Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Este blog está de mudança https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/este-blog-esta-de-mudanca/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/este-blog-esta-de-mudanca/#respond Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=778 Caro leitor,

Este blog continua na Folha, mas, agora, em um novo endereço. Acesse folha.com/viradapsicodelica para continuar lendo tudo que o Virada Psicodélica publica.

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Podcasts destacam oportunidades e riscos da onda psicodélica

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Parapsicodélicos pretendem alavancar bilhões no mercado de saúde mental https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/#respond Mon, 29 Nov 2021 14:50:15 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/GREEDYBRAIN-300x147.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=772 O renascimento psicodélico está à beira de um cisma: a ultrapassada dicotomia entre química e experiência subjetiva se reencarna, agora, na oposição entre investidores recém-chegados obcecados com a neuroquímica e tradicionalistas que cultuam a alteração da consciência e a dissolução do ego como fundações do tratamento de transtornos mentais, como a depressão.

Não se trata apenas de crenças filosóficas ou modelos explicativos concorrentes para o potencial de cura dos psicodélicos, mas sim de abordagens díspares sobre como a nascente terapia alternativa será incorporada no mercado de serviços de saúde. Ou, se quiserem, um embate dos parapsicodélicos contra os psicodélicos como os conhecemos.

De um lado, os esteios são patentes, startups, regulamentação por autoridades sanitárias e cobertura dos novos protocolos de tratamento por seguradoras de saúde. Neste caso, a rentabilidade cresceria muito se eles empregassem drogas de efeito curto, de preferência sem risco de ocasionar viagens psicodélicas complicadas ou até mesmo sem envolver psicoterapia prolongada.

Na outra vertente, herdeiros de uma longa tradição de práticas xamânicas e clínicas alternativas subterrâneas trabalham por preservar, em parceria com a renascida ciência psicodélica, a ênfase no cuidado e na elaboração psíquica legados pelo uso tradicional de substâncias psicodélicas.

No campo aqui apelidado de parapsicodélico se esboçam três modelos de negócio para explorar no mercado o potencial para tratar condições que vão de depressão resistente a medicamentos até enxaqueca, passando por estresse pós-traumático, dependência química, ansiedade, TOC, anorexia e, talvez, Alzheimer.

O primeiro modelo ainda se encaminha para manter no tratamento o componente psicoterápico, restrito porém a uma dúzia de encontros com facilitadores. O processo começaria com reuniões para preparo do paciente sobre o que esperar da experiência com psicodélicos, depois sessões de dosagem e, em seguida, de integração (conversas para interpretar conteúdos emergentes e obter pistas úteis para conduta na vida cotidiana).

Empresas como a Compass Pathways planejam cercar com patentes o pacote todo, de sua variedade purificada da psilocibina de cogumelos “mágicos”, alcunhada COMP360, ao protocolo de atendimento. A propriedade intelectual sobre substâncias e práticas milenares, entretanto, vem sofrendo intensa resistência.

Mesmo essa modalidade enfrentaria alguns obstáculos no contexto usual de serviços de atendimento, pela longa duração do efeito da psilocibina, MDMA, LSD e ayahuasca e outros compostos psicodélicos em estudo (de 4 a 12 horas). O ideal seria contar com drogas de efeito curto como a cetamina (ou ketamina), substância dissociativa com ação diversa de psicodélicos clássicos como LSD e psilocibina.

A cetamina vem sendo usada com algum sucesso no tratamento rápido de depressão. Ela tem as vantagens de ser manejável em consultas de 1 a 2 horas e de estar legalizada, inclusive com a recente autorização para psiquiatras ministrarem a variante escetamina na forma de spray antidepressivo patenteado.

 

Nessa busca por psicodélicos de duração curta se engajou Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), agraciado com US$ 27 milhões (R$ 150 milhões) da agência americana Darpa (Projetos em Pesquisa Avançada de Defesa). Ele vai liderar um grupo de laboratórios no esforço de projetar medicamentos eficazes contra depressão, ansiedade e abuso de substâncias “sem efeitos adversos graves”.

Por força dessa limitação temporal emerge uma segunda estratégia, ainda como proposta experimental, para encaixar terapias psicodélicas no mercado: desenvolver moléculas com efeito psicodélico cujo efeito não ultrapasse duas horas. Essa é uma das linhas em estudo pelos acionistas da Atai Life Sciences, que é também uma grande investidora na Compass, e pela Field Trip Health, do Canadá, segundo reportagem de Will Yacowicz na Forbes.

A terceira via para exploração de psicodélicos em saúde mental vai além e pretende livrar-se completamente do que se chama de viagem, o efeito dissociativo e alucinógeno desses compostos. Esse é o plano por exemplo de David Olson, da Universidade da Ca;ifórnia em Davis.

Olson já publicou estudo sobre uma droga análoga à ibogaína que desenvolveu com a finalidade de oferecer uma alternativa a esse derivado de uma planta africana para tratar dependentes químicos, mas desprovido do prolongado e intenso efeito onírico desencadeado pela substância originária do Gabão. Ele é um dos fundadores da empresa Delix Therapeutics, de Boston, que também tem depressão e demência na mira.

Imagem de Robert Couse-Baker (Creative Commons)

Ninguém está ainda ganhando dinheiro com um desses três modelos tecnocientíficos de negócio, mas eles já permitiram levantar quantidades consideráveis de capital. A eles se contrapõem pelo menos outras três estratégias para fazer o potencial terapêutico dos psicodélicos chegar ao público hoje desassistido pela farmacopeia psiquiátrica.

As três se caracterizam por não terem fins lucrativos, por reivindicar-se como herdeiras da tradição de cura e autoconhecimento dos tempos da contracultura e por não se ancorar na propriedade intelectual para se sustentar, embora não a excluam. O trio alternativo já foi mais de uma vez apresentado neste blog, por isso não seria o caso de estender-se sobre elas:

  1. O modelo de corporação sem fins lucrativos seguido pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) em seu esforço de décadas para regulamentar o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático com psicoterapia assistida por MDMA, o que pode acontecer em 2023;
  2. A estratégia de ciência aberta capitaneada pelo Instituto Usona na competição com a Compass em ensaios clínicos da psilocibina para depressão, inclusive com o patrocínio de um repositório de estudos e saber tradicional sobre cogumelos “mágicos” e outros psicodélicos de uso ritual, Porta Sophia, para questionamento de patentes pela existência de conhecimento prévio;
  3. A inovadora experiência em curso no estado americano de Oregon para licenciamento de terapias com psilocibina, certificação e controle de procedência da composto e formação de terapeutas especializados, em paralelo com a progressiva descriminalização do uso adulto de várias drogas ditas “enteogênicas” (termo alternativo, menos estigmatizado, para designar psicodélicos).

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

 

 

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Sexo, drogas e revertério ameaçam reputação de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/22/sexo-drogas-e-reverterio-ameacam-reputacao-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/22/sexo-drogas-e-reverterio-ameacam-reputacao-de-psicodelicos/#respond Mon, 22 Nov 2021 10:54:53 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/PIXOcogu-300x190.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Psicodélicos têm uma longa história com sexualidade, a começar pelo amor livre dos hippies que, corrosivo como seu pacifismo, antecedeu a proibição do LSD e outras substâncias alteradoras da consciência. Há também um lado perverso e antigo nessa relação, como a recusa da homossexualidade e os abusos sexuais, um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico.

A imagem positiva ressuscitada pela neurociência, agora como tratamentos promissores para transtornos psíquicos da gravidade da depressão, não combina com a ideia de que possam ser usadas em terapias de conversão, a chamada “cura” gay. Como relata Clancy Cavnar, nos anos 1960/70 o LSD chegou a ser usado com a finalidade suposta de tratar homossexuais, inclusive por terapeutas cultuados até hoje como Stanislav Grof (ainda que somente com pacientes atormentados por sua condição sexual).

“Os terapeutas que usavam psicodélicos para mudar orientação sexual nos anos 1960 e 1970 eram pioneiros que, baseados na compreensão limitada da homossexualidade na época, estavam experimentando, embora isso estivesse sem dúvida prejudicando os pacientes, não eram movidos por fervor religioso ou negação da ciência, esclarecida desde então”, diz a terapeuta da Califórnia, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco.

“Duvido que os poucos provedores remanescentes da terapia de conversão, que já foi denunciada amplamente como prejudicial e ineficaz, estejam bem informados sobre psicodélicos ou vejam algum potencial neles, pois são em geral programas baseados em religião.”

Cavnar, que dirige o Chacruna ao lado da antropóloga brasileira Bia Labate, dedicou sua tese de doutorado em psicologia aos “Efeitos da Participação em Rituais de Ayhuasca sobre Autopercepção de Gays e Lésbicas”, de 2011. Ela cita no texto um documento interno da religião ayahuasqueira União do Vegetal (UDV), de 2008, no qual os dirigentes afirmam: “… jamais podemos concordar com a prática do homossexualismo visto que contraria a origem natural da existência humana, ou seja, o relacionamento entre o homem e a mulher, dando início à geração”.

Procurada para esclarecer se mantém a doutrina condenatória da homossexualidade, a UDV limitou-se a reiterar nota enviada ao jornalista Carlos Minuano no ano passado para a reportagem “ ‘Psicodelia de Direita’: polarização se acirra entre usuários de ayahuasca”.

Na nota, sem repudiar a “posição religiosa” de 2008, a entidade diz que “seu objetivo é trabalhar pelo ser humano no sentido do desenvolvimento de suas virtudes morais, intelectuais e espirituais, sem distinção de cor, sexo, ideologia política, credo religioso ou nacionalidade”. E ainda: “A UDV aceita todos que a procuram, sem nenhum tipo de preconceito, prejulgamento ou discriminação.”

“Há uma ênfase em ideais como o ‘equilibro cósmico’, a ‘sagrada família’, a ‘divina união do masculino e feminino’, a ‘união dos opostos’ etc., que acaba servindo como base para um discurso heteronormativo, patriarcal e machista”, diz a antropóloga Bia Labate. “Nesse sentido a ‘cura dos gays’ passa a ser um projeto e uma missão. Infelizmente, isto é muito comum.”

Em contexto clínico profissional, não religioso, essa “conversão” parece hoje impensável, em particular depois que a homossexualidade deixou de ser considerada patologia, ainda nos anos 1970. No entanto, como há pelo menos um líder da UDV (Luís Felipe Belmonte) e até médicos e psicólogos na esfera bolsonarista, não seria de todo surpresa se essa gente recorrer à dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, ou outro psicodélico, para reconduzir ovelhas desgarradas ao que consideram caminho natural da virtude.

“Usar a ayahuasca para ‘converter gays’, eufemismo para ‘evolução’ ou ‘transformação espiritual’, é inaceitável”, afirma Labate. “Sabemos que muitas pessoas dentro da UDV são contra o manifesto antigay. Essas vozes precisam ser apoiadas.”

Esse abuso potencial, que decerto viria prejudicar a reabilitação progressiva dos psicodélicos para a medicina, contrasta com outro, este sim um perigo real, antigo e presente: assédio. Abusos sexuais cometidos por terapeutas profissionais e curandeiros são tão velhos quanto a noção de que esses compostos forneçam panaceias para tudo.

Obra sem título de Edgard de Souza no Inhotim (Foto Marcelo Leite)

O enredo, que não precisa envolver substâncias psicoativas, é arquiconhecido de escândalos como o de João de Deus, Roger Abdelmassih ou Prem Baba: uma figura de autoridade, supostamente investida com o poder de curar ou iluminar, se aproveita da fragilidade do paciente ou discípulo para ter relações sexuais ou, simplesmente, estuprar.

No caso de psicodélicos, a situação usual de risco vai potencializada por pelo menos três fatores específicos. Primeiro, sua associação com a liberdade sexual conquistada pelo movimento da contracultura, uma revolução que não se fez sem vítimas.

Muitos provedores de terapias psicodélicas, antes e depois da proibição, são eles próprios adeptos dessas substâncias e de noções não convencionais sobre sexo. No submundo clínico a que essas práticas foram relegadas pela criminalização, a ausência de controle por associações profissionais e o segredo inerente dificultam o surgimento e a propagação de denúncias.

Em segundo lugar, a depender da substância, o psiconauta pode ficar muitas horas física e mentalmente incapacitado para reagir, além de sugestionável, o que aumenta sua vulnerabilidade. Por fim, psicodélicos podem ter algum efeito afrodisíaco, predispondo a pessoa em busca de cura ou bem-estar a investir seu desejo na pessoa do curador.

“Ouvimos muito falar de abuso sexual só por estarmos na comunidade de medicina vegetal por tanto tempo”, diz Cavnar, referindo-se à parceria com Labate. “Há sempre sussurros sobre algum escândalo, mas muita hesitação em expor os praticantes, por causa de implicações legais para todos os envolvidos e sentimentos de proteção para com a própria prática, evitando que seja vista como prática abusiva envolvendo mau comportamento sexual e drogas”.

Cavnar relata conhecer alguns casos de mulheres que buscam aventuras sexuais com xamãs ou encaram o sexo como forma de aprendizado para obter poderes espirituais. “Algumas nunca se arrependem dessas aventuras, algumas se casam com o xamã ou se tornam ‘nativas’ e, talvez, algumas vêm a se arrepender, mas essas não são as histórias com que as pessoas recorrem ao Chacruna”, diz. “Com mais frequência é o caso de uma mulher intoxicada que não entende o que está acontecendo, numa terra estranha, numa cultura estranha, idolatrando um curador misterioso da selva, que não sabe o que fazer ou quem procurar depois de uma violação.”

Nada disso isenta o terapeuta ou xamã de responsabilidade, que em realidade aumenta. Mesmo que um participante intoxicado manifeste julgamento equivocado em estado vulnerável, ainda assim compete ao facilitador ou xamã entender essa vulnerabilidade e proteger o participante contra escolhas erradas, ressalva a psicoterapeuta.

Não que casos de abuso sejam coisa só de clínicas clandestinas e rituais obscuros, como apontou Will Hall num ensaio que correu a comunidade psicodélica em setembro, “Interrompendo o Silêncio sobre Abuso na Terapia Psicodélica”. Hall remonta uma história acabrunhante de denúncias de abuso, como as levantadas contra os terapeutas Rick Ingrasci (1989), que teria estuprado três pacientes após dar-lhes MDMA, e Francesco DiLeo, seu amigo.

O próprio autor do ensaio narra um traumático envolvimento sexual com o casal de terapeutas Aharon Grossbard e Françoise Bourzat, nos anos 1990, em São Francisco. E recupera o caso de abuso denunciado pela canadense Meaghan Buisson, ocorrido em 2015, quando participou como voluntária de estudo clínico com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) dirigido por Richard Yensen.

Este último episódio é particularmente preocupante porque se deu no contexto da pesquisa mais avançada para consagrar um psicodélico (MDMA) como tratamento para um transtorno psiquiátrico (TEPT). O ensaio de 2015 era de fase 2, mas os estudos patrocinados pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) avançaram desde então para a fase 3, e se espera que psicoterapia assistida por MDMA para TEPT receba aprovação da agência FDA em 2023.

(Reprodução)

A Maps reagiu ao texto de Hall com esta nota. No protocolo de tratamento estipulado pela associação, as sessões em que o paciente fica sob efeito de MDMA tem acompanhamento contínuo de um casal de terapeutas, na pressuposição de que a presença de dois gêneros iniba iniciativas de cunho sexual.

Hall critica o fato de formulários de consentimento informado usados nesses estudos em geral não incluírem entre os riscos do MDMA seus conhecidos efeitos sobre o apetite sexual. Além disso, aponta reportagens sobre psicodélicos e obras de divulgação, a exemplo do best seller “Como Mudar sua Mente” de Michael Pollan, como veículos de uma visão edulcorada de psicodélicos, repaginados no atual renascimento como “tratamentos”, não mais tratados como as drogas poderosas que são.

A interdição de relacionamento sexual com pacientes antes, durante e depois do tratamento constitui regra básica de qualquer código de conduta para psicoterapeutas, como explicita a própria Maps. Dadas as especificidades da terapia assistida por psicodélicos, contudo, seria prudente dar mais ênfase aos riscos inerentes a essa modalidade, sob pena de ver escândalos contaminarem o noticiário até aqui positivo sobre o renascimento psicodélico.

O Instituto Chacruna, por exemplo, publicou em várias línguas um “Guia da Comunidade Ayahuasqueira para Conscientização sobre Abuso Sexual”. E o próprio Pollan, num evento do instituto com Labate na quinta-feira (18), apontou escândalos sobre abuso sexual como um flanco aberto para o revertério midiático que, na sua opinião, sempre sobrevém nos Estados Unidos com todo assunto que se torna popular.

Coincidência ou não, o sexo terá destaque especial na próxima Global Drug Survey, um influente levantamento de usos e práticas com drogas realizado por internet em vários países, incluindo o Brasil.

Pela descrição dos objetivos, o GDS 2022 parece mais interessado nos efeitos positivos de psicodélicos sobre a sexualidade. Talvez algo menos orientado para o prazer aflore nas questões dirigidas para “aqueles que tenham experimentado algum tipo de trauma sexual”, a fim de saber se “acharam que o uso de psicodélicos teve algum impacto nisso”.

Para evitar o viés edulcorante criticado por Hall, no entanto, haveria que incluir na pesquisa perguntas diretas sobre abuso sexual sofrido sob efeito de psicodélicos em contexto clínico, ritual ou recreativo. Por raro que seja esse tipo de abuso, conhecer sua dimensão e aperfeiçoar a prevenção são a maneira segura de impedir que predadores turvem as águas que mal começam a fluir desimpedidas.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)
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Terapias psicodélicas movimentam milhões antes de regulamentadas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/terapias-psicodelicas-movimentam-milhoes-antes-de-regulamentadas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/terapias-psicodelicas-movimentam-milhoes-antes-de-regulamentadas/#respond Sat, 13 Nov 2021 21:42:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/CetaminaInjecaoPsychonaughtWikiCommons-300x200.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=750 Quem quiser ter uma ideia da movimentação frenética dos negócios para aproveitar o renascimento psicodélico pode olhar para a Delic Corp. A empresa americana, que se apresenta como “corporação líder em bem-estar psicodélico”, fechou por US$ 3,3 milhões (R$ 18 milhões) a compra da rede Ketamine Welness Centers (KWC).

A KWC, como diz o nome em inglês, reúne clínicas que usam cetamina (ou ketamina) para tratamento de depressão e outros problemas mentais. Trata-se de um anestésico empregado há décadas, porém só mais recentemente na terapia desses transtornos.

A cetamina não pertence à classe dos psicodélicos clássicos, na qual figuram mescalina, LSD, psilocibina e DMT (dimetiltriptamina, presente na ayahuasca). Tem sobre eles a vantagem do efeito rápido e curto, compatível com atendimento no prazo de uma consulta médica, além de não ser substância proibida.

(Reprodução)

A aplicação se faz por injeção e só por médicos. A droga carrega ainda a fama de tirar de crises deprimidos graves, com ideações suicidas, embora sua versão em spray nasal (Spravato) não tenha essa indicação na bula porque testes clínicos da Janssen não obtiveram significância estatística para esse desfecho.

A KWC conta com dez clínicas de cetamina em nove estados: Arizona, Colorado, Flórida, Illinois, Minnesota, Nevada, Texas, Utah e Washington. Em 2020 a rede faturou US$ 3,5 milhões (R$ 19 milhões) e, neste ano, projeta alcançar US$ 4,5 milhões (R$ 25 milhões). Em seis anos, afirma ter aplicado 60 mil tratamentos.

A compradora, Delic, já operava duas clínicas com o nome Ketamine Infusion Centers (KIC), na Califórnia e no Arizona. O plano é abrir mais 15 delas em um ano e meio, consolidando a posição de líder do setor nos EUA e já se preparando para a explosão de mercado de psicoterapia assistida por psicodélicos esperada a partir de 2023, com a provável regulamentação de MDMA e psilocibina para esses tratamentos.

Na mira dos investidores estão milhões e milhões de pessoas que sofrem com depressão resistente a medicamentos existentes, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e dor crônica. Como as terapias psicodélicas em investigação não serão pílulas para tomar em casa, todo dia, como os antidepressivos, e sim como parte de tratamento psicológico ou psiquiátrico, pacientes terão de recorrer a médicos e centros clínicos.

No Brasil, nem mesmo a discussão sobre maconha medicinal avançou tanto quanto poderia, o que deixa prever muita morosidade quando chegar a vez dos estigmatizados psicodélicos. E não será por falta de gente que sofre, após uma pandemia mortífera potencializada pelo governo Jair Bolsonaro.

A movimentação de investidores por aqui é tímida, embora o país disponha de larga tradição de pesquisa com cânabis e psicodélicos, sobretudo ayahuasca. Foi graças a estudos com o chá, aliás, que pesquisadores psiconautas brasileiros ficaram em terceiro lugar num levantamento de estudos científicos de alto impacto, como o realizado sobre depressão na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Por ora o Brasil só conta com uma aceleradora de startups psicodélicas, a recém-fundada Scirama. Talvez não seja para estranhar tanto a falta de visão, numa nação em que a classe dos endinheirados apoiou, e em grande medida ainda apoia, um presidente do naipe de Bolsonaro.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

 

 

 

 

 

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Empresa anuncia resultados de maior teste de psilocibina para depressão https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/empresa-anuncia-resultados-de-maior-teste-de-psilocibina-para-depressao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/empresa-anuncia-resultados-de-maior-teste-de-psilocibina-para-depressao/#respond Tue, 09 Nov 2021 21:10:07 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/COMPASSpacienteFalso-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=743 A empresa britânica Compass Pathways divulgou nesta terça-feira (9) resultados preliminares do maior ensaio clínico sobre psicoterapia com psilocibina para depressão resistente a tratamento. Concluíram o estudo 209 dos 233 pacientes recrutados em centros de dez países (EUA e Europa).

O anúncio da Compass, firma envolta em controvérsias, veio por comunicado a investidores e à imprensa, e não por publicação em periódico científico após análise crítica de especialistas (“peer review”). Não por acaso, foi feito no mesmo dia em que a empresa publicou resultados financeiros do terceiro trimestre de 2021.

No teste, os pacientes foram alocados em três grupos, que receberam 25mg, 10mg ou 1mg, respectivamente, da substância originalmente obtida de cogumelos ditos “mágicos”. O objetivo deste ensaio de fase 2 era estabelecer a dose ótima para o teste clínico de fase 3 que a Compass pretende iniciar em 2022 para obter aprovação do tratamento talvez já em 2024.

O comunicado destaca que 36,7% dos participantes no grupo de 25mg tiveram resposta positiva após três semanas, ou seja, diminuição de sintomas de depressão grave na escala padronizada MADRS. Em comparação, entre os que tomaram a dose quase inócua de 1mg, apenas 17,7% tiveram a mesma resposta, uma diferença estatisticamente significativa.

Mais ainda, 29,1% estavam em remissão no primeiro contingente, contra 7,6% no segundo. Para a dose intermediária (10mg), não se obtiveram resultados com diferenças estatisticamente relevantes.

“Este é um momento importante e animador para a comunidade de cuidados com saúde mental”, disse no comunicado da Compass o neurocientista Robin Carhart-Harris, estrela da ciência psicodélica que se mudou do Imperial College de Londres para a Universidade da Califórnia em São Francisco. Carhart-Harris esteve à frente de dois estudos pioneiros de psilocibina para depressão, no Imperial College, o primeiro sem grupo de controle e o segundo, publicado em abril, comparando-a com o antidepressivo escitalopram (Lexapro).

“[O estudo da Compass] se apoia sobre mais de duas décadas de pesquisa a respeito da viabilidade de compostos psicodélicos para tratar condições de saúde mental e demonstra o potencial que têm para ajudar pessoas que vivem com depressão resistente [a tratamento]. É encorajador ver como progrediu esse campo nos últimos 20 anos, e estou na expectativa pela continuação a pesquisa.”

Sala preparada para psicoterapia assistida por psilocibina (Divulgação/Compass Pathways)

Nove entre dez registros de efeitos adversos durante o experimento foram considerados leves, como dores de cabeça, náuseas, insônia e fadiga. Mas houve 12 pacientes com colaterais mais sérios, como ideações e comportamentos suicidas –ocorrências nada incomuns nesses pacientes, pois até um terço dos 100 milhões de indivíduos no mundo com depressão resistente tentam suicidar-se ao menos uma vez na vida.

A Compass enfrenta resistência de parte da comunidade psicodélica por seu modelo de negócios baseado em propriedade intelectual sobre o poder curativo de uma substância em uso há séculos por comunidades tradicionais e clínicas alternativas. Os adeptos da modalidade de ciência aberta questionam as cinco patentes já concedidas à empresa nos EUA.

Criou-se até um portal com informações para municiar escritórios nacionais de propriedade intelectual (Porta Sophia), na expectativa de que seus funcionários reconheçam a falta de ineditismo. No estado americano de Oregon, a psicoterapia assistida por psilocibina está em fase de regulamentação, sem esperar pela aprovação da FDA (agência de fármacos dos EUA).

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Detroit e Seattle abrem caminho para descriminalização de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/detroit-e-seattle-abrem-caminho-para-descriminalizacao-de-psicodelicos/#respond Tue, 09 Nov 2021 12:56:21 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/DETROITponteAmbassador-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=733 Detroit e Seattle, cidades norte-americanas mais conhecidas de brasileiros por seu papel na música pop, entraram para a lista de municipalidades cujas polícias não mais perseguirão quem usa psicodélicos. Farão companhia, assim, para Denver, Santa Cruz, Oakland, Ann Arbor, Cambridge, Sommerville e Northampton.

No plano regional, legislações parecidas foram adotadas em Oregon e Washington (D.C.). Califórnia e Colorado poderão segui-los dentro de pouco tempo, relegando substâncias como psilocibina (cogumelos “mágicos”), ayahuasca, ibogaína e mescalina à condição de prioridade mais baixa para repressão policial se não forem destinadas ao comércio ilegal.

Não se trata, portanto, de legalização, mas de orientar agentes da lei para deixar de prender portadores de pequenas quantidades dessas drogas alteradoras da consciência. O carro-chefe das campanhas movidas por organizações como Decriminalize Nature tem sido a psilocibina, com seu reconhecido potencial terapêutico (mais sobre  a substância no final do texto).

“Curandera” em Huautla de Jimenez, Oaxaca, México (Efren Del Sosa/Creative Commons)

É o que se chama de uso adulto. As mudanças refletem evidências científicas de que psicodélicos clássicos como mescalina, LSD, psilocibina e dimetiltriptamina (DMT, da ayahuasca) têm perfil toxicológico administrável, não causam dependência e apresentam, sim, potencial médico. O que não quer dizer que não tenham contra-indicações e que possam ser usados por qualquer pessoa; não se recomenda, por exemplo, para quem tem histórico pessoal ou familiar de psicose.

Nessas novas normas se usa em geral a denominação de “enteógenos”, de radicais gregos para algo como “gerador de inspiração (divina)”, e não “psicodélicos”. É alusão aos usos ancestrais de plantas e fungos em cerimônias, que os militantes consideram um direito fundamental.

A medida aprovada em Seattle diz que “enteógenos têm sido reconhecidos como sagrados para culturas humanas no mundo todo, por séculos, e continuam a ser reverenciadas e usadas até hoje por líderes e comunidades culturais e espirituais veneráveis e sinceros através do mundo e dos Estados Unidos”.

Em Oregon, aprovou-se em 2020 por 56% do voto popular a Medida 109, que cria um programa estadual de psicoterapia com o psicoativo dos cogumelos do gênero Psilocybe. Na mesma eleição saiu referendada a Medida 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), que descriminaliza a posse pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína.

No caso de Seattle, regulamentou-se apenas o uso da mescalina sintética, não obtida diretamente do peiote, cacto de reprodução lenta que cresce no sudoeste dos EUA e no México e caminha para risco de extinção na natureza se for coletado de forma intensiva. É uma vitória de grupos de indígenas norte-americanos, como os praticantes da Native American Church, que temem por sua planta sagrada.

Psilocibina x MDMA

A empresa britânica Compass Pathways, objeto de controvérsia por suas patentes de psilocibina em psicoterapia para depressão, anunciou que fará ensaio clínico de fase 2 sobre tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) com a mesma droga. Serão 20 pacientes no estudo a cargo do King’s College de Londres.

O mesmo transtorno é objeto do teste clínico mais avançado de psicodélico para TEPT, de fase 3, com o empatógeno MDMA (ou ecstasy, que não ocasiona efeitos visuais), patrocinado pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos. O Boletim Psylocybin alpha ouviu a respeito Rick Doblin, líder da entidade mais conhecida pela sigla em inglês Maps.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Rick disse não ver a psilocibina para TEPT como concorrente, pois se trata de maximizar benefícios para portadores: “Dou boas-vindas à pesquisa da Compass sobre psicoterapia assistida por psilocibina para TEPT, assim como para pesquisas com cetamina, ibogaína e outros tratamentos”.

A própria Maps investiga o uso de maconha para TEPT em 300 veteranos de guerra, com financiamento de US$ 12,9 milhões (mais de R$ 70 milhões). Rick vê com interesse a ideia de comparar e detalhar efeitos de ambas as drogas, inclusive para investigar a possibilidade de associá-las em fases sucessivas do tratamento, ou mesmo em conjunto, no que se conhece como “candy-flipping”.

“É nossa opinião que a terapia assistida por MDMA tem probabilidade de ser mais segura e eficaz do que a terapia assistida por psilocibina para TEPT, ou LSD, por causa das propriedades redutoras do medo no MDMA. Entretanto, essa é uma questão empírica que precisa ser resolvida por meio de pesquisa, e é por isso que damos as boas-vindas ao estudo da Compass”, disse o dirigente da Maps ao boletim.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

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Estudo na Unicamp indica janela psicoterapêutica aberta pelo LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/#respond Mon, 01 Nov 2021 21:50:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/LuciaKochInhotim-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=727 Nova pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas pôs mais uma pedra no edifício em reconstrução da ciência psicodélica: se o LSD for usado como adjuvante de psicoterapia, o momento propício para a chamada terapia psicolítica provavelmente recairia quatro horas após a ingestão da substância.

“Baixa Dose de LSD e Corrente do Pensamento: Descontinuidade Aumentada da Mente, Pensamento Profundo e Fluxo Abstrato”, diz o título do segundo artigo publicado pelo grupo de Luís Fernando Tófoli. O trabalho saiu no periódico Psychopharmacology, tendo como primeira autora a alemã Isabel Wießner, orientanda de doutorado de Tófoli, e colaboradores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

O primeiro estudo dos autores havia sido publicado em julho, como noticiou o blog. Ambos os trabalhos tomam por base observações com 24 voluntários saudáveis que participaram de duas sessões experimentais.

Num dos encontros, a pessoa tomava 50 microgramas de LSD, e, no outro, um placebo, mas sem saber em qual deles tomava o quê. Wießner e o psiquiatra Marcelo Falchi, presentes na sala com os participantes por cerca de dez horas, tampouco sabiam.

Durante esse tempo, os voluntários respondiam a perguntas verbais, marcavam em escalas a intensidade das alterações mentais experimentadas e realizam testes num computador. Neste segundo artigo, a equipe deu destaque para alterações no fluxo de pensamento ao longo do tempo, algo ainda pouco conhecido no efeito lisérgico.

É bom mencionar que o LSD só foi proibido para usos não científicos na década de 1970. Antes disso, distribuído pelo laboratório suíço Sandoz com a marca Delysid, teve largo emprego em consultórios e estudos para tratar transtornos mentais e dependência de álcool, mas não com as metodologias e os controles rigorosos hoje usuais em pesquisa biomédica. Com a proibição e a demonização, o psicodélico quase desapareceu da pesquisa científica.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

No desenho da investigação liderada pela Unicamp, o controle residiu na comparação entre os efeitos medidos nos dias de ácido com os do dia de placebo. É o método conhecido como “cross-over”.

Num dos testes, o voluntário tinha de encadear a cada duas horas uma lista de palavras que lhe viessem à cabeça sob estímulo de um vocábulo-semente de três tipos (animais, objetos e palavras abstratas). Posteriormente, o time usou medidas de distância semântica para caracterizar o fluxo de pensamento –por exemplo, a separação entre “gado” e “vaca” é menor do que entre “gado” e “jornada”.

Para mensurar a divagação mental (“mind wandering”), empregou-se o Questionário Amsterdã de Estado de Repouso (ARSQ, na sigla em inglês). São 55 questões, por exemplo sobre descontinuidade da mente, planejamento, sonolência, conforto, percepção do corpo, preocupação com saúde e pensamento visual ou verbal que o participante tinha de responder no computador logo após passar cinco minutos de olhos fechados. Cada item solicitava que a pessoa indicasse seu grau de concordância/discordância numa escala de cinco pontos.

Resumindo muito a profusão de dados, o grupo constatou que o LSD, comparado com placebo,     acentuou aspectos caóticos, significativos e sensoriais do pensamento, como seria de esperar. Quanto ao fluxo da mente, curiosamente, as distâncias semânticas foram maiores quando as sementes eram palavras abstratas, mais que animais ou objetos.

Observaram-se também diferenças temporais. No pico inicial da experiência lisérgica, mesmo com a dose baixa de 50 mcg (1/5 a 1/4 de uma dose psicodélica plena), o caos dificultava até a comunicação e aumentava a arbitrariedade aparente das respostas aos testes.

 

Por volta das quatro horas de experimento, porém, a entropia mental causada pela LSD arrefecia e passava do polo caótico para um estado caracterizado por um fluxo mais livre nas associações, criativas e flexíveis. O oposto do fluxo disfuncional de pensamento caraterizado pela rigidez e fixação de certos transtornos mentais, como a ruminação presente em casos graves de depressão.

Eis o que os autores, tentativamente, apontaram como possível janela terapêutica. “A principal conclusão seria que vários elementos dos resultados (aumento de significado, fluxo abstrato) indicam que uma tal janela após quatro horas parece juntar vários efeitos interessantes com potencial terapêutico nessa dose relativamente baixa”, diz Wießner.

“Porém, nosso estudo avaliou participantes saudáveis, então outros estudos com pacientes serão necessários para dizer algo mais concreto em termos de benefícios terapêuticos durante essa janela.”

A pesquisadora se diz surpresa com o fluxo mais livre de pensamento estimulado por palavras abstratas. “Uma potencial interpretação é que palavras abstratas estimulam um pensamento amplo, em termos de distâncias semânticas, mais viagens mentais e na linguagem”, especula Wießner.

Uma interpretação alternativa seria que termos abstratos são mais difíceis de processar no cérebro, se comparados com animais e objetos, que evocariam processos mais automáticos. “Essa segunda interpretação iria na linha da redução de controle frontal: pode ser que o cérebro não consiga controlar suficientemente os processos cognitivos, e, assim, quando chegam estímulos mais difíceis, essa perda de controle se reflete num ‘caos’ de distâncias semânticas aumentadas na cadeia de palavras.”

A continuidade natural do estudo, propõe a pesquisadora alemã, seria investigar o potencial do LSD para quebrar esses padrões de fluxos de pensamento disfuncionais em pacientes ou demonstrar e ensinar outros fluxos possíveis, por exemplo mais orientados a coisas que ganharam um significado especial durante o estado lisérgico.

Isso, evidentemente, se um dia o LSD –que não causa overdose nem dependência– for um dia retirado da lista de substâncias proibidas em que foi parar como bode expiatório da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1970. Até lá, a janela terapêutica que ele e outros psicodélicos banidos podem abrir continuará fechada.

Tófoli, o autor sênior da pesquisa, chama a atenção para o fato de “o LSD ser proposto hoje em dia menos como molécula terapêutica e mais como ferramenta para caracterizar o efeito subjetivo”. Isso porque com outros psicodélicos, como a psilocibina (cogumelos) e a dimetiltriptamina (DMT), o efeito tem duração mais curta.

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Documentário enquadra mistério da consciência em moldura quase mística https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/documentario-enquadra-misterio-da-consciencia-em-moldura-quase-mistica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/documentario-enquadra-misterio-da-consciencia-em-moldura-quase-mistica/#respond Tue, 26 Oct 2021 12:29:44 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/AwareCartaz2-300x195.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=708 Dentro de duas semanas psiconautas fluentes em inglês terão a chance de assistir a mais um filme sobre psicodélicos: “Aware – Glimpses of Consciousness” (em tradução livre, “Ciente – Vislumbres da Consciência”), de Frauke Sandig e Eric Black. O documentário só está em cartaz na Alemanha e nos EUA, mas “Aware” terá estreia no streaming em 10 de novembro (um trailer pode ser visto aqui).

O filme teuto-americano não trata exatamente de modificadores da consciência, mas da consciência em geral. Só que não: a psilocibina dos cogumelos “mágicos” entra como coadjuvante que acaba roubando a cena.

Repare no trecho do cartaz reproduzido acima. O rosto que aparece marcado pela cruz de luz laser vermelha é de Justine, voluntária em uma das mais de 600 sessões com psilocibina organizadas na Universidade Johns Hopkins pelo neurocientista Roland Griffiths, pioneiro da ciência psicodélica e talvez o maior responsável por manter vivo seu elo com a aura mística dos tempos do movimento hippie.

A moça conta no filme que, mesmo dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional para mapear sua atividade cerebral, a psilocibina a levou a conectar-se com pessoas queridas que já morreram. Disse que a experiência reforçou sua crença na vida além-túmulo e funcionou como um aprendizado para o futuro, dando-lhe segurança diante da morte.

Não será a primeira vez que este blog põe em dúvida a necessidade e a pertinência de preservar essa associação incômoda da ciência com misticismo. O filme não chega a embarcar na canoa esotérica, mas está lá no ancoradouro para dar boas-vindas a uma penca de pesquisadores e convertidos que têm um ou os dois pés nela.

Detalhe de “Celacanto Provoca Maremoto”, de Adriana Varejão, no Inhotim (Foto: Marcelo Leite)

Na entrevista para o documentário, Griffiths fala com desenvoltura sobre ensinamentos do budismo (“você não é o self”). Em sua interpretação, a psilocibina fornece uma via rápida para relaxar a chamada rede de modo padrão (ou DMN, default mode network em inglês), padrão de conexão cerebral da introspecção que se acredita estar na base do ego.

“Algo maior emerge”, diz o neurocientista no filme. “Uma abertura maior, para além das respostas habituais”, que estaria diretamente associada com o potencial terapêutico dos psicodélicos. Um estudo seu, aliás, mostrou forte correlação da intensidade da experiência mística vivida sob efeito da psilocibina com a melhora de sintomas de depressão.

Outros cientistas entrevistados vão mais longe. A mais desconcertante é Monica Gagliano, da Universidade de Sydney, que defende ampliar a noção de consciência difundindo-a pelo tecido da natureza –não só para incluir esboços da faculdade em primatas, cães, golfinhos e pássaros, como indicam alguns estudos, mas até as plantas.

Para Gagliano, vegetais são sencientes, ou seja, têm sentidos e sopesam informações do ambiente para aprender –meio caminho andado para a consciência. Seus experimentos indicam que brotos de ervilhas acham o caminho para fonte de água guiadas só pelo som gravado do líquido e que é possível reproduzir com plantas o condicionamento que Pavlov infligiu a cães (no caso vegetal, caules que se inclinam em busca de luz mesmo na ausência dela, após associar o som de uma ventoinha com a luz que se acende).

O documentário traz ainda um professor de filosofia, Richard Boothby (Universidade Loyola, Maryland, EUA), um agnóstico que deixa de sê-lo após ingerir cogumelos e se reconciliar como suicídio do filho. Dez anos depois de voluntariar-se para experimento com psilocibina, descreve a vivência como a mais significativa de sua vida, algo como sentir “o batimento cardíaco da realidade ela própria”.

A “aceitação amorosa” que lhe permitiu superar o luto revoltado seria a essência da vida, e não o medo ou defesas humanas. “A consciência não é nada mais que essa abertura”, diz. “Deus não é o destino, mas a jornada (…). Se Deus nos deu liberdade, ele não sabe o resultado. Nós somos os veículos [proxies] da própria vida de Deus.”

Previsivelmente, há também no filme um monge budista com doutorado em genética, Matthieu Ricard, e uma sacerdotisa maia, Josefa Kirvin Kulix. Nenhum deles economiza figuras expansivas para falar da consciência, que veem disseminada entre todos os seres e coisas –“como o vento, que não se pode aprisionar”, diz Josefa.

Mais surpreendente é ouvir Christof Koch, estrela da pesquisa sobre consciência no Instituto Allen criado pelo sócio de Bill Gates na origem da Microsoft, Paul G. Allen (1953-2018), quase exasperado com a impotência científica diante do desafio de capturar a natureza da consciência. “Só consigo ver mecanismos”, lamenta: “Como é que fazemos as águas do cérebro se transformarem no vinho da consciência?”.

Para Koch, a consciência é um traço fundamental do universo, como um mar que nos envolve. “Será que os peixes sabem que estão na água?” –pergunta. A julgar pelo título de seu livro de 2019, “A Sensação da Própria Vida – Por que a Consciência Está Disseminada, mas Não Pode Ser Computada” (The MIT Press), ele parece ter concluído pela impossibilidade de conhecer a consciência como um objeto exterior.

Com ele concorda o filósofo Boothby: a vivência psicodélica não é engendrada pela droga, mas vem de algo maior fora dela e do indivíduo. A psilocibina se limitaria a abrir o obturador da percepção, permitindo uma exposição radical do sujeito à própria vida, como o mecanismo da câmera fotográfica que propicia a entra da mais luz.

Se conclusão houvesse no documentário “Aware”, seria esta: a consciência permanece um mistério. Sua opacidade resiste até aqui a todas as ferramentas manejadas pela ciência para desvendá-la. O recurso frequente de pesquisadores a vocabulário e conceitos holistas, esotéricos ou místicos, como documenta o filme, é mais um sintoma de descolamento de nossa retina cognitiva, que nos condena a apenas tatear o objeto descomunal na penumbra psicodélica.

Interessante notar algum paralelo entre essas ideias sobre a consciência –não seria uma prerrogativa humana; substâncias psicoativas permitem vislumbrar suas manifestações em outros planos– e elementos do que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo ameríndio. Pajés e xamãs, afinal, usam psicodélicos ou quejandos para trocar de pele e transitar entre domínios em que todos os seres são humanos, por assim dizer, e vivem em sociedade.

“Aware”, o filme, é um bom exemplo do reconhecimento de que a consciência talvez só possa ser apreendida com ajuda de metáforas e poesia. Como o vento.

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Pollan mergulha em mescalina, ópio e cafeína com novo livro sobre a mente https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/pollan-mergulha-em-mescalina-opio-e-cafeina-com-novo-livro-sobre-a-mente/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/pollan-mergulha-em-mescalina-opio-e-cafeina-com-novo-livro-sobre-a-mente/#respond Mon, 18 Oct 2021 18:50:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/peyote2-300x170.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=689 Escrevo esta resenha de “This is Your Mind on Plants” (Esta é a Sua Mente Sob Efeito de Plantas), de Michael Pollan, após três canecas de café e duas xícaras de chá preto. São 9h da manhã, e já vou dando exemplo de dependência do psicoativo mais usado no mundo –90% da população do planeta usa cafeína, informa o autor de outro best seller sobre inebriantes, “Como Mudar Sua Mente” (ainda não há previsão de lançamento da nova obra no Brasil).

Releve a repetida apelação marqueteira a “sua mente”, pois, embora se trate do que acontece em nossas cabeças, o livro destoaria numa prateleira de auto-ajuda. Seu foco não recai sobre muitos conselhos para enfrentar perrengues comezinhos, mas sobre três substâncias com efeitos paradoxais na mente (ópio, cafeína e mescalina) e ilumina uma pergunta desconcertante: por que nos intoxicamos?

Por coerência com o tema desta página e da obra anterior de Pollan, a acuidade mental propiciada pelo estimulante matutino sugere começar pelo psicodélico mescalina, terceira e última planta investigada no volume. Uma maneira também de fazer justiça ao primeiro “enteógeno” (mais sobre esse termo à frente) a estrear na literatura ocidental, com “As Portas da Percepção” de Aldous Huxley (1954).

Pollan enfrenta o composto originário dos cactos peiote (Lophophora williamsii, v. foto) e San Pedro (ou wachuma, gênero Trichocereus) com duas ferramentas afiadas de seu instrumental jornalístico, a pesquisa soberba e o testemunho de vivências pessoais. A primeira, porém, difere um tanto dos resultados em “Como Mudar Sua Mente”, pois passa quase ao largo das informações sobre farmacologia, testes clínicos e neurociência de psicodélicos, em favor da história e da antropologia.

Cacto andino San Pedro, ou wachuma.            (Por alexik – Flickr, CC BY-SA 2.0)

A mescalina, diz o autor, é provavelmente o psicodélico de emprego mais antigo por humanos. Seu uso ancestral por povos do sul da América do Norte e dos Andes pode ter começado há milênios, e já no século 17 foi proscrito pelo colonizador espanhol: em 1620 a Inquisição no México declarou o peiote uma “perversidade herética” e moveu 90 processos contra usuários até o fim do século 18.

Como de hábito, a proibição só logrou lançar o cacto na clandestinidade, e ele retornaria com a força do reprimido um século depois, como sacramento de uma nova religião libertadora. Após a dizimação dos habitantes originais da América do Norte, que teve seu clímax no massacre de dakotas em Wounded Knee (1890), vários povos indígenas confinados em reservas criaram a sincrética Native American Church, denominação também conhecida como peiotismo.

Aqui se apresenta a tese mais forte do livro, à guisa de resposta oblíqua para a questão de fundo sobre por que nos se intoxicamos: plantas portadoras de moléculas psicoativas, em geral alcaloides de gosto amargo que na origem podem ter sido adaptações para afugentar herbívoros, entram numa espiral de coevolução com humanos, parceria que favorece a propagação das primeiras e provê os últimos com recursos para intensificar modalidades da consciência que possam ajudá-los a se manterem vivos. No caso do peiote, permitir a sobrevivência cultural após o trauma da colonização.

No centro do peiotismo estão rituais de cura em torno de uma fogueira dentro das tendas “teepees”. Pollan tenta desvendar o que ocorre ali sob efeito do cacto, mas esbarra na impossibilidade de viagens com a pandemia de Covid-19 e na resistência dos praticantes à apropriação cultural do sagrado pelo homem branco, mesmo um jornalista antropologicamente correto como ele, que terá de se contentar com outro tipo de cerimônia bem californiana, mas de inspiração andina.

A repulsa da igreja a levantar o pano da “teepee” levou a uma escaramuça com o movimento Decrim Nature. O grupo tem conseguido convencer governos subnacionais dos EUA a descriminalizar as chamadas plantas de poder, os “enteógenos” (reveladores da divindade interior), ou pelo menos tirá-las do foco da repressão policial.

Embora seja o agrupamento muito respeitoso do uso tradicional de cogumelos, cactos e arbustos psicoativos, Decrim Nature recebeu da igreja a demanda para retirar o peiote da lista de organismos cujo poder não caberia ao Estado regular, sob pena de afrontar a liberdade religiosa e individual. A igreja teme que o peiote, já ameaçado de extinção nos poucos locais onde cresce naturalmente, ganhe mais popularidade em meio ao renascimento psicodélico e desapareça de seu habitat.

Pollan se encontrou antes com a substância pura, a mescalina sintetizada desde 1919, após ter sido isolada do cacto em 1897 (a Native American Church não repudia sintetizar o composto, só o consumo da planta sagrada por não membros e o cultivo em estufas). Sua experiência pessoal ecoa a ampliação quase acachapante da percepção, já descrita por Huxley, e oferece pistas sobre o potencial libertador de que se valeram indígenas norte-americanos.

A mescalina age lentamente, e a viagem que propicia pode durar 14 horas. Após aguardar mais de uma hora pelo efeito, na companhia de um livro, Pollan conta que em certo ponto a leitura passou a lhe parecer uma coisa absurda, inútil. Sentiu-se inundado pela realidade circundante, só tinha olhos para o que estava à mão ou no campo de visão, sem necessidade de mais nada além de contemplar.

Essa vivência não soa estranha para quem já viajou com psicodélicos como LSD ou cogumelos (psilocibina). Eles também aguçam a visão para cores e detalhes, sobretudo de objetos e seres naturais, que aparecem revestidos de um significado transcendental a que o psiconauta ganha acesso por obra e graça da substância.

No entanto, da descrição de Pollan parece sobressair uma diferença crucial da mescalina: o mergulho daria acesso às próprias coisas, à maravilha e ao espanto de sua mera existência. E não a um sentido oculto revelado, significados emanados e projetados da própria mente, o que um neurocientista talvez chamasse de saliência aberrante desencadeada pelos psicodélicos.

Nos vislumbres que colheu de praticantes do peiotismo, o jornalista ouviu mais de uma vez a comparação do cacto com um espelho, ou como uma entidade que vê dentro ou através da pessoa em busca de cura e lhe apresenta o que ela precisa enxergar. Ou seja, a realidade das coisas da biografia (traumas incluídos) como elas são, não como as explicamos ou revestimos de sentidos e sofrimentos, o que facilitaria a aceitação e a libertação –individual ou coletiva, no contexto da religião.

Essa aproximação entre o efeito individual (biográfico, psíquico) e o efeito coletivo (cultural, histórico) não é trivial de construir, mas Pollan tece a trama de modo convincente. Com sutileza e nuance, passa longe de narrativas pretensiosas como a do “macaco chapado”, hipótese propagandeada entre outros por Paul Stamets para explicar a própria emergência de faculdades conscientes em seres humanos, de maneira inverificável, como produto da coevolução com cogumelos alucinógenos.

Verdade que a atribuição de superpoderes históricos a compostos psicoativos funciona melhor com envolvimento da mescalina com a Native American Church. No caso da cafeína presente no café (Coffea sp.) e no chá preto (Camellia sinensis), sua emergência como bebidas globalizadas em paralelo com a Revolução Industrial e o Iluminismo pode não ser mais do que isso, uma coincidência.

Ainda assim, os indícios colhidos por Pollan na bibliografia acadêmica conferem, sim, alguma verossimilhança para a tese de que o estimulante favoreceu a adequação dos ritmos biológicos humanos à cadência do trabalho em máquinas e dos turnos em fábricas. Ou, ainda, a de que os cafés parisienses e londrinos tenham fomentado a moderna opinião pública e debates guiados pelo racionalismo, com a substituição do álcool dionisíaco pela beberagem apolínea.

No primeiro capítulo, o escritor escala a flor inocente da papoula (Papaver somniferum) e o demonizado ópio dela obtido para evidenciar a arbitrariedade do proibicionismo, que interfere no relacionamento milenar de culturas com determinadas plantas, ao sabor de acidentes históricos. Hoje o álcool destilado de vegetais está liberado; ópio e até papoulas são criminalizados, mas entre 1920 e 1933 se dava o oposto nos EUA: vender álcool era crime, mas não o láudano (tintura de ópio usada como sedativo).

Em realidade, ainda hoje a situação do ópio, de sua fonte e seus derivados se mostra para lá de ambígua. Sementes de papoula são vendidas livremente em terras americanas, para uso em padarias e jardins, mas é proibido fazer chá com elas ou com as cápsulas que crescem no canteiro após a queda das pétalas. Segundo outras interpretações legais obtidas por Pollan, até mesmo germinar as sementes compradas e cultivar as flores seria ilegal.

Papoulas das quais se extrai ópio (Papaver somniferum) (Tanja Niggendijker/Creative Commons)

Neste ponto o livro traz uma de suas narrativas mais kafkianas, sobre o jornalista amante da jardinagem que se viu constrangido a cortar de um artigo de revista, por aconselhamento de advogados, trechos em que contava suas experiências com a planta e os efeitos. As passagens autocensuradas só vieram à luz agora, no volume, um quarto de século depois, com a prescrição do possível delito.

Enquanto esses parágrafos ficaram num disco rígido, os EUA se debatiam com a comercialização desenfreada de opioides sintéticos que desencadeou uma epidemia de overdoses, matando 50 mil pessoas por ano. Em 1º de setembro foi dissolvida a empresa Purdue Pharma, que lançou em 1995 o analgésico OxyContin (oxicodona), e a família proprietária Sackler pagou US$ 4,5 bilhões (R$ 25 bilhões) em acordo para sustar processos (em 2011 o faturamento com a droga alcançara US$ 3,4 bi).

Pollan sobreviveu bem ao chá caseiro de papoula, não sem lamentar que o lenitivo tradicional tenha ficado proibido enquanto os Sacklers se safaram sem muita dor. Pelo que conta, duro mesmo foi abster-se de café por três meses, outro autoexperimento que resultou em perceptível perda de concentração e produtividade –e esta resenha constitui prova material de que a cafeína, mesmo não tendo propelido sozinha iluminismo ou fordismo, certamente tem fornecido combustível decisivo para o jornalismo.

Por que nos intoxicamos, afinal? Pollan diria, tentativamente, que o fazemos para alterar a textura da consciência, manipulando a malha do filtro com que coamos o caldo grumoso a jorrar dos sentidos para preparar o elixir de uma vida melhor.

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Mais quatro boas novas da ciência psicodélica, uma delas do Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/11/mais-quatro-boas-novas-da-ciencia-psicodelica-uma-delas-do-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/11/mais-quatro-boas-novas-da-ciencia-psicodelica-uma-delas-do-brasil/#respond Mon, 11 Oct 2021 15:00:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/chacronafolha-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=682 Escrever uma página sobre ciência psicodélica está se tornando um desafio, tantas são as notícias que chegam. Em alguns dias, a saída pode ser abrir mão de notas aprofundadas em favor de registros curtos, como estes de quatro países –começando pela prata da casa.

Destaque do Brasil

O pesquisador Rafael Guimarães dos Santos, da USP de Ribeirão Preto, foi relacionado pelo serviço Expertscape entre os cinco mais destacados especialistas em alucinógenos do mundo nos últimos dez anos. Guimarães dos Santos figura em quinto lugar no topo de 0,1% de cientistas que publicam artigos sobre psicodélicos.

Ele fica atrás apenas de Robin Carhart-Harris (Universidade da Califórnia em São Francisco), David Nutt (Imperial College), Matthew Johnson (Johns Hopkins) e David Nichols (Universidade da Carolina do Norte). O Expertscape compila o ranking com dados da base PubMed.

Já na classificação compilada a partir do termo DMT (dimetiltriptamina, componente psicoativo do chá ayahuasca ou daime), o brasileiro salta para o primeiro lugar. Não chega a surpreender, porque a USP de Ribeirão é um tradicional centro de pesquisa de ayahuasca, sob liderança de Jaime Hallak.

Novo centro no Canadá

A Nikean Foundation, criada pelo empresário de tecnologia Sanjay Singhal, doou US$ 5 milhões (R$ 28 milhões) para a Rede de Saúde da Universidade de Toronto, que reúne hospitais-escola e setores de pesquisa biomédica da instituição. A doação se destina a criar o Centro Nikean de Pesquisa em Psicoterapia Psicodélica, com a missão de investigar novas terapias para condições como anorexia, depressão, dependência química, ansiedade e estresse pós-traumático.

Singhal fez fortuna ao criar o serviço Audiobooks.com, que depois vendeu. A partir de sua própria experiência com problemas de saúde mental, ele havia assumido em 2020 o compromisso de financiar a participação da rede no chamado renascimento psicodélico.

“A reputação da Rede de Saúde da Universidade como um líder mundial em pesquisa de saúde mental, com seu time de experts e especialistas dedicados à exploração de terapias psicodélicas baseadas em evidências, ajudará a avançar nossa compreensão dos medicamentos psicodélicos e o impacto positivo que têm sobre a saúde mental”, afirmou Singhal num comunicado.

“Ao aceitar esta doação, [a rede] envia uma mensagem poderosa de que o Canadá leva a sério a pesquisa psicodélica e o enfrentamento da crise existencial de saúde mental que afeta as massas. Devemos a esta geração e à próxima iniciar o processo de cura, por isso encorajo outros [doadores] a se juntar à Nikean nesta empreitada importante.”

O novo centro será dirigido pela psiquiatra Susan Abbey, especialista no estudo da modalidade de meditação “mindfulness”. A seu lado na direção estará Emma Hapke, que adquiriu experiência em psicoterapia assistida por psicodélicos atuando como pesquisadora da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps).

Reclassificação na Austrália

Uma revisão independente encomendada pela Administração de Produtos Terapêuticos (TGA) do governo da Austrália emitiu parecer favorável ao potencial de psicodélicos. para tratar transtornos mentais resistentes às terapias disponíveis. A comissão ressalvou que o uso deve acontecer em ambiente clínico com supervisão intensiva de pessoal médico, noticiou a rede ABC .

A TGA estuda no momento a possibilidade de rebaixar a classificação dos psicodélicos MDMA (base do ecstasy) e psilocibina (de cogumelos “mágicos”) de substâncias “proibidas” para “controladas”. A reclassificação permitiria seu uso clínico, mas a decisão final só será tomada em dezembro.

Paciente de 14 anos no consultório de psiquiatra com quem trata de quadro depressivo, com episódios de automutilação e tentativa de suicidio (Eduardo Knapp/Folhapress-17.out.2019)

Contra suicídios nos EUA

A notícia é de abril, mas havia deixado passar: o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos Estados Unidos aprovou seis projetos de investigação de terapia psicodélica para prevenção de suicídios com cetamina, anestésico de amplo uso que vem sendo empregado contra depressão, e escetamina, uma variante da mesma molécula. Dois outros financiamentos buscam o mesmo objetivo com estimulação magnética transcraniana.

Ocorrem a cada ano mais de 800 mil suicídios no mundo, pelos menos 6% disso nos EUA. Há indícios de que as tentativas podem estar crescendo com a pandemia de Covid-19, em especial entre profissionais de saúde, desempregados, convalescentes com sequelas (Covid longa) e parentes de vítimas do coronavírus.

Segundo o comunicado do NIMH, taxas de suicídio já vinham aumentando nos EUA há duas décadas. Estudos mostram que o sistema de saúde pode fazer mais para diminuir o risco, se dispuser de intervenção rápida baseada em evidências, pois 80% das pessoas que se matam passaram por atendimento nos 12 meses antes da morte, um quarto delas na semana anterior.

A cetamina, que tem efeito dissociativo similar ao de psicodélicos clássicos, mas bem mais breve (menos de uma hora), diminui sintomas de depressão. Parece também atuar para arrefecer ideações suicidas.

A farmacêutica Janssen se baseou na variante escetamina para lançar o medicamento antidepressivo Spravato na forma de spray nasal. Mas testes clínicos não apresentaram resultados estatisticamente robustos o bastante para indicação na bula como eficaz contra ideação suicida.

Além disso, um estudo de custo-benefício não recomendou o remédio para uso em saúde pública, mesmo porque existe a alternativa mais barata da cetamina (injetável). A Anvisa licenciou o Spravato no Brasil.

Dois dos seis projetos do NIMH envolvem risco de suicídio de adolescentes. Os centros de pesquisa financiados pertencem às universidades de Pittsburgh, Columbia, Texas, Yale e Cleveland Clinic.

No Brasil, o grupo de Rafael Guimarães dos Santos na USP de Ribeirão Preto estuda o potencial da ayahuasca na prevenção de suicídios. Com a tragédia da Covid amplificada pela desumanidade de Bolsonaro, vamos precisar, e muito, de tudo que possa combater a presente epidemia de tristeza.

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(Reprodução)
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