Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Sete erros e sete acertos com psicodélicos na série de TV ‘Nove Desconhecidos’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/#respond Sun, 26 Sep 2021 21:01:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/9ddesconhecidosNicole-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=652 “Só os psicodélicos (se) salvam” seria um resumo apropriado, ainda que enigmático, para a série da Hulu “Nove Desconhecidos”, em cartaz na plataforma Amazon Prime Video. Até Nicole Kidman, no papel de Masha, sai chamuscada da narrativa canhestra sobre a renascença dessas drogas para a medicina.

Os nove desconhecidos são clientes que chegam para dez dias de “transformação” no spa Tranquillum, comandado pela guru russa com apenas três auxiliares (Yao, Delilah e Glory). Zero faxineiros, cozinheiros e camareiros, mas pululam os erros, dos quais se destacarão os sete mais gritantes.

Antes, um pouco de contexto. Existem, sim, spas psicodélicos, por exemplo na Jamaica e na Costa Rica, assim como clínicas sérias no Brasil e turismo xamânico no Peru.

Não é por causa dessa indústria marginal, porém, que se ouve falar tanto das substâncias. E, sim, porque a ciência está a ponto de ressuscitá-las para tratar transtornos mentais, como se pôde acompanhar aqui ao longo dos últimos 12 meses.

É muito provável que em 2023 o MDMA (ecstasy, bala, Michael Douglas) termine autorizado nos EUA para psicoterapia para estresse pós-traumático. Depois deverá ser a vez da psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos” (gênero Psilocybe), em investigação para condições como depressão, ansiedade, TOC, anorexia e outros transtornos.

Agora, os sete erros (se quiser evitar spoilers, pare por aqui):

  1. Ausência de consentimento – Masha dá psilocibina misturada aos smoothies servidos ao longo do di sem o conhecimento dos hóspedes. Até o mais maluco dos gurus psicodélicos evitaria esse abuso, pois em qualquer país daria cadeia mesmo que não se tratasse de drogas psicoativas. A série não deixa claro nem se a personagem de Kidman está qualificada para ser terapeuta.
  1. Participante desequilibrado – O estafe de Tranquillum pesquisou e escolheu a dedo os nove clientes, o que torna incompreensível incluir Carmel, uma mulher transtornada, com passado violento e biografia cruzada com Masha. Em testes clínicos de psicodélicos, qualquer tendência ou histórico de psicose da pessoa ou na família próxima serve como critério de exclusão. Como se pode ver na TV, a mancada quase sai caro para a guru.
  1. Dosagens seguidas – O pessoal do spa fala várias vezes num protocolo nunca detalhado, mas fica evidente que as doses estão sendo ministradas todos os dias, ou quase. Ninguém desperdiçaria psilocibina assim, pois, como os psicodélicos clássicos LSD e mescalina, a repetição implicaria perda de efeito pela rápida tolerância que desencadeiam.
  1. Mistura de psicodélicos – Em certa altura Masha, Yao e Delilah discutem a antecipação do protocolo com inclusão de LSD no coquetel. Por mais que alguns adeptos gostem de misturar compostos psicoativos ao mesmo tempo (já vi gente usando ayahuasca, rapé, maconha e sananga na mesma noite, como narro no livro “Psiconautas”), nenhum terapeuta responsável seguiria por aí. Os efeitos podem se compor de maneira imprevisível e fazer mais mal do que bem (sem falar na tolerância cruzada de LSD e cogumelos, que agem sobre os mesmos receptores de serotonina).
  1. Alucinação coletiva – É a parte mais dura de engolir no drama da Hulu. A família composta por Napoleon Marconi, sua mulher Heather e a filha Zoe quer livrar-se do trauma pelo suicídio de Zach, gêmeo de Zoe, e Masha os convence de que uma dose alta de LSD (ou psilocibina, não fica de todo claro) trará o rapaz de volta. Já seria fantasioso além da conta, mas os três acabam tendo a mesma alucinação, participando de diálogo a quatro com o defunto.
Zoe (Grace van Patten) e Masha (Nicole Kidman) em “Nove Desconhecidos” (Foto: Dvilgação/Amazon Prime)

É verdade que muito da cultura psicodélica bordeja com o misticismo e que alguns rituais tradicionais são descritos como acesso ao mundo dos mortos. O enredo parece atribuir a Zoe um poder mediúnico amplificado pelo ácido, o bastante para invocar a aparição também para os pais, mas o abraço simultâneo dos três com o suicida resulta numa das cenas menos convincentes e mais constrangedoras.

  1. Envolvimento da terapeuta – Para piorar as coisas, Masha resolve tomar a droga junto com os Marconis. Supostamente, no esforço de convencê-los da segurança do composto (mas ela esconde que seu objetivo é conjurar outro morto). Qualquer manual sobre uso seguro de psicodélicos contraindicaria essa prática, mesmo que não se tratasse de um terapeuta.

Sempre se recomenda haver uma pessoa sóbria por perto, para eventuais emergências como viagens ruins, surtos e mal-estares. Delilah fugiu para chamar a polícia, pois acha que Masha passou dos limites. Yao está ocupado com Carmel. Glory se dedica a tourear o restante do grupo revoltado. Não sobrou nenhum adulto na sala.

  1. Experiência artificial de quase-morte – Por orientação de Masha, que já se encontra para lá de Marrakech, Glory tranca os hóspedes remanescentes num salão preparado para simular um incêndio e levá-los a acreditar que vão morrer. A ideia tresloucada é que a proximidade do desfecho final os force a considerar o que de fato importa na vida, blá-blá-blá.

Ninguém duvida de que uma vivência terminal possa ser transformadora para muita gente. Mas, de novo, soa despropositado que o efeito seja alcançado ao mesmo tempo e na mesma situação fortuita, coletivamente, por meia dúzia de pessoas. Além disso, se a série se baseia no poder dos psicodélicos, por que o artifício de recorrer a um recinto para suscitar a experiência? Faria mais sentido utilizar de forma controlada a 5-MeO-DMT, substância de forte e curto impacto comumente descrito como completa dissolução do ego.

Masha até menciona de passagem os termos técnicos “set” e “setting”, aludindo às disposições mentais do psiconauta e as condições do ambiente consideradas fundamentais para uma boa viagem, mas não passa de mesura inconsequente à melhor ciência psicodélica. Não há preparação digna do nome para os participantes sobre o que os espera, muito menos integração dos conteúdos psíquicos e emocionais que vão aflorando. Não espanta que tudo se encaminhe para um caos alarmante.

No oitavo e último capítulo, contudo, como em qualquer novela mequetrefe de TV, tudo se resolve. É pena que o passe de mágica obscureça tudo de verdadeiro que a série captou de fiel sobre a experiência psicodélica. Seria possível escrever uma apreciação inteira com, digamos, sete acertos de “Nove Desconhecidos”, por exemplo:

Sim, com psicodélicos é comum a pessoa aceitar melhor a própria mortalidade. Idem com traumas de infância, perda de pessoas próximas, desilusões amorosas. Como diz Zach, tudo que se vê sob efeito dessas drogas é irreal, está só na cabeça de quem toma e não no mundo exterior.

A empatia cresce de modo notável. Viagens ruins acontecem, mas são raras e podem ter rendimento terapêutico. Casais se tornam mais próximos, o sexo melhora. O psiconauta fica propenso a relevar defeitos, remorsos e más ações, em si e nos outros.

Essas sete coisas corretas estão lá no drama televisivo, o que lhe confere certo aspecto positivo. Também seria possível enxergar a série como uma espécie de denúncia dos riscos inerentes à esfera meio clandestina de curadores, pseudoterapeutas e xamãs improvisados que receitam psicodélicos como se fossem água benta. Não são.

Essa leitura benevolente de “Nove Desconhecidos” se esboroa no capítulo final. O caos não se consuma por força de suposto poder superior dos psicodélicos, que prevalece mesmo após a chegada da polícia. Até Masha se safa, misteriosamente, dos crimes patentes que cometeu em nome da força dessas substâncias.

Só os psicodélicos (se) salvam da série problemática. E com ela só se reforça o excesso de expectativas com eles, como se fossem a panaceia final, a salvação da humanidade, a bala de prata contra o sofrimento do mundo pós-pandemia –e não substâncias de trabalho, úteis para psicoterapia e autoconhecimento, mas que não trazem nada para quem está só em busca de soluções fáceis.

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A Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa nesta terça-feira (28 de setembro). Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

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Experimento brasileiro mapeia curas e loucuras na terra incógnita do LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/#respond Tue, 13 Jul 2021 02:15:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/BISPOROSARIOfolhapressRicardoBorges-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Quem já tomou LSD conhece bem a mistura de clareza e perturbação mental induzida pela droga psicodélica. Graças a um grupo brasileiro de pesquisa com epicentro na Unicamp o mapa desse paradoxo ganha mais detalhes, contribuindo para esclarecer como uma experiência que tem algo de psicótica pode também ser terapêutica.

O trabalho, obtido com exclusividade pelo blog, sai publicado nesta terça-feira (13) no periódico Psychological Medicine sob o título “LSD, Loucura e Cura: Experiências Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutico”. É o primeiro estudo no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, quando se interromperam pesquisas feitas por exemplo na USP.

Participaram do experimento de Isabel Wießner, psicóloga alemã que faz doutorado na universidade paulista, 24 adultos com contato anterior com a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na abreviação original do alemão). O orientador de Isabel na Unicamp, psiquiatra Luís Fernando Tófoli, figura como autor sênior do artigo.

Cada pessoa tomou 50 microgramas da droga numa sessão e placebo na outra, separadas por 14 dias, sem saber em qual delas ingeriu o quê. Ao longo de oito horas, fazia testes e preenchia questionários na presença da psicóloga e de um psiquiatra, Marcelo Falchi, que também desconheciam qual substância o participante havia ingerido. No dia seguinte de cada sessão, mais uma bateria com duas horas de testes.

Os outros autores são Fernanda Palhano-Fontes e Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Amanda Feilding, da Fundação Beckley (Reino Unido), uma condessa britânica que ajudou a financiar o estudo.

A ferramenta para destrinchar o componente loucura do LSD foi um questionário que mede saliência aberrante, a tendência a destacar e emprestar sentido especial a objetos e pensamentos que normalmente não receberiam a mesma atenção. É o que psiquiatras chamam de atribuição patológica de significado, uma distorção cognitiva que a viagem psicodélica compartilha com estágios iniciais de psicose.

Mesmo trabalhando com uma dose baixa de LSD, chamada de “psicolítica” nos tempos pré-proibição (décadas de 1950/60) em que a droga era empregada em psicoterapia, o experimento confirmou aumento da saliência aberrante na comparação com o dia de placebo. O questionário se compõe de perguntas sobre a pessoa ter experimentado emoções agudas relacionadas com coisas ou ideias, ou a sensação de que algo importante está para acontecer, a iminência de compreender significados elusivos.

(Ilustração: Rodrigo Visca)

Outros testes também indicaram as alterações lisérgicas da percepção características do estado psicodélico, sobretudo visuais. Esta é uma diferença marcante com as alucinações de esquizofrênicos crônicos, em que predomina o sentido da audição (“ouvir vozes”) e a convicção de que se trata de manifestação real, engendrando o que se chama de ideia delirante.

“Os pesquisadores viram que, de fato, nos voluntários o LSD foi capaz de provocar uma diferença nas respostas, na escala de saliência aberrante, quando comparado ao placebo. Tal observação pode contribuir para explicar o mecanismo pelo qual pessoas com depressão ou sintomas de traumas passados mudaram suas crenças e atitudes após experiência pontuais ou repetidas de psicodélicos”, diz André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Negrão não participou do estudo, mas integrou a banca de qualificação de Isabel para o doutorado. Em sua avaliação, “o artigo é mais um atestado da produtividade e da sofisticação dos estudos feitos por pesquisadores dos dois centros, Unicamp e Natal.”

O componente terapêutico foi escrutinado no estudo por meio do conceito de sugestionabilidade. De olhos fechados, o participante era convidado a imaginar tão fielmente quanto conseguisse situações como o peso de livros empilhados sobre uma das mãos, ou o cheiro e sabor de uma fruta, e depois avaliava quão realista havia sido a sensação.

Como seria de esperar, as diferenças entre o estado alterado e o estado placebo foram estatisticamente significativas. Esse fenômeno pode ser útil em psicoterapia porque facilitaria a superação de barreiras, na medida em que o paciente se mostra mais inclinado a acatar sugestões para se aprofundar em cenas, pessoas ou temas marcantes ou dolorosos de sua biografia, por exemplo buscando imagens que possam representar os sentimentos associados.

“A sugestão é um processo fundamental na hipnoterapia, em que o paciente entra em estado de transe e consegue experimentar de modo mais fácil e vívido o que o terapeuta sugere, por exemplo visualizar uma relação difícil com a mãe, criar um símbolo para concretizar essa relação e trabalhar com esse símbolo”, exemplifica Isabel, que pesquisou hipnose para tratamento de dor em seu mestrado na Universidade de Jena.

Ela queria investigar outros estados alterados de consciência desencadeados por substâncias com potencial curativo, mas psicodélicos são proibidos na Alemanha. Depois de fazer um curso com Tófoli sobre ayahuasca, chá psicoativo legalizado no Brasil para uso religioso, decidiu-se por um doutorado na Unicamp.

A pesquisadora buscou também possíveis correlações entre a intensidade da experiência psicodélica (como distorções nos sentidos de tempo e espaço) e os resultados obtidos com as diferentes escalas empregadas no estudo, incluindo as que medem aspectos “místicos” (dissolução do ego, sentimento de unidade com uma totalidade maior que o indivíduo, ou o que algumas descrevem como participação no divino). Cabe aqui lembrar o óbvio: correlação não implica causalidade, mas pode ser uma pista.

Encontraram-se correlações fortes entre o grau relatado do estado psicodélico e saliência aberrante, mas não com sugestionabilidade. Ou seja, embora a capacidade de sugestionar-se tenha aumentado, assim como no caso da saliência (a medida mais associada com o caráter subjetivo “místico”), os dois incrementos não ocorreram necessária e proporcionalmente nos mesmos indivíduos, nem se detectou paralelismo estatístico significativo no grupo.

“O fato de experiências místicas terem importância em diversas áreas, da ‘loucura’ (experiências psicóticas) até a ‘cura’ (efeito terapêutico) indica que essas experiências possivelmente têm papel importante na saúde mental”, conjetura Isabel. Com efeito, a correlação entre o nível de qualidade “mística” na viagem psicodélica e o benefício terapêutico foi apresentada num trabalho célebre de Roland Griffiths em 2006.

“Um candidato ou candidata a terapeuta psicodélico deveria estar ciente de que os psicodélicos parecem ser capazes de induzir os dois lados (‘cura’ e ‘locura’) que parecem ter uma faceta de experiência mística em comum, estar preparado para ajudar o paciente a aceitar os dois lados e tentar promover e guiar a conexão entre esses dois aspectos para entender e melhorar a saúde mental.”

Para Tófoli, “a ideia não é criar uma ‘psicose artificial’ para estudar a esquizofrenia (que apresenta muitos outros sintomas além daqueles apresentados pelo LSD), e sim estudar um estado ‘caótico’, de aumento de entropia, que tem algumas semelhanças com a psicose”. Produzir uma psicose artificial em ambiente controlado  era o objetivo de pesquisadores como Clóvis Martins, cuja tese de livre docência na USP em 1964 se enquadrava no chamado paradigma “psicotomimético”.

“No nosso caso, estamos chamando a atenção da correlação da saliência aberrante com experiências que estão associadas com respostas a sintomas mentais, especificamente no caso das experiências místicas.”

O psiquiatra chama atenção para a necessidade de, no eventual uso do LSD para psicoterapia, dedicar atenção crucial para a dose, a cautela do terapeuta ao manejar a sugestionabilidade, a disposição mental do paciente (set) e as condições em que a sessão de dosagem acontecer (setting): ao invés de patologizar o que os psicodélicos provocam, propõe-se que o estado de entropia aumentado pode, desde que em set e setting adequados, desencadear experiências potencialmente positivas.

“Estar atento ao que se sugere em um futuro uso terapêutico de doses psicolíticas de LSD é muito importante, assim como acolher eventuais experiências místicas e de atribuição especial de significados –por vezes, inclusive, precisando ancorar alguma ‘viagem exagerada’ do paciente, principalmente em sessões de integração.”

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Tófoli lembra que uma das indicações do Delysid (nome comercial do LSD distribuído pelo laboratório suíço Sandoz até os anos 1960) era justamente indicá-lo para que psiquiatras e terapeutas o tomassem para entender melhor os estados psicóticos.

“Embora pouco discutida atualmente, eu considero essa indicação extremamente válida, desde que os profissionais em questão não estejam em grupos de risco, ou seja, não tenham tendências ou histórico de psicose. Pessoalmente, a experiência com psicodélicos certamente me abriu os olhos para entender melhor e desenvolver maior empatia pelo que passam os pacientes psicóticos.”

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Este blog está precisando de férias. Volta sem falta em agosto.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)

 

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USP de Ribeirão testa ayahuasca para medo de falar em público e fobia social https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/28/usp-de-ribeirao-testa-ayahuasca-para-medo-de-falar-em-publico-e-fobia-social/#respond Mon, 28 Jun 2021 15:50:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/FobiaSocialGettyImages-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Não são poucas as pessoas que tremem, suam e chegam a ter dor de barriga ou vontade de urinar quando precisam se apresentar diante de uma plateia. Para 2% a 7% da população de cada país, esse medo cresce a ponto de impedir qualquer atividade pública, com óbvio prejuízo na escola ou no trabalho, mas a ayahuasca pode dar-lhes alguma ajuda.

Ayahuasca? Sim, propõe estudo recém-publicado de Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). “Ayahuasca melhora autopercepção de desempenho discursivo em participantes com transtorno de ansiedade social”, afirma já no título artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology.

Transtorno de ansiedade social (TAS) e fobia social são nomes pomposos dados por psiquiatras para o famigerado medo de falar em público quando ele se torna paralisante, irracional. É o tipo de ansiedade mais comum, o terceiro transtorno psiquiátrico mais frequente, embora subnotificado (menos de 6% dos casos são diagnosticados), e costuma associar-se com outros distúrbios, como depressão e abuso de álcool.

Antidepressivos e psicoterapia podem ajudar, mas a maioria das pessoas com o problema segue tropeçando pela vida, até que algumas terminam abandonando a escola ou perdendo o emprego. Estima-se que até 25% dos estudantes universitários sofram com isso.

A ayahuasca foi escolhida por ser uma substância psicodélica muito estudada no grupo de Rafael dos Santos e ter conhecido efeito benéfico sobre depressão e ansiedade. O chá sacramentado em rituais de Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) leva folhas do arbusto chacrona, fonte do alcaloide dimetiltriptamina (DMT), e o cipó mariri ou jagube, fonte de compostos que inibem a decomposição da DMT.

Depois de recrutar 894 possíveis voluntários entre alunos da USP de Ribeirão, o grupo de pesquisa chefiado pelo psiquiatra Jaime Hallak terminou com apenas 17 que satisfizeram todos os requisitos para inclusão na pesquisa e compareceram para entrevistas e questionários padronizados de diagnóstico.

Cinco horas após tomar –pela primeira vez na vida– uma dose baixa de ayahuasca ou placebo (2 mililitros por quilo de peso), os voluntários tinham de fazer apresentação com tema pré-definido diante de uma tela, enquanto eram filmados, como numa conferência por zoom.

Antes e depois da experiência simulando a fala em público, precisavam preencher questionários para determinar o grau de ansiedade e autopercepção negativa (desconfiança sobre a própria capacidade, que contribui para piorar o desempenho).

Uma das limitações do estudo esteve em que os estudantes selecionados apresentavam níveis relativamente baixos de ansiedade antes mesmo do experimento. Talvez por isso os pesquisadores não tenham conseguido detectar diminuições significativas nos escores padronizados, embora os participantes tenham relatado sentir calma maior que usual durante o discurso.

“Não observamos efeitos significativos nas escalas de ansiedade, mas sim nos relatos e nas observações dos pesquisadores”, admite Santos. “A ausência de resultados significativos pode ser porque essas pessoas não tinham níveis elevados de ansiedade, mesmo preenchendo o diagnóstico, ou pela amostra pequena.”

Por outro lado, o experimento revelou que os voluntários melhoraram significativamente a autopercepção. Ou seja, mostraram-se menos desconfiadas quanto à capacidade de desempenhar adequadamente um papel social.

“Os pesquisadores aliaram o histórico internacional dessa equipe em avaliar o potencial terapêutico da ayahuasca nas pessoas e fizeram uso de um teste bem ‘calibrado’ para avaliar sua intensidade nos cuidados de pessoas com fobia social”, avalia o psiquiatra André Brooking Negrão, que não participou do estudo e investiga psicodélicos noutra unidade da USP, o paulistano Instituto de Psiquiatria.

“Os resultados são promissores porque mostraram que esse tipo de ensaio clínico é factível e, especificamente para pessoas com problemas associados à fobia social, pode ser um recurso valioso no futuro. Os pesquisadores terão agora o desafio de expandir esta metodologia para amostras mais numerosas.”

Concorda com Negrão a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autora de um pioneiro teste clínico duplo cego de ayahuasca para depressão: “O estudo é interessante por avaliar a ayahuasca em uma condição como a fobia social, para qual não há um tratamento farmacológico específico, e mostrando uma melhora em como os indivíduos que beberam ayahuasca percebem a performance deles nessa tarefa de falar em público”.

Dilema moral à frente

A fobia social vem, assim, somar-se a uma longa lista de condições que, segundo estudos ainda experimentais, poderiam eventualmente ser tratadas com psicodélicos. Cabem nela depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade, alguns transtornos do espectro autista, dependência química, anorexia, síndrome pós-concussional (danos cerebrais em boxeadores e jogadores de hóquei) e até Alzheimer, AVC, enxaqueca ou prevenção de suicídios.

Além disso, vários desses problemas de saúde mental são objeto de ensaios clínicos por diferentes substâncias psicodélicas. Por exemplo a depressão, sobre a qual há testes em andamento com psilocibina de cogumelos, DMT de ayahuasca, 5-MeO-DMT de veneno de sapo, LSD e mescalina.

Tamanha inespecificidade seria decorrente do modo básico de atuação desses psicodélicos clássicos. Todos eles são moléculas capazes de se encaixar no receptor de células cerebrais para o neurotransmissor serotonina.

Essa via bioquímica parece relaxar a rede de modo padrão (DMN, em inglês) hiperativa na ruminação (predominância circular de pensamentos negativos). Também seria capaz de aumentar a empatia e a socialidade, dissolver a ditadura do ego e estimular tanto a neuroplasticidade (formação de novas conexões entre neurônios) quanto processos anti-inflamatórios no cérebro.

Não deixa de ser um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico. A multiplicação combinatória de alvos e drogas pode suscitar entusiasmo injustificado para o estágio preliminar das pesquisas, dado que só o MDMA alcançou a fase 3 em testes clínicos e ainda carece de aprovação como adjuvante de psicoterapia. A imensa maioria dos estudos envolve poucas dezenas de participantes, como esse da USP de Ribeirão.

Além disso, não é pequeno o risco de que a imagem de panaceia para todos os males do mundo mental desperte reação conservadora similar à que virtualmente baniu os psicodélicos das farmácias e das pesquisas acadêmicas após sua adoção pelo movimento hippie e contestador da contracultura. Faltam ainda anos de pesquisa a acumular dados suficientes para ancorar os tratamentos na melhor ciência e romper preconceitos de órgãos reguladores, médicos e terapeutas.

Outro obstáculo no caminho de quem se filia à tradição clássica da psicoterapia mediada por psicodélicos é a proposta por alguns neurocientistas de livrar as pesquisas justamente da psicodelia, da psicoterapia ou de ambas. Sua ideia é desenvolver moléculas similares com poder de desarmar a DMN e a ruminação, mas que não desencadeiem estados alterados de consciência, as “viagens”.

O modelo, nesse caso, seria o dos antidepressivos surgidos a partir dos anos 1980, como a classe de inibidores seletivos de receptação de serotonina (ISRS) inaugurada pela fluoxetina (Prozac). Pílulas para as pessoas tomarem todos os dias, no intuito de se livrarem da depressão sem laboriosos processos de psicoterapia, mas que a realidade mostrou não funcionar para pelo menos um terço dos deprimidos graves.

(Reprodução)

A controvérsia sobre “psicodélicos não-psicodélicos” já apareceu no blog (aqui, aqui e aqui) e ganhou destaque há poucos dias na revista Forbes.

A reportagem de Will Yakowicz apresenta o trabalho de Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, para escrutinar incontáveis moléculas aparentadas à DMT &cia. “O objetivo é encontrar compostos que sejam terapêuticos e não psicodélicos”, disse o neurofarmacologista a Yakowicz.

Roth está abastecido com US$ 27 milhões da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa, em inglês) dos EUA para desenvolver uma nova geração de medicamentos candidatos a reduzir depressão e TEPT com a rapidez dos psicodélicos, em comparação com os lentos antidepressivos disponíveis, mas sem alucinações ou dissolução do ego e sem os efeitos adversos dos ISRS (como insônia, zonzeiras e redução da libido).

O financiamento corresponde ao valor aproximado que a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) levou muitos anos a levantar para conseguir empreender estudos de fase 3 com MDMA (ecstasy) contra TEPT. Esses testes clínicos devem render autorização para uso geral da droga como adjuvante em psicoterapia, e não para uso contínuo, até 2023.

A aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA) é a grande esperança de tratamento para veteranos de guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Em 2016, havia 868 mil ex-combatentes recebendo benefícios por incapacidade provocada por TEPT, ao custo de US$ 17 bilhões anuais aos cofres americanos.

Entende-se, assim, o interesse do Departamento de Defesa no trabalho de Roth, para desgosto do ex-hippie Rick Doblin, fundador da Maps. A reportagem da Forbes registra todo seu descontentamento: “A tragédia que vejo é que a Darpa poderia ter um vencedor agora mesmo com MDMA para TEPT, mas está tentando dizer ‘dane-se a experiência psicodélica e vamos investir em psicodélicos não-psicodélicos’ enquanto 20 veteranos por dia estão se  matando”.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)
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Hunter Biden usou veneno de sapo e ibogaína contra dependência de crack https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/#respond Thu, 27 May 2021 21:35:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/HunterBidenTomBrennerReuters-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=490 Não li a autobiografia de Hunter Biden, filho de Joe Biden, intitulada “Beautiful Things” (coisas bonitas); satisfiz-me com a descrição de Lúcia Guimarães na Folha. Aí topei com a notícia resumida no título acima e vi que precisaria escrever sobre ela (a notícia, não a autobiografia).

Não era desconhecido que Hunter atravessou 51 anos de vida com problemas de álcool e cocaína. No livro, ele aprofunda a questão para revelar que, na busca para interromper a dependência, recorreu a terapias psicodélicas, como narra David Carpenter no site Lucid News (em inglês).

Atente o leitor para o significado disso: o filho do presidente dos Estados Unidos e pivô do escândalo que Donald Trump tentou armar em torno do oponente era não só usuário de drogas como recorreu a duas outras substâncias proscritas em seu país, 5-MeO-DMT e ibogaína, para tentar livrar-se do abuso que ameaçava destruir sua vida.

Que Hunter se sinta à vontade para admitir isso por escrito é um sinal claro de que os psicodélicos deixaram de ser tabu. Se o fez no best seller, é porque a neurociência e outro livro muito vendido, “Como Mudar sua Mente”, de Michael Pollan, tinham aberto o caminho para tornar público a renascimento psicodélico.

Caso tivesse sido detido nos EUA com uma das substâncias, Hunter poderia ser condenado a 5 ou 10 anos de prisão. Mas ele não correu tal risco por ter procurado tratamento numa clínica do México, onde a droga 5-MeO-DMT não é regulamentada.

A primeira terapia foi com ibogaína, composto obtido da casca da raiz de uma planta africana, a Tabernanthe iboga. Sob o efeito onírico da droga, que pode durar várias horas, Hunter viu sua vida passar como se fosse uma apresentação de slides.

Depois, como parte do processo de cura que lhe propiciou mais de um ano de abstinência, o filho do presidente fumou 5-MeO-DMT, obtida da secreção das glândulas do sapo-do-deserto-de-sonora (Bufo alvarius, ou Incilius alvarius). A viagem dura 10 ou 15 minutos, mas já foi descrita por Pollan como decolar atado ao lado de fora de um foguete.

Sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius ou Incilius alvarius), do qual se obtém o psicodélico 5-MeO-DMT (Holger Krisp/Creative Commons)

“Sei que soa maluco”, escreve Hunter na autobiografia. “No entanto, o que quer que [a droga] tenha feito ou não, a experiência destravou sentimentos e feridas que eu tinha enterrado fundo por tempo demais. Serviu como um bálsamo.”

“Foi uma experiência profunda. [O veneno do sapo] me conectou, de modo vívido e renovado, a todas as pessoas em minha vida, vivas ou mortas. Senti como se estivesse vendo toda a existência de uma vez –e como algo único.”

Não terá sido a primeira vez em que se alcança sobriedade após uma vivência transformadora que muitos descrevem como mística. A sensação de participar da unidade do cosmo é elemento recorrente em relatos de viagens psicodélicas intensas, também chamada de dissolução do ego por quem prefere evitar os subtons espiritualistas.

O elo do misticismo psicodélico com a superação da dependência química remonta às origens da própria organização Alcoólicos Anônimos, como anota Carpenter. O fundador da AA Bill Wilson chegou a experimentar LSD, em 1956, e a recomendá-lo para frequentadores por seu poder de desencadear transformações espirituais favorecedoras da abstinência.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

A informação se encontra numa carta que Bill W. remeteu, em 1961, a ninguém menos que o psicólogo suíço Carl Jung. É o que conta Don Lattin (autor do ótimo livro “The Harvard Psychedelic Club”) em outra matéria de Lucid News: “Alguns de meus amigos da AA e eu tomamos o material [LSD] frequentemente e com muito proveito”, escreveu Wilson a Jung. Relatou que a droga deflagrava “grande alargamento e aprofundamento e elevação da consciência”.

O LSD teve farta distribuição como medicamento pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960, sob o nome Delysid. O ácido lisérgico foi usado contra alcoolismo e como apoio para psicoterapia, inclusive no Brasil.

Só acabou proibido nos EUA, e em seguida no mundo, depois de cair nas graças dos hippies e contestadores reunidos no vagalhão da contracultura. O renascimento dos psicodélicos para a ciência e a psiquiatria demorou quatro décadas para acontecer, e a confissão de Hunter Biden oferece indício eloquente de que parece ter voltado para ficar.

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Psicodélicos enfrentam falso dilema farmacologia X autoconhecimento https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/#respond Sun, 28 Mar 2021 19:50:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/PORTAO2WikicommonsMarcinSzala-234x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=388 A popularidade acadêmica dos psicodélicos só faz crescer. O periódico JAMA Psychiatry, ao fazer um balanço dos 110 artigos de pesquisa que aceitou publicar entre os 2.190 recebidos em 2020, destacou um trabalho da Universidade Johns Hopkins (JHU) sobre psilocibina e depressão como um dos três textos mais lidos do ano.

Os outros dois versavam sobre saúde mental em tempos de Covid-19, um deles sobre suicídios. O artigo sobre psicodélicos não incluía a pandemia no título ou no resumo, largando mais atrás, portanto, na competição pelo interesse de especialistas.

Tamanho destaque só ressalta a visibilidade que o tema ganhou em anos recentes –aí incluído o cabo-de-guerra entre quem vê no renascimento psicodélico uma oportunidade bilionária para a indústria farmacêutica e os que nele enxergam a reversão da voga proibicionista que impediu, por quatro décadas, o acesso a fontes de bem-estar conhecidas há milênios.

A revista figura entre as de maior impacto no ramo da psiquiatria; os artigos que publica terminam citados em média por 17,5 outros estudos (dado de 2019). O estudo da JHU foi visto no ano passado por 118 mil interessados, e nestes primeiros meses de 2021 já somou mais 63 mil leitores, totalizando 181 mil. Em menos de cinco meses, já foi citado 11 vezes.

(Reprodução)

Toda essa atenção deriva de dois fatores. O primeiro está no fato de que grande parcela das pessoas que sofrem com transtornos mentais (depressão, estresse, ansiedade, dependência química etc.) não encontram alívio nas terapias farmacológicas disponíveis, como antidepressivos. Psiquiatras e pacientes precisam desesperadamente de alternativas.

O outro componente do interesse em alta decorre do enorme mercado que esses desassistidos representam. Já se estimou que possa ultrapassar US$ 400 bilhões anuais (R$ 2,3 trilhões).

Daí a corrida de pesquisadores e empresários investidores para serem os primeiros a ocupar espaço no novo território psicodélico. Seus veículos preferidos para conquistar o terreno sem dono são patentes e o reconhecimento por agências reguladoras, que abririam as portas para remuneração de tratamentos por planos de saúde privados ou públicos.

Nas duas últimas semanas, a controversa empresa britânica Compass Pathways obteve mais duas patentes nos Estados Unidos para sua versão sintética (COMP360) da psilocibina de cogumelos “mágicos” usada no tratamento de formas graves de depressão. A companhia já detinha uma patente, fonte do temor de que ela venha dificultar aplicações semelhantes do psicoativo dos fungos Psilocybe.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Essa forma de enquadrar o renascimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização farmacológica dos distúrbios mentais. Todo e qualquer transtorno, visto dessa perspectiva, decorreria de falta ou excesso de substâncias no cérebro, como o neurotransmissor serotonina (não por acaso um dos mais afetados pelos psicodélicos clássicos como psilocibina, LSD, mescalina e DMT).

Tratar esses transtornos, então, seria questão apenas de interferir na bioquímica cerebral desbalanceada. Há defensores até de que se usem microdoses ou compostos sintéticos que atuem sobre os mesmos receptores neuronais mas não desencadeiem efeito psicodélico completo, pondo em dúvida o papel terapêutico de alucinações, distorções na percepção de tempo e espaço, experiências místicas e a chamada dissolução do ego.

Um representante destacado dessa corrente mais reducionista é David E. Olson, da Universidade da Califórnia em Davis. Ele fundou a empresa Delix Therapeutics, que tem por lema “Reconectar o Cérebro para Curar a Mente” e se propõe a “aplicar as ferramentas do desenvolvimento farmacêutico a algumas das terapias mais antigas da natureza, os psicodélicos”.

Olson assina o editorial de um número inteiramente dedicado a psicodélicos do periódico ACS Pharmacology & Translational Science, da Sociedade Americana de Química. O título é “A Promessa da Ciência Psicodélica”. A edição especial promete “expor a incrível gama de pesquisas sendo feitas para elucidar como os psicodélicos impactam a função cerebral –estudos que abrangem os níveis molecular, celular e organísmico”.

Há uma outra vertente de pesquisa que, mesmo não abrindo mão das ferramentas analíticas da biomedicina contemporânea, tampouco desdenha do saber acumulado por xamãs, psiconautas, terapeutas pré- ou pós-proibicionistas e condutores de testes clínicos de psicoterapia assistida por psicodélicos. Mais especificamente, gente que respeita a importância do set (disposição ou propósito mental) e do setting (situação em que se dá a viagem) para o eventual resultado terapêutico.

Não se trata de engolir uma pílula e esperar o resultado do feitiço bioquímico sobre os neurônios. Nos estudos experimentais mais próximos de obter aprovação de reguladores com a força da FDA (agência americana de fármacos), como no caso de MDMA para estresse pós-traumático, os participantes se submetem a várias sessões de terapia e só em algumas delas ingerem alguma droga enteogênica ou empatogênica.

Por trás da técnica está a noção de que a viagem empreendida sob efeito do composto psicoativo, algumas vezes de caráter místico, tem ela própria valor curativo. Além disso, esses candidatos a remédios –ainda são substâncias ilegais, cabe lembrar –ajudam a derrubar barreiras que impedem acesso a memórias e pensamentos, contribuindo para a psicoterapia propriamente dita nas sessões subsequentes de integração.

Ilustração de Speedy McVroom (Pixabay)

Numa palavra, em jogo está o autoconhecimento, não uma intervenção misteriosa operada pelas moléculas no tecido cerebral, à revelia da consciência. A própria tentativa em curso de capturar esse processo na moldura da prática clínica encontra seus críticos, que a classificam no mesmo processo de medicalização a fomentar a expectativa de curas milagrosas.

Tal é o alerta de Jonathan Dickinson e Dimitri Mugianis no artigo “Por que pesquisadores de saúde mental estudam psicodélicos de maneira inteiramente errada” na Salon: “O uso médico de drogas psicodélicas é retratado na mídia como uma bênção para profissionais de saúde mental, com relatos de resultados aparentemente miraculosos para tratar algumas das questões de saúde mental mais significativas que nossa época enfrenta”.

“Embora aplaudamos os esforços que estão em andamento para a descriminalização e estejamos entusiasmados com o potencial de aprendizado com a fortuna de praticantes tradicionais e clandestinos, muita coisa se perderá no processo de medicalização.” (Agradeço a Stevens Rehen pela indicação desse texto provocador.)

Com efeito, existe um tipo de purismo ou puritanismo farmacológico para o qual seria melhor livrar-se da bagagem contracultural, alternativa ou mística, das práticas subterrâneas e do que chamam pejorativamente de uso recreativo. Mas foi isso tudo que manteve os psicodélicos vivos mesmo sob o obscurantismo da Guerra às Drogas declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971.

À luz dessa história, revela-se falso o dilema entre ciência contemporânea objetiva e técnicas de autoconhecimento há muito praticadas. O vigor do campo psicodélico vem do hibridismo, da fertilização cruzada entre as duas formas de investigação da psique (para escapar da dicotomia entre mente e cérebro) que sempre produziram frutos maravilhosos –e tanto mais quando caminham juntas, como pretendo defender neste curso:

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Xamã da invasão do Capitólio dá golpe no mito do psicodélico de esquerda https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/#respond Sun, 10 Jan 2021 19:29:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/JakeAngeliREUTERSStephanieKeith-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=232 Jake Angeli, símbolo do delirante assalto fracassado ao Congresso dos EUA na quarta-feira (6), se apresenta nas redes sociais como Lobo de Yellowstone, um xamã psicodélico. Suas páginas de autopropaganda já caíram, e com elas rui também a ideia de que a alteração da consciência por substâncias alucinógenas produz sempre mentalidades progressistas, de esquerda.

Seria um erro deixar-se ofuscar pela exuberância caricata de Angeli. Tirante os chifres e o pelego de bisão, até um engravatado como Ernesto Araújo poderia marchar com ele contra a alegada conspiração comunista, globalista, materialista e covidista que abala os alicerces do mundo livre. O chanceler, afinal, nem precisa de cogumelos mágicos para enxergar em Donald Trump um líder espiritual.

Angeli, um ator fracassado trintão que passou pela Marinha, converteu-se ao misticismo de direita com ajuda do fungo Psilocybe e do cacto peiote. Oferecia cursos pela internet em que ensinava como a reintegração com a natureza e a ingestão de plantas sagradas poderiam dissolver a programação cultural que conduz à destruição da pessoa autônoma e do planeta saudável, como mostrado neste vídeo gravado por Brian Pace, do site Psymposia, antes da retirada do site de Angeli do ar.

A imagem de hippie neonazista parece uma contradição em termos, mas não é. Existe antiga tradição romântica de retorno à natureza, de comunhão em uma unidade superior (Deus, Povo, Pátria, Raça –à escolha), que não raro ajudou a delinear quem são os degenerados a erradicar do mundo, como na ideologia nacional-socialista. Cunhou-se já o neologismo “conspiritualidade” para descrever seitas e fenômenos como Q-Anon.

Aquarela atribuída a Hitler mostra paisagem na região austríaca de Vent – Niedertal (REUTERS/Fabrizio Bensch)

“Infelizmente o elo entre extrema direita, Nova Era, teorias conspiratórias e psicodélicos não é novo nem único. Historicamente, há muitos exemplos de usos malévolos e manipuladores de psicodélicos”, diz Bia Labate, antropóloga brasileira que dirige na Califórnia o Instituto Chacruna. “Mais recentemente, tem sido desanimador ver como muitos seguidores do movimento #ThankYouPlantMedicine se revelaram por negar a existência da Covid, ser antivacina, rejeitar o uso de máscaras ou proclamar outras teorias da conspiração.”

“Mesmo que Jake [Angeli] não seja um caso único, ainda penso que os psicodélicos beneficiaram muito mais pessoas do que prejudicaram e que continuam a guardar potencial incrível para tratar distúrbios de saúde mental e enriquecer as vidas daqueles que buscam melhora e conforto espiritual.”

Não surpreende que a vertente Nova Era da cena psicodélica se mostre vulnerável a essa forma de paranoia. O viés do misticismo oferece o atalho mais fácil para dar conta das experiências de inefabilidade e deslumbramento propiciadas por compostos psicodélicos clássicos como o LSD, a psilocibina dos cogumelos, a mescalina do peiote e a DMT da ayahuasca.

Mesmo no meio acadêmico da Europa, onde se favorece o conceito de dissolução do ego para descrever o que nos EUA aparece como vivência espiritual, persiste uma tendência a identificar o resíduo de viagens psicodélicas com alterações da consciência na direção do progressismo e mesmo do ambientalismo. A chave transformadora estaria na empatia, que já se comprovou aumentar com o consumo de psicodélicos, tanto que “empatógeno” é um dos termos criados para designá-los.

Já escrevi aqui que não há razão para enquadrar o superávit psicodélico de empatia e de sensibilidade ambiental na moldura acanhada da experiência religiosa nem, menos ainda, para considerar que o enlevo místico seja componente sine qua non do benefício mental dessas substâncias. Existe um debate em curso entre pesquisadores que, como David Olson, não veem os efeitos psicodélicos subjetivos como necessários para o benefício terapêutico duradouro e aqueles que, como David Yaden e Roland Griffiths, pensam o contrário e, portanto, descartam a proposta de desenvolver compostos similares aos psicodélicos mas desprovidos de seus efeitos alucinógenos ou dissolvedores do ego.

Ainda que o acréscimo de empatia e o afrouxamento de padrões rígidos de ativação das redes cerebrais bastem para explicar o sucesso de terapias psicodélicas contra depressão, estresse pós-traumático etc., como parece ser o caso, há que tentar entender como é possível que essa flexibilização mental conduza também a atitudes e convicções tão autoritárias, agressivas e sociopáticas quanto as dos militantes trumpistas e Q-anonistas que assaltaram o Capitólio.

Carro com pintura alusiva ao movimento da teoria conspiratória Q-Anon (Caitlin O’Hara/AFP)

Uma forma de explicar essa derivação, à primeira vista paradoxal, seria recorrer a conceitos apresentados por Ido Hartogsohn no livro “American Trip: Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana: Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20): a maleabilidade amplificadora das substâncias psicodélicas e a ideia de que set e setting também têm uma dimensão cultural.

Não é fácil traduzir para o português a parelha noção de set e setting, tornada seminal entre outros por Timothy Leary. Trata-se de algo como a dupla de predisposição mental e condições ambientais em que se realiza uma viagem psicodélica, normalmente entendidas como o contexto individual e o local em que se realiza a experiência de alteração da consciência. Para Hartogsohn, entretanto, o duo também deve ser entendido no contexto da cultura e do ambiente psicossocial em que os psiconautas e os psicodélicos se encontram inseridos.

Capa do livro “Viagem Americana”, de Ido Hartogsohn

Um exemplo esclarecedor da influência mais ampla da época sobre a conceituação dessas substâncias se acha na divergência dos paradigmas teóricos sobre LSD que se estabeleceram nos anos 1950 e na transição 1960-70.

No auge da Guerra Fria e à sombra dos horrores da Segunda Guerra, a amplificação mental propiciada pelo psicodélico era entendida como indutora de um estado psicótico, o que deu origem à denominação de “psicotomiméticos” para esses compostos (ou seja, imitadores de psicose). Psiquiatras entusiasmados acreditaram então que se iniciava uma era de experimentação controlada para a disciplina antes envolta nos miasmas da fenomenologia, da experiência subjetiva e suas etiologias impenetráveis.

Por outro lado, à medida que o progresso material de parte da sociedade norte-americana contrastava mais e mais com o lado escuro do American Way (segregação racial e desigualdade no plano doméstico; intervenções militares e apoio a ditaduras na esfera internacional), o movimento dos direitos civis e de contestação à Guerra do Vietnã forneceram a moldura libertária na qual os compostos, agora chamados de “psicodélicos”, foram reenquadrados como as drogas da contracultura, da liberdade sexual e do amor à natureza.

De “imitação da psicose” à “revelação da alma” vai uma enorme distância, e foi essa transição ameaçadora para o establishment que engendrou a reação proibicionista aos psicodélicos nos anos 1970 e 1980. Transcorridas quatro décadas, o set e o setting culturais para psicodélicos mudaram radicalmente, e de certa maneira se dissociaram.

Manequim em instalação do movimento Black Lives Matter (REUTERS/Lucy Nicholson)

De um lado, eles experimentam um renascimento para a medicina, em que a psiquiatria busca valer-se de sua flexibilização mental para dissolver traumas e dar acesso a conteúdos ossificados nas redes cerebrais. De outro, metade da sociedade americana –e contingentes ponderáveis em países como o Brasil– se sente ameaçada não por russos atômicos, mas por chineses industriosos e traidores nacionais alojados no Partido Democrata, nos movimentos Me-Too e Black Lives Matter, na academia e na mídia –os “comunistas”.

Psicodélicos, entrementes, deixaram de ser monopólio da esquerda. A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), mesmo liderada por um ex-objetor de consciência como Rick Doblin, teve a sagacidade de eleger a MDMA (ecstasy, um empatógeno não alucinogênico) e o transtorno de estresse pós-traumático epidêmico entre veteranos de guerra para conduzir o teste clínico mais próximo (fase 3) de entronizar um psicodélico no altar farmacológico da psiquiatria.

Pílulas de ecstasy apreendidas em ação contra drogas adulteradas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Embora conservadores de raiz ainda se inclinem pelo proibicionismo estrito, há também uma franja Nutella, por assim dizer, natureba, nativista, mística, ou simplesmente doente da cabeça, que vê neles –como os antigos hippies– uma salvação milagrosa para o mundo. Jake Angeli é hoje o mais famigerado representante da psicose conspiritualista que a invasão do Capitólio revelou para o mundo.

Na cena psicodélica, como em tudo mais, a década de 2021 começou de modo confuso, tudo junto e misturado no liquificador de ideias, crenças e tradições oferecido pelas redes sociais. Não haveria por que substâncias tão maleáveis escaparem, só elas, de um set e um setting tão perturbador quanto a nossa época. Mais uma razão para distinguir e distanciar os psicodélicos do misticismo, mas sem perder a ternura.

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Entenda o significado do termo ‘psicodélico’, melhor que ‘alucinógeno’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/#respond Mon, 30 Nov 2020 11:40:53 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/MandalasSpeedyMcVroomPixabay-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=126 Quando alguém ouve a palavra “psicodélico”, é quase certo que lhe venha à mente figuras super coloridas, cheias de curvas, motivos geométricos, labirintos fractais, talvez alguns elementos místicos. O vocábulo ficou associado com o estilo característico da “poster art”, a marca mais visível da contracultura dos anos 1960 e 1970.

Trata-se de uma redução indevida. O efeito psicodélico, ou seja, o tipo de experiência mental desencadeada com o consumo de LSD, psilocibina (cogumelos ditos “mágicos”) e DMT (presente na ayahuasca), vai muito além das manifestações visuais, mas estas acabaram por se tornar o símbolo das viagens propiciadas, inclusive para depreciar essas substâncias com o termo “alucinógeno”, que tem algo de pejorativo.

Ver coisas que não existem de verdade, afinal, se parece muito com o que seria um surto psicótico, para o senso comum. A pessoa ficaria “muito louca”. Alucinados, como se diz, usuários cometeriam desatinos como pular de uma janela, atirar o carro num precipício, atacar companheiros transformados em monstros –essa a noção que conservadores proibicionistas trabalharam para colar aos psicodélicos, com razoável sucesso.

Não é bem assim, como sabe quem já os experimentou mais de uma vez. Cores sensacionais na natureza, sim, belezas capazes de levar a pessoa às lágrimas. Enxergar lindas figuras geométricas e caleidoscópicas de olhos fechados, isso é bem comum. Porém, há psiconautas tarimbados que nunca viram, de olhos abertos, seres fantásticos andando pelo mundo.

Ilustração de Rodrigo Visca

Viagens ruins (“bad trips”) acontecem, mas são raras: entre 62% e 74% de usuários de LSD declararam, para uma pesquisa global sobre consumo de drogas, nunca ter passado por uma dessas experiências penosas. Mortes, então, ainda mais incomuns.

Por essas associações espúrias, não simpatizo com o termo “alucinógeno”. Isso embora possa ter um uso bem preciso –LSD, DMT e psilocibina, afinal, podem sim causar alucinações, em especial quando a dose é alta. O leitor o encontrará em mais de uma nota, neste espaço, mas de maneira bem menos frequente que “psicodélico”.

O termo que qualifica a virada no nome do blog foi cunhado no ano em que nasci, 1957, pelo médico britânico Humphry Osmond. Numa troca de cartas com o conterrâneo Aldous Huxley, autor do livro “As Portas da Percepção”, Osmond rejeitou a proposta do escritor de criar a palavra “fanerótimo”, algo como “revelador do espírito”, defendendo a alternativa “psicodélico”. O significado era parecido, “manifestador da mente, ou alma”.

Se o neologismo pegou, foi com razão. A vivência psicodélica envolve muito mais que os “visuais” de que tanto gostavam os hippies brasileiros, ou as “mirações” contempladas por cultuadores da ayahuasca. Pela qualidade mística da experiência que o chá, cogumelos Psilocybe e peiote (mescalina) propiciam em contextos religiosos, há quem prefira o termo “enteógeno” (indutor de êxtase divino ou xamânico, etimologia parecida com a de “entusiasmo”).

Num artigo de revisão de 2017 na revista Neuropharmacology, o pesquisador suíço Matthias Liechti listou os efeitos do LSD descritos em pesquisas ao longo de 25 anos (sim, realizaram-se muitos estudos, antes e depois da proibição, com o composto lisérgico inicialmente distribuído pelo laboratório Sandoz sob a marca Delysid):

– bem-estar

– sinestesia

– alterações da percepção

– despersonalização

– experiências místicas

– sentimento de proximidade com outros

– confiança

– sugestionabilidade

– empatia aumentada

– reação menor a imagens de medo

– resposta emocional aumentada a música

– níveis aumentados dos hormônios cortisol, prolactina e ocitocina

– redução de ansiedade etc.

Alterações mentais observadas em pessoas sob efeito de três doses de LSD, 75, 100 e 200 microgramas, segundo revisão na literatura de Matthias Liechti (Reprodução)

Não admira que LSD e congêneres psicodélicos clássicos como DMT e psilocibina tenham voltado a entrar na mira da pesquisa neurocientífica e psiquiátrica. Assim como o psicodélico não alucinógeno MDMA (base do ecstasy), em estudos experimentais essas drogas –que continuam proibidas, cabe lembrar– têm produzido resultados promissores.

A proposta é usar essas substâncias que reduzem medo e aumentam empatia como adjuvantes para psicoterapia em transtornos como depressão e estresse pós-traumático. Talvez para livrar-se da bagagem contracultural do vocábulo “psicodélico”, houve quem defendesse o emprego do termo “empatógeno” (causador de empatia) para designar o ecstasy, por exemplo, que não dá margem a visuais e alucinações.

Não colou muito. Um dos argumentos contra ele é a semelhança indesejável, ao ouvido do paciente, com “patógeno” (causador de doença), como defendeu David Nichols. O pesquisador americano propõe, em seu lugar, a variante “entactógeno”, para salientar a propriedade de “produzir um contato interior”, ou seja, pôr a pessoa diante de sua própria alma, revelar-lhe os cantos escuros da mente.

Ora, é bem o que “psicodélico” significa. Se era isso que os hippies buscavam, tanto melhor para eles –e, talvez, para seus descendentes, se a renascida ciência psicodélica prosseguir evidenciando que essas substâncias carregam mais benefícios do que faz crer a propaganda alucinada dos proibicionistas.

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Suíços questionam papel terapêutico de alucinações e dissolução do ego https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/suicos-questionam-papel-terapeutico-de-alucinacoes-e-dissolucao-do-ego/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/suicos-questionam-papel-terapeutico-de-alucinacoes-e-dissolucao-do-ego/#respond Mon, 23 Nov 2020 21:19:14 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/PensadorPsicodelicoJRKorpaPixabay-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=114 As alterações visuais e o apagão das fronteiras do self são efeitos típicos de psicodélicos clássicos como LSD, ayahuasca e psilocibina (cogumelos “mágicos”), mas não da MDMA (ecstasy). Estudo suíço com a última substância vem pôr em dúvida que alucinações e dissolução do ego sejam componentes necessários do benefício terapêutico desses compostos, atualmente sob investigação.

Todos eles vêm sendo testados como potenciais tratamentos para transtornos mentais, com destaque para a depressão. Pela ausência de “viagens”, entretanto, muitos nem consideram a MDMA um verdadeiro psicodélico, preferindo chamá-la de empatógeno (causador de empatia) ou entactógeno (facilitador de contato interior), para distingui-la dos alucinógenos.

Essas drogas atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina, envolvido na modulação de várias funções (humor, sono, libido etc.), em especial o receptor rotulado como HT2A, de onde se originaria seu efeito antidepressivo. Afetam também outros neurotransmissores, como a dopamina (MDMA ainda tem efeito sobre a noradrenalina).

Apesar dessas diferenças marcantes com os compostos clássicos, MDMA foi o que mais avançou na trilha de autorização para tratar uma condição específica, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). É o carro-chefe da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na abreviação em inglês) na corrida à FDA, agência de fármacos dos EUA, para aprovar novos tratamentos.

Comprimidos de ecstasy adulterado identificados em pesquisa que encontrou anfetamina, metanfetemina,cetamina, cafeína etc. nas pílulas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Felix Müller e colaboradores da Universidade da Basileia decidiram investigar a hipótese de que efeitos psicodélicos tradicionais constituam apenas um epifenômeno da ingestão dessas drogas. Vale dizer, um efeito colateral sem relação com o impacto terapêutico esperado.

No artigo publicado sexta-feira (20) no periódico Neuropharmacology eles não explicitam que viagens representam a grande fonte de preconceito contra as terapias psicodélicas, por causa da associação com a contracultura e a reação proibicionista. Mas isso tem algo a ver com a escolha do ecstasy pela Maps, assim como o TEPT –um transtorno mental de veteranos de guerra, heróis por excelência de conservadores americanos.

Os pesquisadores da Suíça esmiuçaram efeitos no cérebro de 45 pessoas que tomaram MDMA ou placebo. Fizeram isso com ajuda de imagens de ressonância magnética funcional, que mapeiam a atividade em diversas regiões e redes cerebrais.

No foco principal esteve a rede de modo padrão, mais conhecida pela sigla em inglês DMN. Esse conjunto de conexões entre áreas cerebrais está relacionado com introspecção e se mostra ativo demais em distúrbios que implicam ruminações de pensamentos e sentimentos negativos, como a depressão.

Áreas e redes cerebrais investigadas no artigo da revista Neuropharmacology (Reprodução)

Atribui-se ao relaxamento da DMN o efeito antidepressivo dos psicodélicos, já constatado com ayahuasca em pioneiro teste clínico controlado brasileiro e também em ensaios avançados com psilocibina. Os suíços constataram um padrão semelhante de redução nas conexões internas dessa rede sob efeito da MDMA, assim como em outras áreas.

Como o ecstasy não origina alucinações nem dissolução do ego, surge de pronto a pergunta sobre a contribuição ao benefício terapêutico oferecido por essas alterações psíquicas mais características, se é que têm alguma. O conteúdo das visões, assim como a experiência mística associada à dissociação do ego, vistos desse ângulo, poderiam ser menos importantes para o tratamento do que se supôs até agora.

Não deixa de ser um reforço para a perspectiva que privilegia o enquadramento neurofarmacológico das terapias psicodélicas, do qual emergiria em destaque a MDMA. Cairiam para um segundo plano, assim, as psicoterapias psicodélicas clássicas que mobilizam a dissociação egoica como componente pivotal do que se poderia descrever como reset terapêutico.

O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, ressalva que a MDMA é também o composto menos seguro na aplicação clínica, por atuar sobre a noradrenalina, que acelera batimentos cardíacos. São conhecidos, ainda que raros, os casos de hipertermia (superaquecimento) e até mortes em decorrência do uso recreativo de ecstasy em baladas.

“Não é o caso de dispensar uma nem outra opção. Precisamos de mais pesquisas sobre os entactógenos, sobre quais casos psiquiátricos têm potencial”, recomenda Tófoli. “É importante pesquisar todos os compostos, sem desprezar o potencial terapêutico dos psicodélicos clássicos.”

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