-Carmo-300x169.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=148 Aborrecido com a conversa interminável, um homem de seus 60 anos deixa o grupo, caminha poucos metros pelo caminho de terra e para debaixo de uma árvore. Faz três horas que tomou cerca de 150 microgramas de LSD –uma dose cheia, mas não heroica, do psicodélico. Seu olhar é atraído para cima, e ele duvida do que vê.

A árvore está viva, viva demais. Claro, toda árvore vive, diz para si próprio, mas é mais que isso. Não há vento. Uma seção do tronco se move de forma lenta e lânguida, como uma serpente enorme. A casca da madeira tem padrões geométricos de amarelo, marrom e verde. Sabe que é uma ilusão, e se alegra com a chance de ver a árvore como se fosse a primeira vez que vê uma.

Passam alguns segundos de embevecimento confuso. A serpente vegetal ganha aos poucos os contornos de uma mulher. Os desenhos geométricos coalescem como estampa de sua blusa. A realidade real se impõe de modo brutal na visão de uma bermuda jeans. O momento mágico se desfaz: ele está, de fato, diante de uma moça que subiu na árvore, uma das companheiras de viagem no sítio da Grande São Paulo. Ri –de si mesmo, da convicção poderosa e fugaz propiciada pela visão.

O que são essas visões mediadas por psicodélicos, afinal? Quais mecanismos psíquicos lhes dão origem? No que elas diferem ou se aproximam das alucinações produzidas não por drogas, mas por transtornos psiquiátricos como os do espectro da esquizofrenia ou por distúrbios neurológicos como certas formas de demência? Como podem os psicodélicos carregar potencial terapêutico, por exemplo para tratar depressão, se seu efeito reproduz sintomas similares aos de graves patologias?

A neurociência ainda não tem repostas completas para essas questões, ainda que venha dando passos decididos nessa direção. O Consórcio Internacional para Pesquisa de Alucinações (ICHR, na sigla em inglês) mapeou o que se sabe sobre a matéria em vários níveis, da farmacologia às imagens funcionais do cérebro e das áreas envolvidas, passando pela fenomenologia, isto é, os relatos de experiências vividas por pessoas que têm visões ou alucinam.

Não seria o caso, aqui, de entrar nos detalhes do artigo publicado, no periódico Schizophrenia Bulletin, por Pantelis Leptourgos e uma penca de colaboradores, com o título “Alucinações sob psicodélicos e no espectro da esquizofrenia: Uma comparação interdisciplinar e multiescalar”. O leitor terá de se contentar com um resumo muito superficial e imperfeito, mas fica a recomendação para enfrentar o estudo original (em inglês).

A primeira semelhança descrita entre os dois tipos de alucinação, o psicodélico e o psiquiátrico, está uma redução na integridade e na estabilidade de redes funcionais do cérebro. Ou seja, uma espécie de relaxamento nos padrões de disparos simultâneos de neurônios em diferentes áreas cerebrais quando a pessoa se encontra em determinados estados (sono, vigília, atenção, introspecção etc.).

Uma rede importante aqui, da qual muito se ouvirá falar neste blog, é a rede de modo padrão (mais conhecida como DMN, na sigla em inglês). Ligada à introspecção, ela normalmente só fica ativa quando silenciam outras redes mobilizadas na realização de tarefas, com atenção voltada para o exterior –é o que se chama de anticorrelação, ou ortogonalidade, um funcionamento mais ou menos excludente que também se enfraquece durante a emergência de alucinações na esquizofrenia e com o uso de alguns psicodélicos, como a psilocibina.

Outra similaridade apontada no artigo é a atribuição às visões do que os autores denominam como forte sentido metafísico. As vozes ouvidas pelo esquizofrênico são percebidas por ele como vozes reais, não fabricações suas. O tronco coberto de desenhos geométricos que se contorce lentamente aparece na viagem psicodélica como revelação da verdadeira essência viva e feminina do vegetal, embora não passe de uma mulher que trepou na árvore.

Há algumas diferenças marcantes, porém. Psicodélicos turbinam disparos principalmente em áreas de córtex sensorial primário, enquanto na psicose a superativação afeta redes associativas. No primeiro caso, são transitórias, desaparecem com intervenção de pensamentos racionais e quando passa o efeito da droga; no segundo, manifestam-se de maneira crônica.

O primeiro estudo a evidenciar a ativação de córtex visual primário por um psicodélico –no caso, ayahuasca– foi realizado por brasileiros e publicado em 2012, no periódico Human Brain Mapping, pelo grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN. O artigo de Leptourgos, incrivelmente, não cita o trabalho pioneiro.

Alucinações e ilusões psicodélicas são predominantemente visuais, em geral geométricas, mas sem perda completa do senso de realidade. Já as psicóticas são comumente auditivas, vozes que o doente não consegue distinguir de vozes reais. Nas duas situações, porém, as visões vêm carregadas de intenso significado.

Leptourgos e colegas consideram alguns modelos teóricos que poderiam explicar o funcionamento normal do cérebro e o que nele se altera no curso de alucinações. Para eles, em ambos os casos ocorrem perturbações do mecanismo computacional identificado como processamento preditivo, vale dizer, das funções cerebrais que mobilizam conteúdos prévios para interpretar o que chega pelos sentidos e decidir o que fazer ou pensar a respeito. Desfeita a perturbação, a árvore-mulher maravilhosa volta a ser uma simples mulher na árvore.

Pense no cérebro como um filtro. Uma cacofonia de dados sensoriais tem de ser processada para ganhar sentido, na forma de hipóteses que vão sendo testadas com base em tudo que fixou na memória do que a pessoa viveu e aprendeu, até que ela ou ele conclua algo a respeito (não necessariamente de modo consciente). A trama do filtro que peneira as associações se compõe das redes de neurônios que se habituaram a disparar juntos para gravar o que se viveu e aprendeu de forma significativa.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Outro artigo esclarecedor sobre o tema, “Unificando teorias sobre efeitos de drogas psicodélicas”, foi apresentado em 2018 por Link Swanson, da Universidade de Minnesota, na revista Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology. O modelo do processamento preditivo, mostra Swanson, é apenas uma de várias construções teóricas fundadas na metáfora do filtro –uma história de mais de um século de tentativas de explicação da consciência e suas alterações que vão sendo aperfeiçoadas e abarcam de William James a Henri Bergson e de Sigmund Freud a Aldous Huxley.

O cérebro entrópico proposto por Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, está entre elas. Nessa concepção, a mente em condições normais se encontra num equilíbrio ótimo entre ordem e desordem, com redes como a DMN flexíveis o bastante para permitir adaptação do sujeito a novas circunstâncias e estáveis o suficiente para manter a unidade do self (ou do ego, como diria Freud).

Esse tipo de modelo permite também ir além do paradoxo na oposição entre o terapêutico e o patológico que as alterações visuais colocam para as substâncias psicodélicas, que por muito tempo foram chamadas também de drogas psicotomiméticas, pois induziriam uma imitação de estados psicóticos. Esse paradigma foi abandonado, em grande parte, a partir dos anos 1960, quando as diferenças entre a alteração da consciência nas “viagens” psicodélicas e o delírio psicótico foram ficando evidentes e as terapias psicodélicas ganharam espaço.

A explicação envolvendo a DMN sugere que, em transtornos como a depressão, a rede como que entra em parafuso, entregue à rigidez e repetição de pensamentos negativos, por assim dizer um excesso de ordem que culmina na ruminação incessante. O potencial terapêutico dos psicodélicos adviria, então, justamente de sua capacidade de relaxar a DMN, vale dizer, de reduzir sua integridade e estabilidade (aumentando a entropia), ao mesmo tempo em que arrefece a anticorrelação dela com redes mais voltadas para execução de tarefas e atenção voltada ao exterior.

Muito simplificadamente, uma atividade cerebral menos balizada pela ordem permitiria a emergência ou construção de novos percursos mentais. Caminhos alternativos, lampejos incomuns, hipóteses mais ousadas que não são descartadas de pronto como irrelevantes, deixando assim de sucumbir ao filtro implacável das memórias marcadas a ferro e fogo na psique, não raro por traumas incandescentes. Abrem-se frestas por entre as quais, como nas alucinações lisérgicas, interpretações impensáveis podem aparecer banhadas na luz da realidade.

Há uma mulher na árvore, e é verdade. A mente capaz de entender que há mais de um sentido nessa afirmação e de discernir o que é emocionante do que é apenas real e, mais, que não há contradição necessária entre uma coisa e outra –eis a mente de uma pessoa com mais chance de ser menos infeliz.

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