Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Berkeley recebe US$ 800 mil para impulsionar jornalismo psicodélico https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/15/berkeley-recebe-us-800-mil-para-impulsionar-jornalismo-psicodelico/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/15/berkeley-recebe-us-800-mil-para-impulsionar-jornalismo-psicodelico/#respond Wed, 15 Sep 2021 19:51:18 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/BerkeleyFerris-300x142.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=620 Não estivesse completando 64 anos na data, tal notícia soaria como presente de aniversário: a Universidade da Califórnia em Berkeley, epicentro da contracultura nos anos 1960, vai abrir bolsas para jornalistas em início e meio de carreira se especializarem na cobertura de psicodélicos. São mais de US$ 800 mil (R$ 4,2 milhões), ao longo de três anos, para começar o programa.

A doação inicial veio do blogueiro, podcaster e escritor Tim Ferriss, grande incentivador do renascimento para a medicina dessas drogas modificadoras de consciência. Ele já contribuiu para campanhas de fundos de pesquisa para o estudo de MDMA contra estresse pós-traumático da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) e se engajou na controvérsia sobre a voga de pedidos de patentes dos compostos por startups.

A iniciativa integra o Centro Berkeley para Ciência de Psicodélicos lançado há um ano, noutro 14 de setembro, com doação anônima de US$ 1,25 milhão (R$ 6,6 milhões). Entre os fundadores desponta o jornalista Michael Pollan, autor do best seller “Como Mudar sua Mente”, que apresentou a renascença psicodélica para o grande público.

A ideia do programa é que os “fellows” (bolsistas) se aparelhem para produzir reportagens em meios de grande circulação sobre ciência, negócios, políticas públicas e cultura em torno de psicodélicos. Pollan coordenará as atividades com os jovens repórteres, nos moldes de uma bolsa que Berkeley já oferece a jornalistas sobre alimentos e agropecuária (11th Hour).

Cada candidato aprovado poderá receber entre US$ 5.000 e US$ 15.000 de auxílio para produzir reportagem de profundidade em texto ou áudio. Projetos serão analisados duas vezes por ano, e o formulário para a primeira leva de propostas ficará disponível em 1º de dezembro. Saiba mais sobre a bolsa psicodélica de Berkeley aqui.

“Se você quiser moldar o arco da história, jornalismo narrativo e investigativo é uma das melhores ferramentas contemporâneas que temos”, afirmou Ferriss em comunicado da escola de jornalismo de Berkeley.

“A explosão cambriana da medicina psicodélica trouxe com ela tanto promessa incrível quanto complexidade incrível. Jornalistas dedicados são necessários para ajudar a separar fato de ficção, cobrar as pessoas e muito mais. Michael Pollan é a pessoa perfeita para capitanear essa bolsa ambiciosa, e sou muito grato por ele estar envolvido.”

Michael Silver, primeiro diretor do centro psicodélico aberto em Berkeley (Foto: Divulgação/Elena Zhukova)

Diferentemente de outros centros psicodélicos de estudos clínicos, como os de Imperial College, Johns Hopkins, Harvard e o Psychae Institute da Austrália, Berkeley dará prioridade para o estudo de efeitos psicodélicos em pessoas saudáveis, e não portadores de transtornos psiquiátricos e outras patologias. E não só sob o ângulo da psiquiatria, psicologia e neurociência, mas também filosofia, religião, antropologia, arte e até ciência da computação e inteligência artificial.

“Este é um momento de virada na história para a discussão sobre psicodélicos e sob quais circunstâncias devem ser usados”, disse no lançamento Michael Silver, primeiro diretor do centro. “Obviamente esse tem sido um tópico muito polarizador, mas creio que a mente das pessoas está mudando.”

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Boa notícia: a Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa em 28 de setembro. Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

 

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Esquenta debate sobre a bagagem mística da ciência psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/13/esquenta-debate-sobre-a-bagagem-mistica-da-ciencia-psicodelica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/13/esquenta-debate-sobre-a-bagagem-mistica-da-ciencia-psicodelica/#respond Mon, 13 Sep 2021 12:20:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Misticismo-300x151.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=608 Um ateu não militante, que respeita quem acredita e não tenta convencer ninguém do contrário, com frequência enfrentará dificuldade diante dos ecos do misticismo que reverberam no pavilhão do renascimento psicodélico. Sempre que ciência e metafísica se misturam, a primeira sai perdendo.

Foi uma satisfação, assim, topar com o artigo “Indo além do Misticismo na Ciência Psicodélica”, de James Sanders e Josjan Zijlmans, na ACS Pharmacology & Translational Science. Poucas vezes um resumo (abstract) desencadeou premonição tão forte de comunhão intelectual:

“A moldura do misticismo é usada para descrever experiências psicodélicas e explicar os efeitos de terapias psicodélicas. Discutimos riscos e dificuldades provenientes do uso científico de uma moldura associada com sistemas de crenças sobrenaturais ou não empíricas e encorajamos pesquisadores a mitigar esses riscos com um modelo desmistificado do estado psicodélico”.

Quem acompanha este blog sabe o quanto incomoda esse enquadramento místico, posto em questão aqui e aqui. Naqueles dois posts ficou claro que a associação também inquieta alguns especialistas do campo que se reabilita após décadas no limbo imposto pela Guerra às Drogas iniciada nos anos 1970.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

No centro do debate retomado por Sanders e Zijlmans há mais que esoterismo hippie e abertura das portas da percepção para realidades alternativas à estreiteza do American Way of Life que a indústria cultural espalhava pelo mundo –daí a contracultura. Nada há de errado nesse anseio por transcendência, mas o pressuposto de que drogas psicodélicas como o LSD de fato a propiciem oferece uma base pouco sólida para sua recondução à farmacopeia autorizada na saúde mental.

“Há um elefante na sala da moderna ciência psicodélica”, alerta o artigo: “Em periódicos científicos e pelos salões de toda conferência psicodélica, pesquisadores e terapeutas ensinam a importância das experiências místicas para a eficácia de terapias psicodélicas”.

Com efeito, quem já usou psicodélicos percebe bem como é tentador resvalar no vocabulário religioso, ou quase, quando se tenta descrever o estado intermediado por eles. A percepção de que algo importante está para acontecer, de estar na iminência de compreender significados elusivos, paz, tranquilidade, empatia, sensação de unidade com a natureza ou o cosmo, perda de referência no tempo e no espaço podem ser facilmente interpretadas como acesso a uma realidade última, superior, contato com o divino, com o domínio sagrado, e assim por diante.

Os problemas começam quando pesquisadores presumem ser possível medir, mais que descrever, essas vivências subjetivas e correlacionar sua intensidade mística com mudanças positivas de atitude e comportamento, como fez Roland Griffiths em 2006 num artigo famoso. Desenvolveu-se um questionário de experiência mística (MEQ, na abreviação em inglês), muito usado em estudos psicodélicos, inclusive no Brasil.

Ao aplicar o MEQ, o pesquisador pede que o participante indique seu grau de concordância ou discordância com frases como “tive uma experiência em que algo maior que eu parecia absorver-me” ou “nunca tive uma experiência na qual me sentisse como se todas as coisas estivessem vivas”. Na parte que avalia a qualidade religiosa da experiência, o vocabulário é explícito: “sagrado”, “divino”, “santo” etc.

Para Sanders e Zijlmans, isso faz pouco sentido quando se trata de medir fenômenos psicobiológicos, tal como se espera de cientistas naturais. Pior, o próprio instrumento enviesa as respostas ao fornecer para participantes a moldura conceitual e a terminologia para descrever vivências que lhes parecem quase impossíveis de pôr em palavras.

“O problema é exacerbado quando fenômenos de experiência mística são aglomerados com crenças místicas sobre o que experiências psicodélicas significam”, escrevem os pesquisadores da Universidade de Amsterdã. “Vemos evidência disso no ambiente cultural psicodélico do presente: serviços de retiro psicodélico e páginas de orientação psicodélica populares na rede estão usando a pesquisa científica para educar usuários iniciantes de psicodélicos sobre o poder terapêutico de experiências místicas.”

Sanders e Zijlmans argumentam que a integração de misticismo na pesquisa e na prática clínica arrisca criar expectativas e associações irrealistas e potencialmente problemáticas quando apresentada para leigos, incluindo grupos vulneráveis em busca de psicodélicos para problemas sérios de saúde mental.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Seu desafio aos pesquisadores da área indica a necessidade de criar um modelo descritivo, baseado na neurociência cognitiva, que prescinda da terminologia mística ou religiosa e permita medir aspectos da experiência psicodélica que possam ser correlacionados com ganhos terapêuticos, ou até mesmo explicá-los. Um dos caminhos seria a teoria do cérebro entrópico proposta por Robin Carhart-Harris, de quem se podem ouvir explicações em linguagem comum neste podcast (em inglês).

Não vai ser fácil, mas a ciência existe precisamente para isso –dar conta do que não está imediatamente acessível aos nossos sentidos, conceitos e palavras. Com respeito às últimas, confesso que não foi nada trivial escrever sobre minhas próprias viagens, no livro “Psiconautas”, em termos desprovidos de bagagem mística, como convém a um ateu. É praticamente inescapável falar em “inefabilidade”.

Não sendo militante da descrença, respeitei, e talvez até tenha invejado, a rapidez com que entrevistados tomavam outro rumo. Há algo de profundamente poético em seu esforço de atribuir os mistérios da mente a poderes superiores, e a devida apreciação estética está na raiz de todas as formas de reverência. Mas há grandeza também na contemplação metódica de fatos, fenômenos e mensurações, como prescreve a ciência.

PARA SABER MAIS

Curso

Livro

(Reprodução)
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Psicodélicos enfrentam falso dilema farmacologia X autoconhecimento https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/#respond Sun, 28 Mar 2021 19:50:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/PORTAO2WikicommonsMarcinSzala-234x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=388 A popularidade acadêmica dos psicodélicos só faz crescer. O periódico JAMA Psychiatry, ao fazer um balanço dos 110 artigos de pesquisa que aceitou publicar entre os 2.190 recebidos em 2020, destacou um trabalho da Universidade Johns Hopkins (JHU) sobre psilocibina e depressão como um dos três textos mais lidos do ano.

Os outros dois versavam sobre saúde mental em tempos de Covid-19, um deles sobre suicídios. O artigo sobre psicodélicos não incluía a pandemia no título ou no resumo, largando mais atrás, portanto, na competição pelo interesse de especialistas.

Tamanho destaque só ressalta a visibilidade que o tema ganhou em anos recentes –aí incluído o cabo-de-guerra entre quem vê no renascimento psicodélico uma oportunidade bilionária para a indústria farmacêutica e os que nele enxergam a reversão da voga proibicionista que impediu, por quatro décadas, o acesso a fontes de bem-estar conhecidas há milênios.

A revista figura entre as de maior impacto no ramo da psiquiatria; os artigos que publica terminam citados em média por 17,5 outros estudos (dado de 2019). O estudo da JHU foi visto no ano passado por 118 mil interessados, e nestes primeiros meses de 2021 já somou mais 63 mil leitores, totalizando 181 mil. Em menos de cinco meses, já foi citado 11 vezes.

(Reprodução)

Toda essa atenção deriva de dois fatores. O primeiro está no fato de que grande parcela das pessoas que sofrem com transtornos mentais (depressão, estresse, ansiedade, dependência química etc.) não encontram alívio nas terapias farmacológicas disponíveis, como antidepressivos. Psiquiatras e pacientes precisam desesperadamente de alternativas.

O outro componente do interesse em alta decorre do enorme mercado que esses desassistidos representam. Já se estimou que possa ultrapassar US$ 400 bilhões anuais (R$ 2,3 trilhões).

Daí a corrida de pesquisadores e empresários investidores para serem os primeiros a ocupar espaço no novo território psicodélico. Seus veículos preferidos para conquistar o terreno sem dono são patentes e o reconhecimento por agências reguladoras, que abririam as portas para remuneração de tratamentos por planos de saúde privados ou públicos.

Nas duas últimas semanas, a controversa empresa britânica Compass Pathways obteve mais duas patentes nos Estados Unidos para sua versão sintética (COMP360) da psilocibina de cogumelos “mágicos” usada no tratamento de formas graves de depressão. A companhia já detinha uma patente, fonte do temor de que ela venha dificultar aplicações semelhantes do psicoativo dos fungos Psilocybe.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Essa forma de enquadrar o renascimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização farmacológica dos distúrbios mentais. Todo e qualquer transtorno, visto dessa perspectiva, decorreria de falta ou excesso de substâncias no cérebro, como o neurotransmissor serotonina (não por acaso um dos mais afetados pelos psicodélicos clássicos como psilocibina, LSD, mescalina e DMT).

Tratar esses transtornos, então, seria questão apenas de interferir na bioquímica cerebral desbalanceada. Há defensores até de que se usem microdoses ou compostos sintéticos que atuem sobre os mesmos receptores neuronais mas não desencadeiem efeito psicodélico completo, pondo em dúvida o papel terapêutico de alucinações, distorções na percepção de tempo e espaço, experiências místicas e a chamada dissolução do ego.

Um representante destacado dessa corrente mais reducionista é David E. Olson, da Universidade da Califórnia em Davis. Ele fundou a empresa Delix Therapeutics, que tem por lema “Reconectar o Cérebro para Curar a Mente” e se propõe a “aplicar as ferramentas do desenvolvimento farmacêutico a algumas das terapias mais antigas da natureza, os psicodélicos”.

Olson assina o editorial de um número inteiramente dedicado a psicodélicos do periódico ACS Pharmacology & Translational Science, da Sociedade Americana de Química. O título é “A Promessa da Ciência Psicodélica”. A edição especial promete “expor a incrível gama de pesquisas sendo feitas para elucidar como os psicodélicos impactam a função cerebral –estudos que abrangem os níveis molecular, celular e organísmico”.

Há uma outra vertente de pesquisa que, mesmo não abrindo mão das ferramentas analíticas da biomedicina contemporânea, tampouco desdenha do saber acumulado por xamãs, psiconautas, terapeutas pré- ou pós-proibicionistas e condutores de testes clínicos de psicoterapia assistida por psicodélicos. Mais especificamente, gente que respeita a importância do set (disposição ou propósito mental) e do setting (situação em que se dá a viagem) para o eventual resultado terapêutico.

Não se trata de engolir uma pílula e esperar o resultado do feitiço bioquímico sobre os neurônios. Nos estudos experimentais mais próximos de obter aprovação de reguladores com a força da FDA (agência americana de fármacos), como no caso de MDMA para estresse pós-traumático, os participantes se submetem a várias sessões de terapia e só em algumas delas ingerem alguma droga enteogênica ou empatogênica.

Por trás da técnica está a noção de que a viagem empreendida sob efeito do composto psicoativo, algumas vezes de caráter místico, tem ela própria valor curativo. Além disso, esses candidatos a remédios –ainda são substâncias ilegais, cabe lembrar –ajudam a derrubar barreiras que impedem acesso a memórias e pensamentos, contribuindo para a psicoterapia propriamente dita nas sessões subsequentes de integração.

Ilustração de Speedy McVroom (Pixabay)

Numa palavra, em jogo está o autoconhecimento, não uma intervenção misteriosa operada pelas moléculas no tecido cerebral, à revelia da consciência. A própria tentativa em curso de capturar esse processo na moldura da prática clínica encontra seus críticos, que a classificam no mesmo processo de medicalização a fomentar a expectativa de curas milagrosas.

Tal é o alerta de Jonathan Dickinson e Dimitri Mugianis no artigo “Por que pesquisadores de saúde mental estudam psicodélicos de maneira inteiramente errada” na Salon: “O uso médico de drogas psicodélicas é retratado na mídia como uma bênção para profissionais de saúde mental, com relatos de resultados aparentemente miraculosos para tratar algumas das questões de saúde mental mais significativas que nossa época enfrenta”.

“Embora aplaudamos os esforços que estão em andamento para a descriminalização e estejamos entusiasmados com o potencial de aprendizado com a fortuna de praticantes tradicionais e clandestinos, muita coisa se perderá no processo de medicalização.” (Agradeço a Stevens Rehen pela indicação desse texto provocador.)

Com efeito, existe um tipo de purismo ou puritanismo farmacológico para o qual seria melhor livrar-se da bagagem contracultural, alternativa ou mística, das práticas subterrâneas e do que chamam pejorativamente de uso recreativo. Mas foi isso tudo que manteve os psicodélicos vivos mesmo sob o obscurantismo da Guerra às Drogas declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971.

À luz dessa história, revela-se falso o dilema entre ciência contemporânea objetiva e técnicas de autoconhecimento há muito praticadas. O vigor do campo psicodélico vem do hibridismo, da fertilização cruzada entre as duas formas de investigação da psique (para escapar da dicotomia entre mente e cérebro) que sempre produziram frutos maravilhosos –e tanto mais quando caminham juntas, como pretendo defender neste curso:

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Em busca de uma Clarice Lispector no vacilante renascimento do LSD no Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/em-busca-de-uma-clarice-lispector-no-vacilante-renascimento-do-lsd-no-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/em-busca-de-uma-clarice-lispector-no-vacilante-renascimento-do-lsd-no-brasil/#respond Mon, 25 Jan 2021 20:04:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/ClariceLispector-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=269 Clarice Lispector, Rita Lee, Maria Alice “Tapa na Pantera” Vergueiro. Paulo Mendes Campos, Fauzi Arap, Antonio Peticov, Luiz Carlos Maciel, Jorge Mautner… Talvez o leitor não saiba, mas há um denominador comum nesse grupo, além da fulguração nos anos 1960/70: LSD.

A dietilamida do ácido lisérgico, significado em alemão das três letras célebres, era fornecida pelo laboratório Sandoz a médicos e pesquisadores, até abril de 1965, quando interrompeu a fabricação do remédio Delysid, caído em desgraça. Um dos experimentadores mais ativos, no Brasil, foi o psiquiatra Murilo Pereira Gomes.

Gomes promovia sessões terapêuticas com a droga no consultório e em casa, das quais participavam alguns dos artistas que iluminaram aqueles anos escuros da ditadura militar. Os detalhes sobre as sessões experimentais de Gomes estão no minucioso trabalho de Júlio Delmanto, “História Social do LSD no Brasil — Os Primeiros Usos Medicinais e o Começo da Repressão”.

Agora disponível em livro (Editora Elefante), a tese de doutorado orientada por Henrique Soares Carneiro, que li para escrever meu “Psiconautas — Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (no prelo pela Editora Fósforo, com lançamento em maio), fala de um tempo em que o LSD não fora ainda demonizado pela histeria conservadora proibicionista. Ao contrário, era uma promessa da medicina, como agora volta a ser.

Cérebro em repouso sob efeito de placebo (esq.) e de LSD (dir.) (Reuters/Imperial College London/ Beckley Foundation)

O relato de Delmanto, apoiado em pesquisa admirável, mostra que o entusiasmo com o ácido precede em muito a consagração pela contracultura. Embora contemporâneo e combustível da geração beat nos EUA e logo no Brasil, lá e cá o LSD virou a cabeça dos psiquiatras.

Nos anos 1950, eles viam no composto criado pelo químico suíço Albert Hoffman duas décadas antes uma oportunidade de tornar a psiquiatria uma disciplina mais experimental, pois acreditavam que ela permitia deslanchar um transtorno psíquico artificial em quem a tomava. Antes de ser conhecida como droga “psicodélica” (reveladora da psique, alma ou mente, como queiram), ela era vista como “psicotomimética” (imitadora de psicose).

O primeiro a publicar algo sobre as virtudes do LSD, segundo levantamento de Delmanto, foi Eustachio Portella Nunes Filho, do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (depois UFRJ), em 1954. Em São Paulo, ainda nos anos 1950, Clóvis Martins administrou LSD a dezenas de pacientes do Instituto de Psiquiatria da USP, tema de sua tese de livre docência em 1964.

Mais ou menos na mesma época, o ácido caía nas graças de poetas e escritores como Roberto Piva, Claudio Willer e Raul Fiker, na esteira dos beatniks americanos Allen Ginsberg e Ken “Um Estranho no Ninho” Kesey. Foram os precursores da contracultura no Brasil, por assim dizer, popularizada de 1969 a 1972 pela coluna “Underground”, de Luiz Carlos Maciel, no saudoso jornal alternativo Pasquim.

Kesey e Ginsberg, ainda nos anos 1950, haviam sido apresentados ao LSD por um projeto da agência americana de espionagem americana CIA, batizado MK-Ultra, voltado a descobrir um “soro da verdade” ou meios de fazer “lavagens cerebrais”. Deu no que deu, inclusive numa morte trágica, como retratado na série da Netflix “Wormwood”. Semearam vento e colheram as tempestades beat e, em seguida, hippie.

Peter Sarsgaard em cena de “Wormwood”, de Errol Morris (Divulgação)

A vertente brasileira dessa revolução nos costumes e nas mentalidades, da qual somos todos herdeiros, está bem documentada em “História Social do LSD”. O livro de Delmanto também aborda a saga lisérgica americana, mas quem quiser se aprofundar deve ler “American Trip — Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana — Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20), de Ido Hartogsohn (MIT Press).

Já tratei dessa obra aqui, pois me impressionou a extensão, para toda a cultura, da ideia de que a disposição mental e o ambiente em que ocorre o uso de psicodélicos são determinantes para a qualidade e o significado da viagem.

O paradigma psicotomimético e projetos paranoicos como o MK-Ultra da Cia fazem muito mais sentido à luz –melhor dizendo, nas trevas– da Guerra Fria, do terror atômico e do vazio existencial do American Way of Life numa sociedade racista e belicista.

O enquadramento mais libertário e psicoterápico do LSD e de drogas rebatizadas psicodélicas, por outro lado, parece inseparável do impulso emancipador do movimento por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã, assim como da antipsiquiatria, do universo beat, do redescoberto potencial da ciência (a Lua!) e da pílula anticoncepcional. Timothy Leary foi seu maior guru.

No Brasil foi um pouco mais complicado. Enquanto a juventude de classe média afluente e majoritária nos EUA empurrava a sociedade para a frente, por aqui a ditadura militar e a pobreza generalizada num país ainda rural fizeram da contracultura um movimento restrito a guetos urbanos. E os “desbundados”, como se dizia, ainda tinham de competir com a esquerda que partiu para a luta armada, numa disputa pelos corações e mentes dos poucos jovens dispostos a se rebelar nos anos de chumbo.

Não sou sociólogo nem historiador social para arriscar muitas conclusões sobre essas diferenças da contracultura brasileira com a americana –ou europeia, de resto, porque às vezes parece que intelectuais brasileiros acabaram mais influenciados pelo Maio de 1968 na França do que pelas marchas em Washington e San Francisco. Se abro a questão aqui é porque gostaria de antever se o renascimento psicodélico iniciado na década de 2010 prenuncia um vetor de emancipação ou se, no atual contexto político-cultural acabrunhante, ele se encaminha para um revertério amargo como o dos anos 1970-80, ao estilo direitista do autointitulado xamã Lobo de Yellowstone.

Jake Angeli, o xamã psicodélico Lobo de Yellowstone que invadiu o capitólio (REUTERS/Stephanie Keith)

Se for para continuar pessimista, basta considerar o advento de Donald Trump, Jair Bolsonaro, redes sociais, fake news e o conservadorismo obscurantista terraplanista negacionista neopentecostalista criacionista antivacinista cloroquinista. A desigualdade nunca foi tão revoltante; a Covid detona a esperança de uma vida melhor, o convívio e a solidariedade; mudanças climáticas pressagiam um desastre planetário do porte da hecatombe nuclear.

A vitória eleitoral de Joe Biden parece ter interrompido o pesadelo trumpiano, a ver. Movimentos como Me-Too e BLM ecoam gritos libertários da década de 1960, apesar de algum pendor autoritário para cancelar e sinalizar virtude, e também sobra um impulso hippie mitigado no vegetarianismo que se alastra entre moços e moças.

Por outro lado, o renascimento psicodélico emerge sob o signo de nova medicalização, esterilizado pela razão científica. Diversa dos anos 1950 psicotomiméticos, sim, mas também expurgada da pulsão iconoclasta dos anos 1960. Testes clínicos controlados randomizados duplo cegos são ótimos para recompor o prestígio farmacológico de drogas como o LSD, mas não deixam de ser uma maneira de domesticá-las.

Nada contra a psicoterapia assistida por psicodélicos em ambientes controlados e sob supervisão de gente capacitada –desde que o modelo emergente não reforce o preconceito contra o uso dito “recreativo” (só quem já enfrentou peias de ayahuasca e psilocibina sabe como esse qualificativo é inadequado). Nada contra a modinha da microdosagem entre traders e nerds –desde que não expulse do arsenal a experiência psicodélica plena, com dissolução do ego e tudo a que temos direito.

Por aqui, além disso e de novo, persiste o temor de que tais ensaios de libertação fiquem restritos à esfera bem-pensante. Bolsonaro consegue, afinal, equilibrar-se apoiado no Centrão, de um lado, e no Evangelho de Resultados, de outro, com as Forças Armadas e o empresariado sociopata a reboque, no papel de massa atrasada.

Oremos, pois, pela conceição imaculada de um Joe Biden em Pindorama, pois da realidade brasileira nada comparável parece capaz de surgir. E sonhemos, por ora, com nossas futuras Clarices Lispectors.

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Para quem não acredita em renascimento psicodélico: a revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a PNAS, publica hoje artigo de pesquisadores no Canadá detalhando as vias bioquímicas pelas quais o LSD promove a busca de novidade e o comportamento prossocial de camundongos. Resultados similares já foram colhidos com ratos por neurocientistas brasileiros, estudo sobre o qual a Folha publicou reportagem em 2019.

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Xamã da invasão do Capitólio dá golpe no mito do psicodélico de esquerda https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/#respond Sun, 10 Jan 2021 19:29:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/JakeAngeliREUTERSStephanieKeith-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=232 Jake Angeli, símbolo do delirante assalto fracassado ao Congresso dos EUA na quarta-feira (6), se apresenta nas redes sociais como Lobo de Yellowstone, um xamã psicodélico. Suas páginas de autopropaganda já caíram, e com elas rui também a ideia de que a alteração da consciência por substâncias alucinógenas produz sempre mentalidades progressistas, de esquerda.

Seria um erro deixar-se ofuscar pela exuberância caricata de Angeli. Tirante os chifres e o pelego de bisão, até um engravatado como Ernesto Araújo poderia marchar com ele contra a alegada conspiração comunista, globalista, materialista e covidista que abala os alicerces do mundo livre. O chanceler, afinal, nem precisa de cogumelos mágicos para enxergar em Donald Trump um líder espiritual.

Angeli, um ator fracassado trintão que passou pela Marinha, converteu-se ao misticismo de direita com ajuda do fungo Psilocybe e do cacto peiote. Oferecia cursos pela internet em que ensinava como a reintegração com a natureza e a ingestão de plantas sagradas poderiam dissolver a programação cultural que conduz à destruição da pessoa autônoma e do planeta saudável, como mostrado neste vídeo gravado por Brian Pace, do site Psymposia, antes da retirada do site de Angeli do ar.

A imagem de hippie neonazista parece uma contradição em termos, mas não é. Existe antiga tradição romântica de retorno à natureza, de comunhão em uma unidade superior (Deus, Povo, Pátria, Raça –à escolha), que não raro ajudou a delinear quem são os degenerados a erradicar do mundo, como na ideologia nacional-socialista. Cunhou-se já o neologismo “conspiritualidade” para descrever seitas e fenômenos como Q-Anon.

Aquarela atribuída a Hitler mostra paisagem na região austríaca de Vent – Niedertal (REUTERS/Fabrizio Bensch)

“Infelizmente o elo entre extrema direita, Nova Era, teorias conspiratórias e psicodélicos não é novo nem único. Historicamente, há muitos exemplos de usos malévolos e manipuladores de psicodélicos”, diz Bia Labate, antropóloga brasileira que dirige na Califórnia o Instituto Chacruna. “Mais recentemente, tem sido desanimador ver como muitos seguidores do movimento #ThankYouPlantMedicine se revelaram por negar a existência da Covid, ser antivacina, rejeitar o uso de máscaras ou proclamar outras teorias da conspiração.”

“Mesmo que Jake [Angeli] não seja um caso único, ainda penso que os psicodélicos beneficiaram muito mais pessoas do que prejudicaram e que continuam a guardar potencial incrível para tratar distúrbios de saúde mental e enriquecer as vidas daqueles que buscam melhora e conforto espiritual.”

Não surpreende que a vertente Nova Era da cena psicodélica se mostre vulnerável a essa forma de paranoia. O viés do misticismo oferece o atalho mais fácil para dar conta das experiências de inefabilidade e deslumbramento propiciadas por compostos psicodélicos clássicos como o LSD, a psilocibina dos cogumelos, a mescalina do peiote e a DMT da ayahuasca.

Mesmo no meio acadêmico da Europa, onde se favorece o conceito de dissolução do ego para descrever o que nos EUA aparece como vivência espiritual, persiste uma tendência a identificar o resíduo de viagens psicodélicas com alterações da consciência na direção do progressismo e mesmo do ambientalismo. A chave transformadora estaria na empatia, que já se comprovou aumentar com o consumo de psicodélicos, tanto que “empatógeno” é um dos termos criados para designá-los.

Já escrevi aqui que não há razão para enquadrar o superávit psicodélico de empatia e de sensibilidade ambiental na moldura acanhada da experiência religiosa nem, menos ainda, para considerar que o enlevo místico seja componente sine qua non do benefício mental dessas substâncias. Existe um debate em curso entre pesquisadores que, como David Olson, não veem os efeitos psicodélicos subjetivos como necessários para o benefício terapêutico duradouro e aqueles que, como David Yaden e Roland Griffiths, pensam o contrário e, portanto, descartam a proposta de desenvolver compostos similares aos psicodélicos mas desprovidos de seus efeitos alucinógenos ou dissolvedores do ego.

Ainda que o acréscimo de empatia e o afrouxamento de padrões rígidos de ativação das redes cerebrais bastem para explicar o sucesso de terapias psicodélicas contra depressão, estresse pós-traumático etc., como parece ser o caso, há que tentar entender como é possível que essa flexibilização mental conduza também a atitudes e convicções tão autoritárias, agressivas e sociopáticas quanto as dos militantes trumpistas e Q-anonistas que assaltaram o Capitólio.

Carro com pintura alusiva ao movimento da teoria conspiratória Q-Anon (Caitlin O’Hara/AFP)

Uma forma de explicar essa derivação, à primeira vista paradoxal, seria recorrer a conceitos apresentados por Ido Hartogsohn no livro “American Trip: Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana: Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20): a maleabilidade amplificadora das substâncias psicodélicas e a ideia de que set e setting também têm uma dimensão cultural.

Não é fácil traduzir para o português a parelha noção de set e setting, tornada seminal entre outros por Timothy Leary. Trata-se de algo como a dupla de predisposição mental e condições ambientais em que se realiza uma viagem psicodélica, normalmente entendidas como o contexto individual e o local em que se realiza a experiência de alteração da consciência. Para Hartogsohn, entretanto, o duo também deve ser entendido no contexto da cultura e do ambiente psicossocial em que os psiconautas e os psicodélicos se encontram inseridos.

Capa do livro “Viagem Americana”, de Ido Hartogsohn

Um exemplo esclarecedor da influência mais ampla da época sobre a conceituação dessas substâncias se acha na divergência dos paradigmas teóricos sobre LSD que se estabeleceram nos anos 1950 e na transição 1960-70.

No auge da Guerra Fria e à sombra dos horrores da Segunda Guerra, a amplificação mental propiciada pelo psicodélico era entendida como indutora de um estado psicótico, o que deu origem à denominação de “psicotomiméticos” para esses compostos (ou seja, imitadores de psicose). Psiquiatras entusiasmados acreditaram então que se iniciava uma era de experimentação controlada para a disciplina antes envolta nos miasmas da fenomenologia, da experiência subjetiva e suas etiologias impenetráveis.

Por outro lado, à medida que o progresso material de parte da sociedade norte-americana contrastava mais e mais com o lado escuro do American Way (segregação racial e desigualdade no plano doméstico; intervenções militares e apoio a ditaduras na esfera internacional), o movimento dos direitos civis e de contestação à Guerra do Vietnã forneceram a moldura libertária na qual os compostos, agora chamados de “psicodélicos”, foram reenquadrados como as drogas da contracultura, da liberdade sexual e do amor à natureza.

De “imitação da psicose” à “revelação da alma” vai uma enorme distância, e foi essa transição ameaçadora para o establishment que engendrou a reação proibicionista aos psicodélicos nos anos 1970 e 1980. Transcorridas quatro décadas, o set e o setting culturais para psicodélicos mudaram radicalmente, e de certa maneira se dissociaram.

Manequim em instalação do movimento Black Lives Matter (REUTERS/Lucy Nicholson)

De um lado, eles experimentam um renascimento para a medicina, em que a psiquiatria busca valer-se de sua flexibilização mental para dissolver traumas e dar acesso a conteúdos ossificados nas redes cerebrais. De outro, metade da sociedade americana –e contingentes ponderáveis em países como o Brasil– se sente ameaçada não por russos atômicos, mas por chineses industriosos e traidores nacionais alojados no Partido Democrata, nos movimentos Me-Too e Black Lives Matter, na academia e na mídia –os “comunistas”.

Psicodélicos, entrementes, deixaram de ser monopólio da esquerda. A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), mesmo liderada por um ex-objetor de consciência como Rick Doblin, teve a sagacidade de eleger a MDMA (ecstasy, um empatógeno não alucinogênico) e o transtorno de estresse pós-traumático epidêmico entre veteranos de guerra para conduzir o teste clínico mais próximo (fase 3) de entronizar um psicodélico no altar farmacológico da psiquiatria.

Pílulas de ecstasy apreendidas em ação contra drogas adulteradas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Embora conservadores de raiz ainda se inclinem pelo proibicionismo estrito, há também uma franja Nutella, por assim dizer, natureba, nativista, mística, ou simplesmente doente da cabeça, que vê neles –como os antigos hippies– uma salvação milagrosa para o mundo. Jake Angeli é hoje o mais famigerado representante da psicose conspiritualista que a invasão do Capitólio revelou para o mundo.

Na cena psicodélica, como em tudo mais, a década de 2021 começou de modo confuso, tudo junto e misturado no liquificador de ideias, crenças e tradições oferecido pelas redes sociais. Não haveria por que substâncias tão maleáveis escaparem, só elas, de um set e um setting tão perturbador quanto a nossa época. Mais uma razão para distinguir e distanciar os psicodélicos do misticismo, mas sem perder a ternura.

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Em 2021, psicodélicos sairão do gueto e invadirão até a tela de seu celular https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/#respond Sun, 03 Jan 2021 00:35:11 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Cerebro1Plasticidade-300x137.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=224 Antes mesmo das agruras da pandemia de Covid se estimava que, nos países mais ricos, metade das pessoas receberão algum diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida. Após mais de um ano de isolamento e medo, males da alma como depressão e ansiedade vão piorar até virar outra pandemia, e os tratamentos disponíveis são limitados.

Neste caso, porém, não será preciso desenvolver uma vacina a partir do zero, ainda que em tempo recorde. A neurociência está ressuscitando uma classe de substâncias –psicodélicos como psilocibina, ecstasy, LSD e ayahuasca– estudadas há mais de 60 anos e montando com elas uma nova onda que já inunda a imprensa especializada e leiga, chega à TV aberta e em breve estará na palma de sua mão.

Neste domingo (3), o renascimento psicodélico aparecerá no Fantástico, programa dominical superfamília da Rede Globo. A julgar pelo teaser, mostrarão pesquisas brasileiras que comprovaram efeito antidepressivo rápido e prolongado da ayahuasca, chá psicoativo de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ponto para o Instituto do Cérebro da UFRN.

Devem aparecer também estudos que investigam a aplicação de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), flagelo de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. Embora não seja considerado um psicodélico clássico como LSD, MDMA é a droga mais próxima de obter aprovação oficial como medicamento.

Em 2021 os psicodélicos sairão do gueto em que foram confinados pela proibição, nos anos 1970, e se banharão na luz da ciência e da respeitabilidade. A certeza de que este será o ano da virada levou um trio de pesquisadores do Canadá a escrever longo artigo no periódico Pharmacological Review reunindo o que se sabe sobre os mecanismos de ação desses compostos em termos bioquímicos e neurológicos, um guia de 76 páginas para psiquiatras caretas. Dos receptores para serotonina e outros neurotransmissores às teorias inflamatórias e entrópicas do cérebro doente, está tudo ali.

Reprodução/Pharmacological Review

Informalmente os psicodélicos já se infiltravam pelo tecido social por meio da microdosagem com psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), ayahuasca ou LSD, ou seja, recorrer a quantidades subclínicas de psicodélicos 2 ou 3 vezes por semana. Há pouca evidência científica da eficácia dessas microdoses para aguçar criatividade e produtividade, como defendem praticantes, mas elas se tornaram o meio mais popular de buscar os benefícios mentais sem enfrentar experiências psicodélicas plenas, descasamento meio puritano e controverso buscado também por alguns pesquisadores.

Microdosagem e uso recreativo de psicodélicos, apesar de seu baixo potencial para criar dependência, não se fazem inteiramente sem riscos. Pesquisadores sérios se inquietam com a renascida popularidade dos psicodélicos, mas não são todos que preferem mantê-los sob controle estrito no cercadinho da academia.

Cápsulas de cogumelos Psilocybe moídos, usados em microdosagem (Foto de Pedro Amaral)

Um dos que não temem exposição na esfera pública é Robin Carhart-Harris, que dirige no Imperial College de Londres o pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica. Em 2020, ainda antes de completar 40 anos e sem contar com financiamento público para pesquisa, RC-H publicou seu centésimo artigo científico.

Para 2021 ele promete divulgar os resultados de um estudo em que seu grupo comparou o efeito antidepressivo de apenas duas doses de 25 mg de psilocibina diretamente com 43 doses diárias de escitalopram. Tudo indica que um dos mais modernos medicamentos disponíveis para tratar depressão não se saiu tão bem na pesquisa quanto o rival psicodélico.

Em sua última incursão além do reduto dos periódicos especializados, Carhart-Harris escreveu um comentário para a revista Wired com o título “Big Pharma está para sintonizar [tune in] o potencial dos psicodélicos”. Além da referência ao termo médio do clássico lema de Timothy Leary (Turn on, tune in, drop out), o autor profetiza: “A medicina psicodélica vai começar a invadir o domínio estabelecido [mainstream] da saúde mental em 2021”.

Carhart-Harris, à esq., e Michael Pollan, autor de “Como Mudar sua Mente”, à dir. (Reprodução/MyDelica)

Seria a terceira onda da ciência psicodélica. Na primeira, ali pelos anos 1950, predominava a concepção psicotomimética –drogas como LSD serviriam para mimetizar psicoses e permitir seu estudo controlado. Uma onda mais benigna se levantou nos anos 1960, em que a alteração da consciência mediada por psicodélicos passou a ser usada em psicoterapia e, a seguir, se tornou popular entre hippies, alavancando a contracultura, a contestação política e, por fim, a reação proibicionista.

O neurocientista britânico apoia sua profecia sobre a chegada ao mainstream (portanto o avesso do comando drop out de Leary) na explosão de artigos científicos sobre o tema, nos últimos cinco anos, e na voga de filantropos e investidores de risco que doaram US$ 30 milhões (R$ 156 mi) para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos organizar teste clínico com MDMA para TEPT e US$ 115 milhões (quase R$ 600 mi) para a empresa Compass Pathways fazer o mesmo com psilocibina para depressão.

RC-H não espera sentado pela aprovação da comunidade científica e dos órgãos reguladores aos quais caberia levantar as restrições ainda vigentes para substâncias psicodélicas. Cioso de que o uso só tende a crescer, por vias legais ou ilegais, ele fundou uma empresa e promete lançar ainda neste ano um aplicativo de celular, MyDelica, voltado para a redução de danos entre usuários.

Reprodução/MyDelica

“MyDelica oferece um marcador personalizado de progresso e um serviço de aconselhamento baseado em evidências para educar e salvaguardar jornadas psicodélicas”, promete a página provisória do app na internet. Na ilustração de como será a tela do programa no celular, acima de gráficos com marcadores e tendências de bem-estar, aparece o registro “Domingo 19 de abril”.

Reprodução/MyDelica

Não é qualquer data. Nela se comemorará o Dia da Bicicleta, para celebrar a primeira viagem com LSD, realizada em 1943 por Albert Hoffman após ingerir 250 microgramas de sua invenção no laboratório Sandoz e voltar pedalando para casa, em meio a visões psicodélicas.

Hoffman escreveu uma biografia com o título “LSD, Minha Criança Problema”. Aos 78 anos, ela enfim alcança a maturidade.

 

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Timothy Leary prova que não se fazem mais influencers como antigamente https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/#respond Mon, 28 Dec 2020 10:35:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/TimothyLeary-LectureTour-OnStage-SUNYAB-1969DennisBogdan-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=214 No começo dos anos 1970, a mudança para uma casa maior trouxe a chance de realizar o sonho dos três adolescentes: um quarto para cada um. Em lugar disso, os dois rapazes abriram mão da privacidade ao repartir um dos cômodos e concretizar no sobressalente sonho ainda mais poderoso: ter espaço exclusivo para a moçada “curtir”.

Uma das paredes foi pintada de azul escuro, e sobre ela aplicaram-se dezenas de estrelas prateadas com um molde e tinta em spray. Um colchão direto sobre o piso, coberto com colcha indiana, recebeu várias almofadas. As estampas preferidas de tecidos eram artesanais, em geral tie-dye.

Instalaram sobre estante de tábua e tijolos vazados o bem mais precioso: um conjunto de som estéreo Gradiente (amplificador, duas caixas de som e fones de ouvido) conectado ao toca-discos Garrard e ao gravador Akai de rolo. Ali se refugiavam para ouvir música, em discos de vinil emprestados (copiados em fitas BASF) por amigos mais afortunados que tinham feito intercâmbio nos EUA.

Os três jovens talvez não soubessem (um certamente não sabia), mas seguiam os conselhos psicodélicos de Timothy Leary sobre set e setting. Ou seja, queriam expandir a consciência e projetaram um ambiente acolhedor para suas viagens.

O avô de todos os influencers havia criado o lema corrosivo da contracultura: turn on, tune in, drop out (ligue, sintonize, caia fora, em tradução pobre). No Brasil se dizia “desbunde”:  mergulhar na vida interior, sob influência de música e drogas, recusando o caminho previsível estudo-trabalho-família oferecido pelo “sistema”.

Ouviam-se Beatles, Pink Floyd e Traffic em meio à fumaça de maconha. O LSD prescrito por Leary era caro e raro, mas aparecia. Os mais atirados se mandavam para Arembepe ou Caixa-Prego, na Bahia; outros conseguiam alcançar a Meca lisérgica em Londres ou Amsterdã, “num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, como cantou Gilberto Gil.

Praia de Arembepe, na Bahia (Divulgação)

Milhões de adolescentes seguiram essa trilha pelo mundo. Até hoje, meio século depois, ainda se ouvem os ecos da revolução hippie –não é por acaso que se traduziu o like das redes sociais como curtir, gíria criada na época. Filhos e netos daqueles cabeludos ainda escutam Beatles e gozam da liberdade sexual conquistada por eles.

Leary não foi o único líder de uma geração que se insurgiu contra a Guerra do Vietnã e as ditaduras militares, apenas seu profeta mais midiático. Hoje é fácil ser influencer, com YouTube e Instagram na palma da mão –e também mais efêmero. Quem acredita que daqui a 50 anos vai ter tiozão cabeça escrevendo sobre Felipe Neto ou Whindersson Nunes?

Ninguém nem sonhava com internet nos anos 1970. As ideias se propagavam de um continente a outro em LPs, livros, revistas e cartas, ou viajavam na cabeça dos abastados que conseguiam ir e voltar de avião. Leary se tornou inimigo público número um nos EUA gravando conselhos em discos de vinil e exibindo na TV seu sorriso inconfundível (no que seguia a recomendação de Marshall McLuhan, teórico pioneiro da comunicação de massa).

Capa do LP “L.S.D.”, de Timothy Leary (Reprodução)

Leary gravou três discos de propaganda psicodélica: “Turn on, Tune in, Drop out”, “The Psychedelic Experience” e “L.S.D.” (todos disponíveis no Spotify). O psicólogo banido de Harvard pelos excessos do Projeto Psilocibina fala inglês devagar, quase hipnoticamente, com longas pausas entre as frases. Não há estridência, só convite a reflexão, suavidade e bondade. Parece incrível, ouvindo-o hoje, que tenha deixado marcas tão profundas na memória coletiva que chamamos de cultura.

Timothy Leary acabou preso várias vezes, fugiu da prisão e peregrinou pelo mundo. Um câncer de próstata o matou em 1996. Seu corpo foi cremado e, dez meses depois, sete gramas das cinzas foram lançadas no espaço a bordo de um foguete Pegasus, junto com as de outras 23 pessoas –entre elas Gene Roddenberry, criador de “Jornada nas Estrelas”.

Os luminares do renascimento atual são neurocientistas e querem provar em bancadas de laboratório os benefícios mentais que Leary e seus companheiros pretendiam espalhar pelo mundo. Fazem de tudo para se desvincular de sua pregação messiânica, e têm boas razões para isso, pois foi o potencial político subversivo que deu pretexto para a reação conservadora proibicionista enterrar a ciência psicodélica por três décadas.

Sinal dos tempos, contam até com um influencer, por coincidência outro Timothy: Tim Ferriss, coach de negócios e investidor que ajudou a levantar US$ 30 milhões para os testes clínicos de MDMA (ecstasy) contra transtorno de estresse pós-traumático, que deve levar à autorização da primeira terapia psicodélica em 2023.

Estaremos ainda falando de Tim Ferriss em 2070 como hoje lembramos de Tim Leary? Meu palpite é que não se fazem mais influencers como antigamente.

Bom 2021 a todos.

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Editorial alerta para risco de ciência psicodélica descarrilar de novo https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/03/editorial-alerta-para-risco-de-ciencia-psicodelica-descarrilar-de-novo/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/03/editorial-alerta-para-risco-de-ciencia-psicodelica-descarrilar-de-novo/#respond Thu, 03 Dec 2020 22:19:21 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/railroad-163518_1280-300x194.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=132 O melhor sintoma de que a febre psicodélica está em alta aparece no suor despendido por pesquisadores pioneiros da área na defesa da pureza científica. O apelo mais recente saiu quarta-feira (2) num editorial da Jama Psychiatry, uma das publicações da Associação Médica Americana.

“Psicodélicos em Psiquiatria — Evitando que o Renascimento Saia dos Trilhos” é o título do comentário assinado por Roland Griffiths e David Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins, com Mary Yaden, da Universidade da Pensilvânia.

O renascimento a que se refere o artigo consiste na enxurrada de ensaios clínicos com psicodélicos como a psilocibina de cogumelos, a DMT da ayahuasca  e a MDMA do ecstasy, em especial a partir de 2000, para testá-los como tratamentos alternativos de vários transtornos mentais, com ênfase na depressão.

Os autores começam assinalando que o campo de pesquisa, retomado em meados da década de 2000, alcança agora a mesma idade de sua primeira encarnação, nos anos 1950-60, até ser abortada pela proscrição dessas drogas na voga reacionária diante da contracultura. E expõem o temor de que o sequestro de seus avanços científicos pela esfera da cultura e da política leve de novo ao limbo em que vegetaram por quatro décadas.

“Um trilho à frente favorece o mesmo tipo de exuberância, pensamento utópico e abordagens clínicas irregulares que contribuíram para interromper o período prévio de pesquisa”, alertam. “Combinada com a tendência contemporânea de politizar a ciência, a possibilidade de uma repetição dos anos 1960 representa uma preocupação significativa.”

Griffiths e os Yaden defendem caminho alternativo nessa encruzilhada: “Um outro trilho à frente, mais cuidadoso e sistemático, envolve a integração apropriada de tratamentos psicodélicos em paradigmas psiquiátricos existentes, baseados em evidências, tais como psicoterapia e farmacoterapia.”

Quando Griffiths fala, recomenda-se ouvir. Ele é uma das cabeças-brancas do ramo, líder e autor de vários dos estudos responsáveis pela reabilitação da pesquisa psicodélica na corte da ciência respeitável, como o trabalho de 2006 sobre experiências místicas desencadeadas por psilocibina. Nessa condição, Griffiths já apareceu mais de uma vez neste blog, como no seguinte vídeo (em inglês):

O risco existe, de fato, em especial quando se considera a onda conservadora que se abateu sobre os EUA, o Brasil e outras nações –ora em crise, se espera, com a derrota eleitoral de Donald Trump.

Todos os psicodélicos permanecem como substâncias proscritas em acordos internacionais e várias legislações domésticas, o que dificulta muito a pesquisa. A reversão desse status legal mal começou, na esteira da maconha medicinal, com os referendos sobre psilocibina em cidades e estados americanos.

Não há indícios gritantes de que a história vá se repetir, entretanto. Em lugar de hippies, militantes por direitos civis e contestadores da guerra, alguns dos apóstolos da psicodelia no presente são yuppies do Vale do Silício, de Wall Street e da Faria Lima adeptos da microdosagem de LSD e psilocibina.

Cápsulas de fungos Psilocybe secos e moídos, usadas para microdosagem (Foto Pedro Amaral)

Também brilham na renascença os neurocientistas sem preconceitos, filhos e netos daqueles cujo sonho acabou nos anos 1970. Uns e outros, nas mesas do mercado financeiro ou nas bancadas de laboratório, vislumbram ganhos polpudos com as startups que começam a brotar das universidades.

Parece um pouco exagerado o temor de gatos escaldados como Griffiths. Num reflexo muito comum da academia, ao ver seu objeto de pesquisa escapar do cercadinho das publicações científicas e de seu jargão obscuro, denunciam preventivamente a própria divulgação de seus trabalhos.

“Numerosos e recentes livros de editoras populares, websites, podcasts e reportagens na mídia têm promovido acriticamente os benefícios presumidos de psicodélicos”, acusam. “A demanda de pacientes está aumentando, assim como o interesse na população em geral, com a possibilidade de que expectativas ultrapassem os dados atuais sobre quais resultados podem ser previstos com confiança.”

“Psicodélicos não são nem cura para transtornos mentais nem saída fácil para uma vida incompleta e não devem ser apresentados como panaceia. Subculturas pró-psicodélicos, de modo agourento, estão fomentando de maneira crescente visões utópicas para a sociedade com base em achados de pesquisa que, embora intrigantes, ainda devem ser considerados preliminares.”

Em 2017, quando assisti a uma palestra de Griffiths na conferência Psychedelic Science em Oakland, ele não reagiu mal aos aplausos de hippies envelhecidos na plateia quando mencionou que ateus participantes de um estudo seu com psilocibina tinham deixado de sê-lo. Além de poucos pesquisadores corajosos como ele, foram esses psiconautas do submundo que impediram uma vitória completa do proibicionismo retrógrado.

Decerto há charlatães e irresponsáveis, numa franja de terapeutas esotéricos, prescrevendo psicodélicos em doses inadequadas ou até para quem não devia tomá-los, como pessoas com tendências ou histórico de psicose. Tampouco faltam oportunistas vendendo lotes no paraíso artificial em que a modinha “welness” encontra o misticismo de butique.

Meter essa fauna no mesmo saco de divulgadores do calibre de um Michael Pollan, como fazem os Yaden e Griffiths na Jama Psychiatry ao não dar nome aos bois, equivale a cuspir no prato em que se comeu. O livro “Como Mudar sua Mente”, de Pollan, fez provavelmente mais para ressuscitar o prestígio da pesquisa psicodélica do que uma dúzia de artigos em periódicos especializados.

O escritor Michael Pollan, em sabatina da Folha de S.Paulo (Fabio Braga/Folhapress 2014)

Pollan, assim como outros jornalistas de ciência que fazem a quente a crônica do renascimento psicodélico, não são propagandistas. Ancoram-se nas publicações científicas de neurocientistas para separar o joio do trigo, mas também se valem de experiências pessoais com psicodélicos para descrever com propriedade o que nelas se vislumbra de potencial terapêutico –o mesmo fazem muitos pesquisadores do ramo, aliás.

Este blog também enfrentou restrição em sua estreia. Receio que meu livro “Psiconautas” (no prelo, programado para 2021) receba o mesmo tipo de reparo. Repito aqui, preventivamente, o que respondi então:

A função do jornalista é noticiar o que for relevante para possíveis tratamentos de transtornos mentais. Claro, sempre ressalvando que ainda são pesquisas experimentais, não autorizadas para uso disseminado.

Cabe ao psiquiatra e ao pesquisador fazerem o mesmo, seja para repórteres, seja para pacientes. Todos os três –jornalistas, cientistas e profissionais de saúde– precisam caminhar juntos na direção de esclarecer o público sobre o funcionamento da ciência.

Acrescento agora: o caminho é longo e nos fará suar muito, mas não há como se desviar dele, nem parece correto lançar companheiros de viagem debaixo do trem.

*

ADENDO em 05.12.2020: Depois de publicar esta nota, assisti ontem à noite ao minidocumentário “A História da Johns Hopkins” (42 mins.), primeiro capítulo da série Foco em Pesquisa Clínica, da Horizons. Muito bom, sobretudo as entrevistas esclarecedoras de Roland Griffiths e Matthew Johnson. Mas percebo algum ruído entre as cautelas adiantadas por Griffiths no editorial da Jama Psychiatry (comentado acima) e a apresentação bem entusiasmada dos estudos clínicos sobre potencial terapêutico de psicodélicos para depressão, anorexia, Alzheimer, alcoolismo, tabagismo… Pode parecer panaceia, algo que Griffiths pede que NÃO se pregue.

Além disso, ele também deu muita ênfase no minidoc para a qualidade mística da experiência psicodélica, outra marca registrada dos tempos da contracultura, movimento que teria desencadeado a reação conservadora proibicionista e inviabilizado a pesquisa.

 

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