Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Sete erros e sete acertos com psicodélicos na série de TV ‘Nove Desconhecidos’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/#respond Sun, 26 Sep 2021 21:01:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/9ddesconhecidosNicole-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=652 “Só os psicodélicos (se) salvam” seria um resumo apropriado, ainda que enigmático, para a série da Hulu “Nove Desconhecidos”, em cartaz na plataforma Amazon Prime Video. Até Nicole Kidman, no papel de Masha, sai chamuscada da narrativa canhestra sobre a renascença dessas drogas para a medicina.

Os nove desconhecidos são clientes que chegam para dez dias de “transformação” no spa Tranquillum, comandado pela guru russa com apenas três auxiliares (Yao, Delilah e Glory). Zero faxineiros, cozinheiros e camareiros, mas pululam os erros, dos quais se destacarão os sete mais gritantes.

Antes, um pouco de contexto. Existem, sim, spas psicodélicos, por exemplo na Jamaica e na Costa Rica, assim como clínicas sérias no Brasil e turismo xamânico no Peru.

Não é por causa dessa indústria marginal, porém, que se ouve falar tanto das substâncias. E, sim, porque a ciência está a ponto de ressuscitá-las para tratar transtornos mentais, como se pôde acompanhar aqui ao longo dos últimos 12 meses.

É muito provável que em 2023 o MDMA (ecstasy, bala, Michael Douglas) termine autorizado nos EUA para psicoterapia para estresse pós-traumático. Depois deverá ser a vez da psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos” (gênero Psilocybe), em investigação para condições como depressão, ansiedade, TOC, anorexia e outros transtornos.

Agora, os sete erros (se quiser evitar spoilers, pare por aqui):

  1. Ausência de consentimento – Masha dá psilocibina misturada aos smoothies servidos ao longo do di sem o conhecimento dos hóspedes. Até o mais maluco dos gurus psicodélicos evitaria esse abuso, pois em qualquer país daria cadeia mesmo que não se tratasse de drogas psicoativas. A série não deixa claro nem se a personagem de Kidman está qualificada para ser terapeuta.
  1. Participante desequilibrado – O estafe de Tranquillum pesquisou e escolheu a dedo os nove clientes, o que torna incompreensível incluir Carmel, uma mulher transtornada, com passado violento e biografia cruzada com Masha. Em testes clínicos de psicodélicos, qualquer tendência ou histórico de psicose da pessoa ou na família próxima serve como critério de exclusão. Como se pode ver na TV, a mancada quase sai caro para a guru.
  1. Dosagens seguidas – O pessoal do spa fala várias vezes num protocolo nunca detalhado, mas fica evidente que as doses estão sendo ministradas todos os dias, ou quase. Ninguém desperdiçaria psilocibina assim, pois, como os psicodélicos clássicos LSD e mescalina, a repetição implicaria perda de efeito pela rápida tolerância que desencadeiam.
  1. Mistura de psicodélicos – Em certa altura Masha, Yao e Delilah discutem a antecipação do protocolo com inclusão de LSD no coquetel. Por mais que alguns adeptos gostem de misturar compostos psicoativos ao mesmo tempo (já vi gente usando ayahuasca, rapé, maconha e sananga na mesma noite, como narro no livro “Psiconautas”), nenhum terapeuta responsável seguiria por aí. Os efeitos podem se compor de maneira imprevisível e fazer mais mal do que bem (sem falar na tolerância cruzada de LSD e cogumelos, que agem sobre os mesmos receptores de serotonina).
  1. Alucinação coletiva – É a parte mais dura de engolir no drama da Hulu. A família composta por Napoleon Marconi, sua mulher Heather e a filha Zoe quer livrar-se do trauma pelo suicídio de Zach, gêmeo de Zoe, e Masha os convence de que uma dose alta de LSD (ou psilocibina, não fica de todo claro) trará o rapaz de volta. Já seria fantasioso além da conta, mas os três acabam tendo a mesma alucinação, participando de diálogo a quatro com o defunto.
Zoe (Grace van Patten) e Masha (Nicole Kidman) em “Nove Desconhecidos” (Foto: Dvilgação/Amazon Prime)

É verdade que muito da cultura psicodélica bordeja com o misticismo e que alguns rituais tradicionais são descritos como acesso ao mundo dos mortos. O enredo parece atribuir a Zoe um poder mediúnico amplificado pelo ácido, o bastante para invocar a aparição também para os pais, mas o abraço simultâneo dos três com o suicida resulta numa das cenas menos convincentes e mais constrangedoras.

  1. Envolvimento da terapeuta – Para piorar as coisas, Masha resolve tomar a droga junto com os Marconis. Supostamente, no esforço de convencê-los da segurança do composto (mas ela esconde que seu objetivo é conjurar outro morto). Qualquer manual sobre uso seguro de psicodélicos contraindicaria essa prática, mesmo que não se tratasse de um terapeuta.

Sempre se recomenda haver uma pessoa sóbria por perto, para eventuais emergências como viagens ruins, surtos e mal-estares. Delilah fugiu para chamar a polícia, pois acha que Masha passou dos limites. Yao está ocupado com Carmel. Glory se dedica a tourear o restante do grupo revoltado. Não sobrou nenhum adulto na sala.

  1. Experiência artificial de quase-morte – Por orientação de Masha, que já se encontra para lá de Marrakech, Glory tranca os hóspedes remanescentes num salão preparado para simular um incêndio e levá-los a acreditar que vão morrer. A ideia tresloucada é que a proximidade do desfecho final os force a considerar o que de fato importa na vida, blá-blá-blá.

Ninguém duvida de que uma vivência terminal possa ser transformadora para muita gente. Mas, de novo, soa despropositado que o efeito seja alcançado ao mesmo tempo e na mesma situação fortuita, coletivamente, por meia dúzia de pessoas. Além disso, se a série se baseia no poder dos psicodélicos, por que o artifício de recorrer a um recinto para suscitar a experiência? Faria mais sentido utilizar de forma controlada a 5-MeO-DMT, substância de forte e curto impacto comumente descrito como completa dissolução do ego.

Masha até menciona de passagem os termos técnicos “set” e “setting”, aludindo às disposições mentais do psiconauta e as condições do ambiente consideradas fundamentais para uma boa viagem, mas não passa de mesura inconsequente à melhor ciência psicodélica. Não há preparação digna do nome para os participantes sobre o que os espera, muito menos integração dos conteúdos psíquicos e emocionais que vão aflorando. Não espanta que tudo se encaminhe para um caos alarmante.

No oitavo e último capítulo, contudo, como em qualquer novela mequetrefe de TV, tudo se resolve. É pena que o passe de mágica obscureça tudo de verdadeiro que a série captou de fiel sobre a experiência psicodélica. Seria possível escrever uma apreciação inteira com, digamos, sete acertos de “Nove Desconhecidos”, por exemplo:

Sim, com psicodélicos é comum a pessoa aceitar melhor a própria mortalidade. Idem com traumas de infância, perda de pessoas próximas, desilusões amorosas. Como diz Zach, tudo que se vê sob efeito dessas drogas é irreal, está só na cabeça de quem toma e não no mundo exterior.

A empatia cresce de modo notável. Viagens ruins acontecem, mas são raras e podem ter rendimento terapêutico. Casais se tornam mais próximos, o sexo melhora. O psiconauta fica propenso a relevar defeitos, remorsos e más ações, em si e nos outros.

Essas sete coisas corretas estão lá no drama televisivo, o que lhe confere certo aspecto positivo. Também seria possível enxergar a série como uma espécie de denúncia dos riscos inerentes à esfera meio clandestina de curadores, pseudoterapeutas e xamãs improvisados que receitam psicodélicos como se fossem água benta. Não são.

Essa leitura benevolente de “Nove Desconhecidos” se esboroa no capítulo final. O caos não se consuma por força de suposto poder superior dos psicodélicos, que prevalece mesmo após a chegada da polícia. Até Masha se safa, misteriosamente, dos crimes patentes que cometeu em nome da força dessas substâncias.

Só os psicodélicos (se) salvam da série problemática. E com ela só se reforça o excesso de expectativas com eles, como se fossem a panaceia final, a salvação da humanidade, a bala de prata contra o sofrimento do mundo pós-pandemia –e não substâncias de trabalho, úteis para psicoterapia e autoconhecimento, mas que não trazem nada para quem está só em busca de soluções fáceis.

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A Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa nesta terça-feira (28 de setembro). Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

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Experimento brasileiro mapeia curas e loucuras na terra incógnita do LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/#respond Tue, 13 Jul 2021 02:15:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/BISPOROSARIOfolhapressRicardoBorges-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Quem já tomou LSD conhece bem a mistura de clareza e perturbação mental induzida pela droga psicodélica. Graças a um grupo brasileiro de pesquisa com epicentro na Unicamp o mapa desse paradoxo ganha mais detalhes, contribuindo para esclarecer como uma experiência que tem algo de psicótica pode também ser terapêutica.

O trabalho, obtido com exclusividade pelo blog, sai publicado nesta terça-feira (13) no periódico Psychological Medicine sob o título “LSD, Loucura e Cura: Experiências Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutico”. É o primeiro estudo no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, quando se interromperam pesquisas feitas por exemplo na USP.

Participaram do experimento de Isabel Wießner, psicóloga alemã que faz doutorado na universidade paulista, 24 adultos com contato anterior com a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na abreviação original do alemão). O orientador de Isabel na Unicamp, psiquiatra Luís Fernando Tófoli, figura como autor sênior do artigo.

Cada pessoa tomou 50 microgramas da droga numa sessão e placebo na outra, separadas por 14 dias, sem saber em qual delas ingeriu o quê. Ao longo de oito horas, fazia testes e preenchia questionários na presença da psicóloga e de um psiquiatra, Marcelo Falchi, que também desconheciam qual substância o participante havia ingerido. No dia seguinte de cada sessão, mais uma bateria com duas horas de testes.

Os outros autores são Fernanda Palhano-Fontes e Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Amanda Feilding, da Fundação Beckley (Reino Unido), uma condessa britânica que ajudou a financiar o estudo.

A ferramenta para destrinchar o componente loucura do LSD foi um questionário que mede saliência aberrante, a tendência a destacar e emprestar sentido especial a objetos e pensamentos que normalmente não receberiam a mesma atenção. É o que psiquiatras chamam de atribuição patológica de significado, uma distorção cognitiva que a viagem psicodélica compartilha com estágios iniciais de psicose.

Mesmo trabalhando com uma dose baixa de LSD, chamada de “psicolítica” nos tempos pré-proibição (décadas de 1950/60) em que a droga era empregada em psicoterapia, o experimento confirmou aumento da saliência aberrante na comparação com o dia de placebo. O questionário se compõe de perguntas sobre a pessoa ter experimentado emoções agudas relacionadas com coisas ou ideias, ou a sensação de que algo importante está para acontecer, a iminência de compreender significados elusivos.

(Ilustração: Rodrigo Visca)

Outros testes também indicaram as alterações lisérgicas da percepção características do estado psicodélico, sobretudo visuais. Esta é uma diferença marcante com as alucinações de esquizofrênicos crônicos, em que predomina o sentido da audição (“ouvir vozes”) e a convicção de que se trata de manifestação real, engendrando o que se chama de ideia delirante.

“Os pesquisadores viram que, de fato, nos voluntários o LSD foi capaz de provocar uma diferença nas respostas, na escala de saliência aberrante, quando comparado ao placebo. Tal observação pode contribuir para explicar o mecanismo pelo qual pessoas com depressão ou sintomas de traumas passados mudaram suas crenças e atitudes após experiência pontuais ou repetidas de psicodélicos”, diz André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Negrão não participou do estudo, mas integrou a banca de qualificação de Isabel para o doutorado. Em sua avaliação, “o artigo é mais um atestado da produtividade e da sofisticação dos estudos feitos por pesquisadores dos dois centros, Unicamp e Natal.”

O componente terapêutico foi escrutinado no estudo por meio do conceito de sugestionabilidade. De olhos fechados, o participante era convidado a imaginar tão fielmente quanto conseguisse situações como o peso de livros empilhados sobre uma das mãos, ou o cheiro e sabor de uma fruta, e depois avaliava quão realista havia sido a sensação.

Como seria de esperar, as diferenças entre o estado alterado e o estado placebo foram estatisticamente significativas. Esse fenômeno pode ser útil em psicoterapia porque facilitaria a superação de barreiras, na medida em que o paciente se mostra mais inclinado a acatar sugestões para se aprofundar em cenas, pessoas ou temas marcantes ou dolorosos de sua biografia, por exemplo buscando imagens que possam representar os sentimentos associados.

“A sugestão é um processo fundamental na hipnoterapia, em que o paciente entra em estado de transe e consegue experimentar de modo mais fácil e vívido o que o terapeuta sugere, por exemplo visualizar uma relação difícil com a mãe, criar um símbolo para concretizar essa relação e trabalhar com esse símbolo”, exemplifica Isabel, que pesquisou hipnose para tratamento de dor em seu mestrado na Universidade de Jena.

Ela queria investigar outros estados alterados de consciência desencadeados por substâncias com potencial curativo, mas psicodélicos são proibidos na Alemanha. Depois de fazer um curso com Tófoli sobre ayahuasca, chá psicoativo legalizado no Brasil para uso religioso, decidiu-se por um doutorado na Unicamp.

A pesquisadora buscou também possíveis correlações entre a intensidade da experiência psicodélica (como distorções nos sentidos de tempo e espaço) e os resultados obtidos com as diferentes escalas empregadas no estudo, incluindo as que medem aspectos “místicos” (dissolução do ego, sentimento de unidade com uma totalidade maior que o indivíduo, ou o que algumas descrevem como participação no divino). Cabe aqui lembrar o óbvio: correlação não implica causalidade, mas pode ser uma pista.

Encontraram-se correlações fortes entre o grau relatado do estado psicodélico e saliência aberrante, mas não com sugestionabilidade. Ou seja, embora a capacidade de sugestionar-se tenha aumentado, assim como no caso da saliência (a medida mais associada com o caráter subjetivo “místico”), os dois incrementos não ocorreram necessária e proporcionalmente nos mesmos indivíduos, nem se detectou paralelismo estatístico significativo no grupo.

“O fato de experiências místicas terem importância em diversas áreas, da ‘loucura’ (experiências psicóticas) até a ‘cura’ (efeito terapêutico) indica que essas experiências possivelmente têm papel importante na saúde mental”, conjetura Isabel. Com efeito, a correlação entre o nível de qualidade “mística” na viagem psicodélica e o benefício terapêutico foi apresentada num trabalho célebre de Roland Griffiths em 2006.

“Um candidato ou candidata a terapeuta psicodélico deveria estar ciente de que os psicodélicos parecem ser capazes de induzir os dois lados (‘cura’ e ‘locura’) que parecem ter uma faceta de experiência mística em comum, estar preparado para ajudar o paciente a aceitar os dois lados e tentar promover e guiar a conexão entre esses dois aspectos para entender e melhorar a saúde mental.”

Para Tófoli, “a ideia não é criar uma ‘psicose artificial’ para estudar a esquizofrenia (que apresenta muitos outros sintomas além daqueles apresentados pelo LSD), e sim estudar um estado ‘caótico’, de aumento de entropia, que tem algumas semelhanças com a psicose”. Produzir uma psicose artificial em ambiente controlado  era o objetivo de pesquisadores como Clóvis Martins, cuja tese de livre docência na USP em 1964 se enquadrava no chamado paradigma “psicotomimético”.

“No nosso caso, estamos chamando a atenção da correlação da saliência aberrante com experiências que estão associadas com respostas a sintomas mentais, especificamente no caso das experiências místicas.”

O psiquiatra chama atenção para a necessidade de, no eventual uso do LSD para psicoterapia, dedicar atenção crucial para a dose, a cautela do terapeuta ao manejar a sugestionabilidade, a disposição mental do paciente (set) e as condições em que a sessão de dosagem acontecer (setting): ao invés de patologizar o que os psicodélicos provocam, propõe-se que o estado de entropia aumentado pode, desde que em set e setting adequados, desencadear experiências potencialmente positivas.

“Estar atento ao que se sugere em um futuro uso terapêutico de doses psicolíticas de LSD é muito importante, assim como acolher eventuais experiências místicas e de atribuição especial de significados –por vezes, inclusive, precisando ancorar alguma ‘viagem exagerada’ do paciente, principalmente em sessões de integração.”

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Tófoli lembra que uma das indicações do Delysid (nome comercial do LSD distribuído pelo laboratório suíço Sandoz até os anos 1960) era justamente indicá-lo para que psiquiatras e terapeutas o tomassem para entender melhor os estados psicóticos.

“Embora pouco discutida atualmente, eu considero essa indicação extremamente válida, desde que os profissionais em questão não estejam em grupos de risco, ou seja, não tenham tendências ou histórico de psicose. Pessoalmente, a experiência com psicodélicos certamente me abriu os olhos para entender melhor e desenvolver maior empatia pelo que passam os pacientes psicóticos.”

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Este blog está precisando de férias. Volta sem falta em agosto.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)

 

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Psicodélicos enfrentam falso dilema farmacologia X autoconhecimento https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/#respond Sun, 28 Mar 2021 19:50:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/PORTAO2WikicommonsMarcinSzala-234x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=388 A popularidade acadêmica dos psicodélicos só faz crescer. O periódico JAMA Psychiatry, ao fazer um balanço dos 110 artigos de pesquisa que aceitou publicar entre os 2.190 recebidos em 2020, destacou um trabalho da Universidade Johns Hopkins (JHU) sobre psilocibina e depressão como um dos três textos mais lidos do ano.

Os outros dois versavam sobre saúde mental em tempos de Covid-19, um deles sobre suicídios. O artigo sobre psicodélicos não incluía a pandemia no título ou no resumo, largando mais atrás, portanto, na competição pelo interesse de especialistas.

Tamanho destaque só ressalta a visibilidade que o tema ganhou em anos recentes –aí incluído o cabo-de-guerra entre quem vê no renascimento psicodélico uma oportunidade bilionária para a indústria farmacêutica e os que nele enxergam a reversão da voga proibicionista que impediu, por quatro décadas, o acesso a fontes de bem-estar conhecidas há milênios.

A revista figura entre as de maior impacto no ramo da psiquiatria; os artigos que publica terminam citados em média por 17,5 outros estudos (dado de 2019). O estudo da JHU foi visto no ano passado por 118 mil interessados, e nestes primeiros meses de 2021 já somou mais 63 mil leitores, totalizando 181 mil. Em menos de cinco meses, já foi citado 11 vezes.

(Reprodução)

Toda essa atenção deriva de dois fatores. O primeiro está no fato de que grande parcela das pessoas que sofrem com transtornos mentais (depressão, estresse, ansiedade, dependência química etc.) não encontram alívio nas terapias farmacológicas disponíveis, como antidepressivos. Psiquiatras e pacientes precisam desesperadamente de alternativas.

O outro componente do interesse em alta decorre do enorme mercado que esses desassistidos representam. Já se estimou que possa ultrapassar US$ 400 bilhões anuais (R$ 2,3 trilhões).

Daí a corrida de pesquisadores e empresários investidores para serem os primeiros a ocupar espaço no novo território psicodélico. Seus veículos preferidos para conquistar o terreno sem dono são patentes e o reconhecimento por agências reguladoras, que abririam as portas para remuneração de tratamentos por planos de saúde privados ou públicos.

Nas duas últimas semanas, a controversa empresa britânica Compass Pathways obteve mais duas patentes nos Estados Unidos para sua versão sintética (COMP360) da psilocibina de cogumelos “mágicos” usada no tratamento de formas graves de depressão. A companhia já detinha uma patente, fonte do temor de que ela venha dificultar aplicações semelhantes do psicoativo dos fungos Psilocybe.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Essa forma de enquadrar o renascimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização farmacológica dos distúrbios mentais. Todo e qualquer transtorno, visto dessa perspectiva, decorreria de falta ou excesso de substâncias no cérebro, como o neurotransmissor serotonina (não por acaso um dos mais afetados pelos psicodélicos clássicos como psilocibina, LSD, mescalina e DMT).

Tratar esses transtornos, então, seria questão apenas de interferir na bioquímica cerebral desbalanceada. Há defensores até de que se usem microdoses ou compostos sintéticos que atuem sobre os mesmos receptores neuronais mas não desencadeiem efeito psicodélico completo, pondo em dúvida o papel terapêutico de alucinações, distorções na percepção de tempo e espaço, experiências místicas e a chamada dissolução do ego.

Um representante destacado dessa corrente mais reducionista é David E. Olson, da Universidade da Califórnia em Davis. Ele fundou a empresa Delix Therapeutics, que tem por lema “Reconectar o Cérebro para Curar a Mente” e se propõe a “aplicar as ferramentas do desenvolvimento farmacêutico a algumas das terapias mais antigas da natureza, os psicodélicos”.

Olson assina o editorial de um número inteiramente dedicado a psicodélicos do periódico ACS Pharmacology & Translational Science, da Sociedade Americana de Química. O título é “A Promessa da Ciência Psicodélica”. A edição especial promete “expor a incrível gama de pesquisas sendo feitas para elucidar como os psicodélicos impactam a função cerebral –estudos que abrangem os níveis molecular, celular e organísmico”.

Há uma outra vertente de pesquisa que, mesmo não abrindo mão das ferramentas analíticas da biomedicina contemporânea, tampouco desdenha do saber acumulado por xamãs, psiconautas, terapeutas pré- ou pós-proibicionistas e condutores de testes clínicos de psicoterapia assistida por psicodélicos. Mais especificamente, gente que respeita a importância do set (disposição ou propósito mental) e do setting (situação em que se dá a viagem) para o eventual resultado terapêutico.

Não se trata de engolir uma pílula e esperar o resultado do feitiço bioquímico sobre os neurônios. Nos estudos experimentais mais próximos de obter aprovação de reguladores com a força da FDA (agência americana de fármacos), como no caso de MDMA para estresse pós-traumático, os participantes se submetem a várias sessões de terapia e só em algumas delas ingerem alguma droga enteogênica ou empatogênica.

Por trás da técnica está a noção de que a viagem empreendida sob efeito do composto psicoativo, algumas vezes de caráter místico, tem ela própria valor curativo. Além disso, esses candidatos a remédios –ainda são substâncias ilegais, cabe lembrar –ajudam a derrubar barreiras que impedem acesso a memórias e pensamentos, contribuindo para a psicoterapia propriamente dita nas sessões subsequentes de integração.

Ilustração de Speedy McVroom (Pixabay)

Numa palavra, em jogo está o autoconhecimento, não uma intervenção misteriosa operada pelas moléculas no tecido cerebral, à revelia da consciência. A própria tentativa em curso de capturar esse processo na moldura da prática clínica encontra seus críticos, que a classificam no mesmo processo de medicalização a fomentar a expectativa de curas milagrosas.

Tal é o alerta de Jonathan Dickinson e Dimitri Mugianis no artigo “Por que pesquisadores de saúde mental estudam psicodélicos de maneira inteiramente errada” na Salon: “O uso médico de drogas psicodélicas é retratado na mídia como uma bênção para profissionais de saúde mental, com relatos de resultados aparentemente miraculosos para tratar algumas das questões de saúde mental mais significativas que nossa época enfrenta”.

“Embora aplaudamos os esforços que estão em andamento para a descriminalização e estejamos entusiasmados com o potencial de aprendizado com a fortuna de praticantes tradicionais e clandestinos, muita coisa se perderá no processo de medicalização.” (Agradeço a Stevens Rehen pela indicação desse texto provocador.)

Com efeito, existe um tipo de purismo ou puritanismo farmacológico para o qual seria melhor livrar-se da bagagem contracultural, alternativa ou mística, das práticas subterrâneas e do que chamam pejorativamente de uso recreativo. Mas foi isso tudo que manteve os psicodélicos vivos mesmo sob o obscurantismo da Guerra às Drogas declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971.

À luz dessa história, revela-se falso o dilema entre ciência contemporânea objetiva e técnicas de autoconhecimento há muito praticadas. O vigor do campo psicodélico vem do hibridismo, da fertilização cruzada entre as duas formas de investigação da psique (para escapar da dicotomia entre mente e cérebro) que sempre produziram frutos maravilhosos –e tanto mais quando caminham juntas, como pretendo defender neste curso:

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Xamã da invasão do Capitólio dá golpe no mito do psicodélico de esquerda https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/xama-da-invasao-do-capitolio-da-golpe-no-mito-do-psicodelico-de-esquerda/#respond Sun, 10 Jan 2021 19:29:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/JakeAngeliREUTERSStephanieKeith-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=232 Jake Angeli, símbolo do delirante assalto fracassado ao Congresso dos EUA na quarta-feira (6), se apresenta nas redes sociais como Lobo de Yellowstone, um xamã psicodélico. Suas páginas de autopropaganda já caíram, e com elas rui também a ideia de que a alteração da consciência por substâncias alucinógenas produz sempre mentalidades progressistas, de esquerda.

Seria um erro deixar-se ofuscar pela exuberância caricata de Angeli. Tirante os chifres e o pelego de bisão, até um engravatado como Ernesto Araújo poderia marchar com ele contra a alegada conspiração comunista, globalista, materialista e covidista que abala os alicerces do mundo livre. O chanceler, afinal, nem precisa de cogumelos mágicos para enxergar em Donald Trump um líder espiritual.

Angeli, um ator fracassado trintão que passou pela Marinha, converteu-se ao misticismo de direita com ajuda do fungo Psilocybe e do cacto peiote. Oferecia cursos pela internet em que ensinava como a reintegração com a natureza e a ingestão de plantas sagradas poderiam dissolver a programação cultural que conduz à destruição da pessoa autônoma e do planeta saudável, como mostrado neste vídeo gravado por Brian Pace, do site Psymposia, antes da retirada do site de Angeli do ar.

A imagem de hippie neonazista parece uma contradição em termos, mas não é. Existe antiga tradição romântica de retorno à natureza, de comunhão em uma unidade superior (Deus, Povo, Pátria, Raça –à escolha), que não raro ajudou a delinear quem são os degenerados a erradicar do mundo, como na ideologia nacional-socialista. Cunhou-se já o neologismo “conspiritualidade” para descrever seitas e fenômenos como Q-Anon.

Aquarela atribuída a Hitler mostra paisagem na região austríaca de Vent – Niedertal (REUTERS/Fabrizio Bensch)

“Infelizmente o elo entre extrema direita, Nova Era, teorias conspiratórias e psicodélicos não é novo nem único. Historicamente, há muitos exemplos de usos malévolos e manipuladores de psicodélicos”, diz Bia Labate, antropóloga brasileira que dirige na Califórnia o Instituto Chacruna. “Mais recentemente, tem sido desanimador ver como muitos seguidores do movimento #ThankYouPlantMedicine se revelaram por negar a existência da Covid, ser antivacina, rejeitar o uso de máscaras ou proclamar outras teorias da conspiração.”

“Mesmo que Jake [Angeli] não seja um caso único, ainda penso que os psicodélicos beneficiaram muito mais pessoas do que prejudicaram e que continuam a guardar potencial incrível para tratar distúrbios de saúde mental e enriquecer as vidas daqueles que buscam melhora e conforto espiritual.”

Não surpreende que a vertente Nova Era da cena psicodélica se mostre vulnerável a essa forma de paranoia. O viés do misticismo oferece o atalho mais fácil para dar conta das experiências de inefabilidade e deslumbramento propiciadas por compostos psicodélicos clássicos como o LSD, a psilocibina dos cogumelos, a mescalina do peiote e a DMT da ayahuasca.

Mesmo no meio acadêmico da Europa, onde se favorece o conceito de dissolução do ego para descrever o que nos EUA aparece como vivência espiritual, persiste uma tendência a identificar o resíduo de viagens psicodélicas com alterações da consciência na direção do progressismo e mesmo do ambientalismo. A chave transformadora estaria na empatia, que já se comprovou aumentar com o consumo de psicodélicos, tanto que “empatógeno” é um dos termos criados para designá-los.

Já escrevi aqui que não há razão para enquadrar o superávit psicodélico de empatia e de sensibilidade ambiental na moldura acanhada da experiência religiosa nem, menos ainda, para considerar que o enlevo místico seja componente sine qua non do benefício mental dessas substâncias. Existe um debate em curso entre pesquisadores que, como David Olson, não veem os efeitos psicodélicos subjetivos como necessários para o benefício terapêutico duradouro e aqueles que, como David Yaden e Roland Griffiths, pensam o contrário e, portanto, descartam a proposta de desenvolver compostos similares aos psicodélicos mas desprovidos de seus efeitos alucinógenos ou dissolvedores do ego.

Ainda que o acréscimo de empatia e o afrouxamento de padrões rígidos de ativação das redes cerebrais bastem para explicar o sucesso de terapias psicodélicas contra depressão, estresse pós-traumático etc., como parece ser o caso, há que tentar entender como é possível que essa flexibilização mental conduza também a atitudes e convicções tão autoritárias, agressivas e sociopáticas quanto as dos militantes trumpistas e Q-anonistas que assaltaram o Capitólio.

Carro com pintura alusiva ao movimento da teoria conspiratória Q-Anon (Caitlin O’Hara/AFP)

Uma forma de explicar essa derivação, à primeira vista paradoxal, seria recorrer a conceitos apresentados por Ido Hartogsohn no livro “American Trip: Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana: Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20): a maleabilidade amplificadora das substâncias psicodélicas e a ideia de que set e setting também têm uma dimensão cultural.

Não é fácil traduzir para o português a parelha noção de set e setting, tornada seminal entre outros por Timothy Leary. Trata-se de algo como a dupla de predisposição mental e condições ambientais em que se realiza uma viagem psicodélica, normalmente entendidas como o contexto individual e o local em que se realiza a experiência de alteração da consciência. Para Hartogsohn, entretanto, o duo também deve ser entendido no contexto da cultura e do ambiente psicossocial em que os psiconautas e os psicodélicos se encontram inseridos.

Capa do livro “Viagem Americana”, de Ido Hartogsohn

Um exemplo esclarecedor da influência mais ampla da época sobre a conceituação dessas substâncias se acha na divergência dos paradigmas teóricos sobre LSD que se estabeleceram nos anos 1950 e na transição 1960-70.

No auge da Guerra Fria e à sombra dos horrores da Segunda Guerra, a amplificação mental propiciada pelo psicodélico era entendida como indutora de um estado psicótico, o que deu origem à denominação de “psicotomiméticos” para esses compostos (ou seja, imitadores de psicose). Psiquiatras entusiasmados acreditaram então que se iniciava uma era de experimentação controlada para a disciplina antes envolta nos miasmas da fenomenologia, da experiência subjetiva e suas etiologias impenetráveis.

Por outro lado, à medida que o progresso material de parte da sociedade norte-americana contrastava mais e mais com o lado escuro do American Way (segregação racial e desigualdade no plano doméstico; intervenções militares e apoio a ditaduras na esfera internacional), o movimento dos direitos civis e de contestação à Guerra do Vietnã forneceram a moldura libertária na qual os compostos, agora chamados de “psicodélicos”, foram reenquadrados como as drogas da contracultura, da liberdade sexual e do amor à natureza.

De “imitação da psicose” à “revelação da alma” vai uma enorme distância, e foi essa transição ameaçadora para o establishment que engendrou a reação proibicionista aos psicodélicos nos anos 1970 e 1980. Transcorridas quatro décadas, o set e o setting culturais para psicodélicos mudaram radicalmente, e de certa maneira se dissociaram.

Manequim em instalação do movimento Black Lives Matter (REUTERS/Lucy Nicholson)

De um lado, eles experimentam um renascimento para a medicina, em que a psiquiatria busca valer-se de sua flexibilização mental para dissolver traumas e dar acesso a conteúdos ossificados nas redes cerebrais. De outro, metade da sociedade americana –e contingentes ponderáveis em países como o Brasil– se sente ameaçada não por russos atômicos, mas por chineses industriosos e traidores nacionais alojados no Partido Democrata, nos movimentos Me-Too e Black Lives Matter, na academia e na mídia –os “comunistas”.

Psicodélicos, entrementes, deixaram de ser monopólio da esquerda. A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), mesmo liderada por um ex-objetor de consciência como Rick Doblin, teve a sagacidade de eleger a MDMA (ecstasy, um empatógeno não alucinogênico) e o transtorno de estresse pós-traumático epidêmico entre veteranos de guerra para conduzir o teste clínico mais próximo (fase 3) de entronizar um psicodélico no altar farmacológico da psiquiatria.

Pílulas de ecstasy apreendidas em ação contra drogas adulteradas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Embora conservadores de raiz ainda se inclinem pelo proibicionismo estrito, há também uma franja Nutella, por assim dizer, natureba, nativista, mística, ou simplesmente doente da cabeça, que vê neles –como os antigos hippies– uma salvação milagrosa para o mundo. Jake Angeli é hoje o mais famigerado representante da psicose conspiritualista que a invasão do Capitólio revelou para o mundo.

Na cena psicodélica, como em tudo mais, a década de 2021 começou de modo confuso, tudo junto e misturado no liquificador de ideias, crenças e tradições oferecido pelas redes sociais. Não haveria por que substâncias tão maleáveis escaparem, só elas, de um set e um setting tão perturbador quanto a nossa época. Mais uma razão para distinguir e distanciar os psicodélicos do misticismo, mas sem perder a ternura.

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‘Ibogaína’ não alucinógena mantém potencial contra dependência química https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/#respond Mon, 14 Dec 2020 14:39:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=169 Pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram a façanha de criar uma versão do psicodélico ibogaína que não causa alucinações, aparentemente, nem importa risco para o coração. Se conseguirem comprovar eficácia em seres humanos, seria uma grande promessa para o tratamento de dependência química.

Ibogaína é uma substância psicoativa derivada do arbusto Tabernanthe iboga, usado ritualmente pela etnia Bwiti, em países africanos como o Gabão e Camarões.  Ela lança a pessoa num estado onírico que pode durar um dia inteiro, ou mais.

Nos anos 1960, descobriu-se nos EUA sua capacidade de diminuir sintomas agudos da crise de abstinência em dependentes de heroína e de conter a urgência imperiosa de consumir a droga (“fissura”). Apesar de proibida, alguns países –como o Brasil– admitem o uso excepcional da ibogaína como tratamento para dependência química, com taxas de sucesso que chegam a superar 60%.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

O médico Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), administrou o composto a centenas de pacientes, assim como o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínia (SP). É mais que recomendável contar com acompanhamento médico durante a viagem da ibogaína, porque a droga afeta o ritmo do coração e pode ser fatal, cuidado nem sempre disponível em clínicas clandestinas.

Na literatura médica há registro de 22 mortes após uso da substância entre 1990 e 2015. Uma revisão de 19 casos de óbito após ibogaína indicou em 2012 que 12 dos 14 deles para os quais havia prontuários médicos detalhados envolviam distúrbios cardíacos prévios ou consumo concomitante de outras drogas, como cocaína.

O laboratório de David Olson na Universidade da Califórnia descreveu na revista Nature da semana passada como foi capaz de modificar a molécula de ibogaína e chegar à síntese de um análogo da substância que os autores afirmam não ser alucinógeno. Chamaram o composto de tabernanthólogo (TBG) e sustentam que a variante não altera perigosamente batimentos cardíacos, tampouco.

“É um trabalho revolucionário”, diz o neurocientista Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa efeitos terapêuticos da ayahuasca. “Abre a possibilidade única de investigar melhor quanto do efeito terapêutico nasce da bioquímica e quanto da experiência subjetiva em si [referindo-se ao estado onírico].”

A equipe de Olson, no entanto, testou o novo composto apenas com roedores. Outras substâncias psicodélicas que também atuam sobre o receptor 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, como LSD e psilocibina, provocam nos bichos um movimento característico da cabeça aceito por pesquisadores como correlato de alucinações.

Os experimentos mostraram que o TBG promove neuroplasticidade, ou seja, a formação de novas conexões entre neurônios que se acredita estar na origem dos benefícios terapêuticos de psicodélicos. Além disso, testes padronizados provaram que o TBG também reduz nos animais o consumo compulsivo de álcool e heroína, além de produzir efeitos análogos a antidepressivos.

Crescimento de espículas em dendritos de neurônios (setas azuis) indica neuroplasticidade após ibogaína (esq.) e TBG (dir.) (Reprodução da Nature)

O artigo indica ainda que obter TBG é mais simples que produzir ibogaína, pois a síntese química envolve apenas um passo, contra 9 a 16 para o composto original, e rende mais. Em resumo, projetaram uma droga que parece ter a mesma capacidade da ibogaína de tratar dependência química, mas desprovida do que chamam de “inaceitável perfil de segurança” –só falta comprovar isso em seres humanos.

“Ratos não têm experiências místicas”, brinca Araújo, da UFRN, para indicar que o trabalho de Olson e colegas toca num ponto nevrálgico do renascimento dos psicodélicos como drogas alternativas promissoras para tratar transtornos mentais: pressupõe-se que os conteúdos psíquicos produzidos ou aflorados durante as viagens sejam imprescindíveis para o progresso terapêutico.

Um estudo sobre ibogaína de Thomas Brown, Geoff Noller e Julie Denenberg no periódico Journal of Psychoactive Drugs defende que o efeito onirogênico da droga é decisivo para quebrar a dependência, ou pelo menos tão importante (pelas memórias e traumas que permite aflorar e que ficam disponíveis para elaboração psíquica das raízes da dependência) quanto o efeito farmacológico (neuroplasticidade).

A pergunta que Olson suscita é se, ao supostamente deletar o impacto alucinógeno, a TBG também não arriscaria cortar pela metade o potencial terapêutico antidependência. Restando apenas a modulação bioquímica, centrada no receptor serotoninérgico 5HT2A, o sonho de livrar-se da dependência talvez não se materialize em pessoas.

Araújo conta que, no caso do estudo de seu grupo que mostrou efeito antidepressivo rápido e duradouro da ayahuasca contra depressão, ambos os ingredientes –farmacologia e vivência subjetiva– parecem contribuir para o resultado terapêutico. Além disso, o efeito psicodélico não se resume ao alvo 5HT2A, e substâncias psicoativas atuam sobre vários outros receptores e sistemas, cada uma com um perfil peculiar.

O neurocientista brasileiro aponta, para reforçar seu raciocínio sobre a complexidade dos efeitos, que há mais serotonina espalhada pelo organismo do que no cérebro. No entanto, psicodélicos agem mais sobre a mente do que no restante do corpo.

Nicole Galvão-Coelho, coautora de Araújo na pesquisa sobre depressão, já demonstrou a capacidade da ayahuasca de modular tanto a neuroplasticidade quanto níveis de cortisol (hormônio do estresse) e um efeito anti-inflamatório.

O LSD, por seu lado, tem forte influência sobre a dopamina. Cetamina e escetamina, sobre o glutamato. MDMA, sobre a noradrenalina.

“Efeitos psicodélicos não estão necessariamente associados só com o receptor 5HT2A, é uma simplificação. Existem vários antidepressivos que atuam sobre a serotonina e não provocam experiências visuais”, ressalva Araújo. “Há outras danças por trás dos psicodélicos.”

Argumento parecido apareceu numa série de tuítes do psicólogo Matthew Johnson, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins: “Há um pouco de debate sobre o alvo errado. [Olson] não defende que efeitos subjetivos não possam ser terapêuticos. Provavelmente há múltiplos mecanismos subjacentes à eficácia da terapia psicodélica, e formas de neuroplasticidade podem ser uma delas”.

“Precisamos nos afastar de falsos debates entre experiência/psicologia e biologia, e pensar de maneiras mais nuançadas. A experiência, afinal de contas, tem uma biologia também.”

A antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna na Califórnia, se incomoda com abordagens muito reducionistas da questão: “A ciência procura separar os efeitos e chegar na suposta ‘essência’ da ‘cura’. A busca por uma droga ‘clean’, sem efeitos alucinógenos, deve ser entendida dentro de um cenário maior”, defende.

“Por um lado, uma tentativa moral de eliminar os supostos aspectos alucinógenos da experiência, que são vistos com ‘negativos’ ou ‘errados’. E, por outro, em função de interesses econômicos, isto é, patentear certos achados.”

Labate esteve em 2001 em Camarões para conhecer em profundidade os rituais da iboga. Do ponto de vista das populações tradicionais, de onde essas substâncias provêm, a cura é holística, explica.

“As concepções de enfermidade envolvem não só aspectos físicos, mas a relação dos humanos entre si, e entre humanos e não humanos. A cura advém da comunhão de plantas, que contêm múltiplos alcaloides, e da experiência mística e coletiva.”

 

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Ilusões psicodélicas não são patológicas e podem até fazer enxergar melhor https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/#respond Tue, 08 Dec 2020 01:43:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/FOTOOLHOSidney-Goncalves-Do-Carmo-300x169.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=148 Aborrecido com a conversa interminável, um homem de seus 60 anos deixa o grupo, caminha poucos metros pelo caminho de terra e para debaixo de uma árvore. Faz três horas que tomou cerca de 150 microgramas de LSD –uma dose cheia, mas não heroica, do psicodélico. Seu olhar é atraído para cima, e ele duvida do que vê.

A árvore está viva, viva demais. Claro, toda árvore vive, diz para si próprio, mas é mais que isso. Não há vento. Uma seção do tronco se move de forma lenta e lânguida, como uma serpente enorme. A casca da madeira tem padrões geométricos de amarelo, marrom e verde. Sabe que é uma ilusão, e se alegra com a chance de ver a árvore como se fosse a primeira vez que vê uma.

Passam alguns segundos de embevecimento confuso. A serpente vegetal ganha aos poucos os contornos de uma mulher. Os desenhos geométricos coalescem como estampa de sua blusa. A realidade real se impõe de modo brutal na visão de uma bermuda jeans. O momento mágico se desfaz: ele está, de fato, diante de uma moça que subiu na árvore, uma das companheiras de viagem no sítio da Grande São Paulo. Ri –de si mesmo, da convicção poderosa e fugaz propiciada pela visão.

O que são essas visões mediadas por psicodélicos, afinal? Quais mecanismos psíquicos lhes dão origem? No que elas diferem ou se aproximam das alucinações produzidas não por drogas, mas por transtornos psiquiátricos como os do espectro da esquizofrenia ou por distúrbios neurológicos como certas formas de demência? Como podem os psicodélicos carregar potencial terapêutico, por exemplo para tratar depressão, se seu efeito reproduz sintomas similares aos de graves patologias?

A neurociência ainda não tem repostas completas para essas questões, ainda que venha dando passos decididos nessa direção. O Consórcio Internacional para Pesquisa de Alucinações (ICHR, na sigla em inglês) mapeou o que se sabe sobre a matéria em vários níveis, da farmacologia às imagens funcionais do cérebro e das áreas envolvidas, passando pela fenomenologia, isto é, os relatos de experiências vividas por pessoas que têm visões ou alucinam.

Não seria o caso, aqui, de entrar nos detalhes do artigo publicado, no periódico Schizophrenia Bulletin, por Pantelis Leptourgos e uma penca de colaboradores, com o título “Alucinações sob psicodélicos e no espectro da esquizofrenia: Uma comparação interdisciplinar e multiescalar”. O leitor terá de se contentar com um resumo muito superficial e imperfeito, mas fica a recomendação para enfrentar o estudo original (em inglês).

A primeira semelhança descrita entre os dois tipos de alucinação, o psicodélico e o psiquiátrico, está uma redução na integridade e na estabilidade de redes funcionais do cérebro. Ou seja, uma espécie de relaxamento nos padrões de disparos simultâneos de neurônios em diferentes áreas cerebrais quando a pessoa se encontra em determinados estados (sono, vigília, atenção, introspecção etc.).

Uma rede importante aqui, da qual muito se ouvirá falar neste blog, é a rede de modo padrão (mais conhecida como DMN, na sigla em inglês). Ligada à introspecção, ela normalmente só fica ativa quando silenciam outras redes mobilizadas na realização de tarefas, com atenção voltada para o exterior –é o que se chama de anticorrelação, ou ortogonalidade, um funcionamento mais ou menos excludente que também se enfraquece durante a emergência de alucinações na esquizofrenia e com o uso de alguns psicodélicos, como a psilocibina.

Outra similaridade apontada no artigo é a atribuição às visões do que os autores denominam como forte sentido metafísico. As vozes ouvidas pelo esquizofrênico são percebidas por ele como vozes reais, não fabricações suas. O tronco coberto de desenhos geométricos que se contorce lentamente aparece na viagem psicodélica como revelação da verdadeira essência viva e feminina do vegetal, embora não passe de uma mulher que trepou na árvore.

Há algumas diferenças marcantes, porém. Psicodélicos turbinam disparos principalmente em áreas de córtex sensorial primário, enquanto na psicose a superativação afeta redes associativas. No primeiro caso, são transitórias, desaparecem com intervenção de pensamentos racionais e quando passa o efeito da droga; no segundo, manifestam-se de maneira crônica.

O primeiro estudo a evidenciar a ativação de córtex visual primário por um psicodélico –no caso, ayahuasca– foi realizado por brasileiros e publicado em 2012, no periódico Human Brain Mapping, pelo grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN. O artigo de Leptourgos, incrivelmente, não cita o trabalho pioneiro.

Alucinações e ilusões psicodélicas são predominantemente visuais, em geral geométricas, mas sem perda completa do senso de realidade. Já as psicóticas são comumente auditivas, vozes que o doente não consegue distinguir de vozes reais. Nas duas situações, porém, as visões vêm carregadas de intenso significado.

Leptourgos e colegas consideram alguns modelos teóricos que poderiam explicar o funcionamento normal do cérebro e o que nele se altera no curso de alucinações. Para eles, em ambos os casos ocorrem perturbações do mecanismo computacional identificado como processamento preditivo, vale dizer, das funções cerebrais que mobilizam conteúdos prévios para interpretar o que chega pelos sentidos e decidir o que fazer ou pensar a respeito. Desfeita a perturbação, a árvore-mulher maravilhosa volta a ser uma simples mulher na árvore.

Pense no cérebro como um filtro. Uma cacofonia de dados sensoriais tem de ser processada para ganhar sentido, na forma de hipóteses que vão sendo testadas com base em tudo que fixou na memória do que a pessoa viveu e aprendeu, até que ela ou ele conclua algo a respeito (não necessariamente de modo consciente). A trama do filtro que peneira as associações se compõe das redes de neurônios que se habituaram a disparar juntos para gravar o que se viveu e aprendeu de forma significativa.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Outro artigo esclarecedor sobre o tema, “Unificando teorias sobre efeitos de drogas psicodélicas”, foi apresentado em 2018 por Link Swanson, da Universidade de Minnesota, na revista Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology. O modelo do processamento preditivo, mostra Swanson, é apenas uma de várias construções teóricas fundadas na metáfora do filtro –uma história de mais de um século de tentativas de explicação da consciência e suas alterações que vão sendo aperfeiçoadas e abarcam de William James a Henri Bergson e de Sigmund Freud a Aldous Huxley.

O cérebro entrópico proposto por Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, está entre elas. Nessa concepção, a mente em condições normais se encontra num equilíbrio ótimo entre ordem e desordem, com redes como a DMN flexíveis o bastante para permitir adaptação do sujeito a novas circunstâncias e estáveis o suficiente para manter a unidade do self (ou do ego, como diria Freud).

Esse tipo de modelo permite também ir além do paradoxo na oposição entre o terapêutico e o patológico que as alterações visuais colocam para as substâncias psicodélicas, que por muito tempo foram chamadas também de drogas psicotomiméticas, pois induziriam uma imitação de estados psicóticos. Esse paradigma foi abandonado, em grande parte, a partir dos anos 1960, quando as diferenças entre a alteração da consciência nas “viagens” psicodélicas e o delírio psicótico foram ficando evidentes e as terapias psicodélicas ganharam espaço.

A explicação envolvendo a DMN sugere que, em transtornos como a depressão, a rede como que entra em parafuso, entregue à rigidez e repetição de pensamentos negativos, por assim dizer um excesso de ordem que culmina na ruminação incessante. O potencial terapêutico dos psicodélicos adviria, então, justamente de sua capacidade de relaxar a DMN, vale dizer, de reduzir sua integridade e estabilidade (aumentando a entropia), ao mesmo tempo em que arrefece a anticorrelação dela com redes mais voltadas para execução de tarefas e atenção voltada ao exterior.

Muito simplificadamente, uma atividade cerebral menos balizada pela ordem permitiria a emergência ou construção de novos percursos mentais. Caminhos alternativos, lampejos incomuns, hipóteses mais ousadas que não são descartadas de pronto como irrelevantes, deixando assim de sucumbir ao filtro implacável das memórias marcadas a ferro e fogo na psique, não raro por traumas incandescentes. Abrem-se frestas por entre as quais, como nas alucinações lisérgicas, interpretações impensáveis podem aparecer banhadas na luz da realidade.

Há uma mulher na árvore, e é verdade. A mente capaz de entender que há mais de um sentido nessa afirmação e de discernir o que é emocionante do que é apenas real e, mais, que não há contradição necessária entre uma coisa e outra –eis a mente de uma pessoa com mais chance de ser menos infeliz.

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Entenda o significado do termo ‘psicodélico’, melhor que ‘alucinógeno’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/#respond Mon, 30 Nov 2020 11:40:53 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/MandalasSpeedyMcVroomPixabay-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=126 Quando alguém ouve a palavra “psicodélico”, é quase certo que lhe venha à mente figuras super coloridas, cheias de curvas, motivos geométricos, labirintos fractais, talvez alguns elementos místicos. O vocábulo ficou associado com o estilo característico da “poster art”, a marca mais visível da contracultura dos anos 1960 e 1970.

Trata-se de uma redução indevida. O efeito psicodélico, ou seja, o tipo de experiência mental desencadeada com o consumo de LSD, psilocibina (cogumelos ditos “mágicos”) e DMT (presente na ayahuasca), vai muito além das manifestações visuais, mas estas acabaram por se tornar o símbolo das viagens propiciadas, inclusive para depreciar essas substâncias com o termo “alucinógeno”, que tem algo de pejorativo.

Ver coisas que não existem de verdade, afinal, se parece muito com o que seria um surto psicótico, para o senso comum. A pessoa ficaria “muito louca”. Alucinados, como se diz, usuários cometeriam desatinos como pular de uma janela, atirar o carro num precipício, atacar companheiros transformados em monstros –essa a noção que conservadores proibicionistas trabalharam para colar aos psicodélicos, com razoável sucesso.

Não é bem assim, como sabe quem já os experimentou mais de uma vez. Cores sensacionais na natureza, sim, belezas capazes de levar a pessoa às lágrimas. Enxergar lindas figuras geométricas e caleidoscópicas de olhos fechados, isso é bem comum. Porém, há psiconautas tarimbados que nunca viram, de olhos abertos, seres fantásticos andando pelo mundo.

Ilustração de Rodrigo Visca

Viagens ruins (“bad trips”) acontecem, mas são raras: entre 62% e 74% de usuários de LSD declararam, para uma pesquisa global sobre consumo de drogas, nunca ter passado por uma dessas experiências penosas. Mortes, então, ainda mais incomuns.

Por essas associações espúrias, não simpatizo com o termo “alucinógeno”. Isso embora possa ter um uso bem preciso –LSD, DMT e psilocibina, afinal, podem sim causar alucinações, em especial quando a dose é alta. O leitor o encontrará em mais de uma nota, neste espaço, mas de maneira bem menos frequente que “psicodélico”.

O termo que qualifica a virada no nome do blog foi cunhado no ano em que nasci, 1957, pelo médico britânico Humphry Osmond. Numa troca de cartas com o conterrâneo Aldous Huxley, autor do livro “As Portas da Percepção”, Osmond rejeitou a proposta do escritor de criar a palavra “fanerótimo”, algo como “revelador do espírito”, defendendo a alternativa “psicodélico”. O significado era parecido, “manifestador da mente, ou alma”.

Se o neologismo pegou, foi com razão. A vivência psicodélica envolve muito mais que os “visuais” de que tanto gostavam os hippies brasileiros, ou as “mirações” contempladas por cultuadores da ayahuasca. Pela qualidade mística da experiência que o chá, cogumelos Psilocybe e peiote (mescalina) propiciam em contextos religiosos, há quem prefira o termo “enteógeno” (indutor de êxtase divino ou xamânico, etimologia parecida com a de “entusiasmo”).

Num artigo de revisão de 2017 na revista Neuropharmacology, o pesquisador suíço Matthias Liechti listou os efeitos do LSD descritos em pesquisas ao longo de 25 anos (sim, realizaram-se muitos estudos, antes e depois da proibição, com o composto lisérgico inicialmente distribuído pelo laboratório Sandoz sob a marca Delysid):

– bem-estar

– sinestesia

– alterações da percepção

– despersonalização

– experiências místicas

– sentimento de proximidade com outros

– confiança

– sugestionabilidade

– empatia aumentada

– reação menor a imagens de medo

– resposta emocional aumentada a música

– níveis aumentados dos hormônios cortisol, prolactina e ocitocina

– redução de ansiedade etc.

Alterações mentais observadas em pessoas sob efeito de três doses de LSD, 75, 100 e 200 microgramas, segundo revisão na literatura de Matthias Liechti (Reprodução)

Não admira que LSD e congêneres psicodélicos clássicos como DMT e psilocibina tenham voltado a entrar na mira da pesquisa neurocientífica e psiquiátrica. Assim como o psicodélico não alucinógeno MDMA (base do ecstasy), em estudos experimentais essas drogas –que continuam proibidas, cabe lembrar– têm produzido resultados promissores.

A proposta é usar essas substâncias que reduzem medo e aumentam empatia como adjuvantes para psicoterapia em transtornos como depressão e estresse pós-traumático. Talvez para livrar-se da bagagem contracultural do vocábulo “psicodélico”, houve quem defendesse o emprego do termo “empatógeno” (causador de empatia) para designar o ecstasy, por exemplo, que não dá margem a visuais e alucinações.

Não colou muito. Um dos argumentos contra ele é a semelhança indesejável, ao ouvido do paciente, com “patógeno” (causador de doença), como defendeu David Nichols. O pesquisador americano propõe, em seu lugar, a variante “entactógeno”, para salientar a propriedade de “produzir um contato interior”, ou seja, pôr a pessoa diante de sua própria alma, revelar-lhe os cantos escuros da mente.

Ora, é bem o que “psicodélico” significa. Se era isso que os hippies buscavam, tanto melhor para eles –e, talvez, para seus descendentes, se a renascida ciência psicodélica prosseguir evidenciando que essas substâncias carregam mais benefícios do que faz crer a propaganda alucinada dos proibicionistas.

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Suíços questionam papel terapêutico de alucinações e dissolução do ego https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/suicos-questionam-papel-terapeutico-de-alucinacoes-e-dissolucao-do-ego/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/suicos-questionam-papel-terapeutico-de-alucinacoes-e-dissolucao-do-ego/#respond Mon, 23 Nov 2020 21:19:14 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/PensadorPsicodelicoJRKorpaPixabay-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=114 As alterações visuais e o apagão das fronteiras do self são efeitos típicos de psicodélicos clássicos como LSD, ayahuasca e psilocibina (cogumelos “mágicos”), mas não da MDMA (ecstasy). Estudo suíço com a última substância vem pôr em dúvida que alucinações e dissolução do ego sejam componentes necessários do benefício terapêutico desses compostos, atualmente sob investigação.

Todos eles vêm sendo testados como potenciais tratamentos para transtornos mentais, com destaque para a depressão. Pela ausência de “viagens”, entretanto, muitos nem consideram a MDMA um verdadeiro psicodélico, preferindo chamá-la de empatógeno (causador de empatia) ou entactógeno (facilitador de contato interior), para distingui-la dos alucinógenos.

Essas drogas atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina, envolvido na modulação de várias funções (humor, sono, libido etc.), em especial o receptor rotulado como HT2A, de onde se originaria seu efeito antidepressivo. Afetam também outros neurotransmissores, como a dopamina (MDMA ainda tem efeito sobre a noradrenalina).

Apesar dessas diferenças marcantes com os compostos clássicos, MDMA foi o que mais avançou na trilha de autorização para tratar uma condição específica, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). É o carro-chefe da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na abreviação em inglês) na corrida à FDA, agência de fármacos dos EUA, para aprovar novos tratamentos.

Comprimidos de ecstasy adulterado identificados em pesquisa que encontrou anfetamina, metanfetemina,cetamina, cafeína etc. nas pílulas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Felix Müller e colaboradores da Universidade da Basileia decidiram investigar a hipótese de que efeitos psicodélicos tradicionais constituam apenas um epifenômeno da ingestão dessas drogas. Vale dizer, um efeito colateral sem relação com o impacto terapêutico esperado.

No artigo publicado sexta-feira (20) no periódico Neuropharmacology eles não explicitam que viagens representam a grande fonte de preconceito contra as terapias psicodélicas, por causa da associação com a contracultura e a reação proibicionista. Mas isso tem algo a ver com a escolha do ecstasy pela Maps, assim como o TEPT –um transtorno mental de veteranos de guerra, heróis por excelência de conservadores americanos.

Os pesquisadores da Suíça esmiuçaram efeitos no cérebro de 45 pessoas que tomaram MDMA ou placebo. Fizeram isso com ajuda de imagens de ressonância magnética funcional, que mapeiam a atividade em diversas regiões e redes cerebrais.

No foco principal esteve a rede de modo padrão, mais conhecida pela sigla em inglês DMN. Esse conjunto de conexões entre áreas cerebrais está relacionado com introspecção e se mostra ativo demais em distúrbios que implicam ruminações de pensamentos e sentimentos negativos, como a depressão.

Áreas e redes cerebrais investigadas no artigo da revista Neuropharmacology (Reprodução)

Atribui-se ao relaxamento da DMN o efeito antidepressivo dos psicodélicos, já constatado com ayahuasca em pioneiro teste clínico controlado brasileiro e também em ensaios avançados com psilocibina. Os suíços constataram um padrão semelhante de redução nas conexões internas dessa rede sob efeito da MDMA, assim como em outras áreas.

Como o ecstasy não origina alucinações nem dissolução do ego, surge de pronto a pergunta sobre a contribuição ao benefício terapêutico oferecido por essas alterações psíquicas mais características, se é que têm alguma. O conteúdo das visões, assim como a experiência mística associada à dissociação do ego, vistos desse ângulo, poderiam ser menos importantes para o tratamento do que se supôs até agora.

Não deixa de ser um reforço para a perspectiva que privilegia o enquadramento neurofarmacológico das terapias psicodélicas, do qual emergiria em destaque a MDMA. Cairiam para um segundo plano, assim, as psicoterapias psicodélicas clássicas que mobilizam a dissociação egoica como componente pivotal do que se poderia descrever como reset terapêutico.

O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, ressalva que a MDMA é também o composto menos seguro na aplicação clínica, por atuar sobre a noradrenalina, que acelera batimentos cardíacos. São conhecidos, ainda que raros, os casos de hipertermia (superaquecimento) e até mortes em decorrência do uso recreativo de ecstasy em baladas.

“Não é o caso de dispensar uma nem outra opção. Precisamos de mais pesquisas sobre os entactógenos, sobre quais casos psiquiátricos têm potencial”, recomenda Tófoli. “É importante pesquisar todos os compostos, sem desprezar o potencial terapêutico dos psicodélicos clássicos.”

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