Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Sexo, drogas e revertério ameaçam reputação de psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/22/sexo-drogas-e-reverterio-ameacam-reputacao-de-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/22/sexo-drogas-e-reverterio-ameacam-reputacao-de-psicodelicos/#respond Mon, 22 Nov 2021 10:54:53 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/PIXOcogu-300x190.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Psicodélicos têm uma longa história com sexualidade, a começar pelo amor livre dos hippies que, corrosivo como seu pacifismo, antecedeu a proibição do LSD e outras substâncias alteradoras da consciência. Há também um lado perverso e antigo nessa relação, como a recusa da homossexualidade e os abusos sexuais, um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico.

A imagem positiva ressuscitada pela neurociência, agora como tratamentos promissores para transtornos psíquicos da gravidade da depressão, não combina com a ideia de que possam ser usadas em terapias de conversão, a chamada “cura” gay. Como relata Clancy Cavnar, nos anos 1960/70 o LSD chegou a ser usado com a finalidade suposta de tratar homossexuais, inclusive por terapeutas cultuados até hoje como Stanislav Grof (ainda que somente com pacientes atormentados por sua condição sexual).

“Os terapeutas que usavam psicodélicos para mudar orientação sexual nos anos 1960 e 1970 eram pioneiros que, baseados na compreensão limitada da homossexualidade na época, estavam experimentando, embora isso estivesse sem dúvida prejudicando os pacientes, não eram movidos por fervor religioso ou negação da ciência, esclarecida desde então”, diz a terapeuta da Califórnia, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco.

“Duvido que os poucos provedores remanescentes da terapia de conversão, que já foi denunciada amplamente como prejudicial e ineficaz, estejam bem informados sobre psicodélicos ou vejam algum potencial neles, pois são em geral programas baseados em religião.”

Cavnar, que dirige o Chacruna ao lado da antropóloga brasileira Bia Labate, dedicou sua tese de doutorado em psicologia aos “Efeitos da Participação em Rituais de Ayhuasca sobre Autopercepção de Gays e Lésbicas”, de 2011. Ela cita no texto um documento interno da religião ayahuasqueira União do Vegetal (UDV), de 2008, no qual os dirigentes afirmam: “… jamais podemos concordar com a prática do homossexualismo visto que contraria a origem natural da existência humana, ou seja, o relacionamento entre o homem e a mulher, dando início à geração”.

Procurada para esclarecer se mantém a doutrina condenatória da homossexualidade, a UDV limitou-se a reiterar nota enviada ao jornalista Carlos Minuano no ano passado para a reportagem “ ‘Psicodelia de Direita’: polarização se acirra entre usuários de ayahuasca”.

Na nota, sem repudiar a “posição religiosa” de 2008, a entidade diz que “seu objetivo é trabalhar pelo ser humano no sentido do desenvolvimento de suas virtudes morais, intelectuais e espirituais, sem distinção de cor, sexo, ideologia política, credo religioso ou nacionalidade”. E ainda: “A UDV aceita todos que a procuram, sem nenhum tipo de preconceito, prejulgamento ou discriminação.”

“Há uma ênfase em ideais como o ‘equilibro cósmico’, a ‘sagrada família’, a ‘divina união do masculino e feminino’, a ‘união dos opostos’ etc., que acaba servindo como base para um discurso heteronormativo, patriarcal e machista”, diz a antropóloga Bia Labate. “Nesse sentido a ‘cura dos gays’ passa a ser um projeto e uma missão. Infelizmente, isto é muito comum.”

Em contexto clínico profissional, não religioso, essa “conversão” parece hoje impensável, em particular depois que a homossexualidade deixou de ser considerada patologia, ainda nos anos 1970. No entanto, como há pelo menos um líder da UDV (Luís Felipe Belmonte) e até médicos e psicólogos na esfera bolsonarista, não seria de todo surpresa se essa gente recorrer à dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, ou outro psicodélico, para reconduzir ovelhas desgarradas ao que consideram caminho natural da virtude.

“Usar a ayahuasca para ‘converter gays’, eufemismo para ‘evolução’ ou ‘transformação espiritual’, é inaceitável”, afirma Labate. “Sabemos que muitas pessoas dentro da UDV são contra o manifesto antigay. Essas vozes precisam ser apoiadas.”

Esse abuso potencial, que decerto viria prejudicar a reabilitação progressiva dos psicodélicos para a medicina, contrasta com outro, este sim um perigo real, antigo e presente: assédio. Abusos sexuais cometidos por terapeutas profissionais e curandeiros são tão velhos quanto a noção de que esses compostos forneçam panaceias para tudo.

Obra sem título de Edgard de Souza no Inhotim (Foto Marcelo Leite)

O enredo, que não precisa envolver substâncias psicoativas, é arquiconhecido de escândalos como o de João de Deus, Roger Abdelmassih ou Prem Baba: uma figura de autoridade, supostamente investida com o poder de curar ou iluminar, se aproveita da fragilidade do paciente ou discípulo para ter relações sexuais ou, simplesmente, estuprar.

No caso de psicodélicos, a situação usual de risco vai potencializada por pelo menos três fatores específicos. Primeiro, sua associação com a liberdade sexual conquistada pelo movimento da contracultura, uma revolução que não se fez sem vítimas.

Muitos provedores de terapias psicodélicas, antes e depois da proibição, são eles próprios adeptos dessas substâncias e de noções não convencionais sobre sexo. No submundo clínico a que essas práticas foram relegadas pela criminalização, a ausência de controle por associações profissionais e o segredo inerente dificultam o surgimento e a propagação de denúncias.

Em segundo lugar, a depender da substância, o psiconauta pode ficar muitas horas física e mentalmente incapacitado para reagir, além de sugestionável, o que aumenta sua vulnerabilidade. Por fim, psicodélicos podem ter algum efeito afrodisíaco, predispondo a pessoa em busca de cura ou bem-estar a investir seu desejo na pessoa do curador.

“Ouvimos muito falar de abuso sexual só por estarmos na comunidade de medicina vegetal por tanto tempo”, diz Cavnar, referindo-se à parceria com Labate. “Há sempre sussurros sobre algum escândalo, mas muita hesitação em expor os praticantes, por causa de implicações legais para todos os envolvidos e sentimentos de proteção para com a própria prática, evitando que seja vista como prática abusiva envolvendo mau comportamento sexual e drogas”.

Cavnar relata conhecer alguns casos de mulheres que buscam aventuras sexuais com xamãs ou encaram o sexo como forma de aprendizado para obter poderes espirituais. “Algumas nunca se arrependem dessas aventuras, algumas se casam com o xamã ou se tornam ‘nativas’ e, talvez, algumas vêm a se arrepender, mas essas não são as histórias com que as pessoas recorrem ao Chacruna”, diz. “Com mais frequência é o caso de uma mulher intoxicada que não entende o que está acontecendo, numa terra estranha, numa cultura estranha, idolatrando um curador misterioso da selva, que não sabe o que fazer ou quem procurar depois de uma violação.”

Nada disso isenta o terapeuta ou xamã de responsabilidade, que em realidade aumenta. Mesmo que um participante intoxicado manifeste julgamento equivocado em estado vulnerável, ainda assim compete ao facilitador ou xamã entender essa vulnerabilidade e proteger o participante contra escolhas erradas, ressalva a psicoterapeuta.

Não que casos de abuso sejam coisa só de clínicas clandestinas e rituais obscuros, como apontou Will Hall num ensaio que correu a comunidade psicodélica em setembro, “Interrompendo o Silêncio sobre Abuso na Terapia Psicodélica”. Hall remonta uma história acabrunhante de denúncias de abuso, como as levantadas contra os terapeutas Rick Ingrasci (1989), que teria estuprado três pacientes após dar-lhes MDMA, e Francesco DiLeo, seu amigo.

O próprio autor do ensaio narra um traumático envolvimento sexual com o casal de terapeutas Aharon Grossbard e Françoise Bourzat, nos anos 1990, em São Francisco. E recupera o caso de abuso denunciado pela canadense Meaghan Buisson, ocorrido em 2015, quando participou como voluntária de estudo clínico com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) dirigido por Richard Yensen.

Este último episódio é particularmente preocupante porque se deu no contexto da pesquisa mais avançada para consagrar um psicodélico (MDMA) como tratamento para um transtorno psiquiátrico (TEPT). O ensaio de 2015 era de fase 2, mas os estudos patrocinados pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) avançaram desde então para a fase 3, e se espera que psicoterapia assistida por MDMA para TEPT receba aprovação da agência FDA em 2023.

(Reprodução)

A Maps reagiu ao texto de Hall com esta nota. No protocolo de tratamento estipulado pela associação, as sessões em que o paciente fica sob efeito de MDMA tem acompanhamento contínuo de um casal de terapeutas, na pressuposição de que a presença de dois gêneros iniba iniciativas de cunho sexual.

Hall critica o fato de formulários de consentimento informado usados nesses estudos em geral não incluírem entre os riscos do MDMA seus conhecidos efeitos sobre o apetite sexual. Além disso, aponta reportagens sobre psicodélicos e obras de divulgação, a exemplo do best seller “Como Mudar sua Mente” de Michael Pollan, como veículos de uma visão edulcorada de psicodélicos, repaginados no atual renascimento como “tratamentos”, não mais tratados como as drogas poderosas que são.

A interdição de relacionamento sexual com pacientes antes, durante e depois do tratamento constitui regra básica de qualquer código de conduta para psicoterapeutas, como explicita a própria Maps. Dadas as especificidades da terapia assistida por psicodélicos, contudo, seria prudente dar mais ênfase aos riscos inerentes a essa modalidade, sob pena de ver escândalos contaminarem o noticiário até aqui positivo sobre o renascimento psicodélico.

O Instituto Chacruna, por exemplo, publicou em várias línguas um “Guia da Comunidade Ayahuasqueira para Conscientização sobre Abuso Sexual”. E o próprio Pollan, num evento do instituto com Labate na quinta-feira (18), apontou escândalos sobre abuso sexual como um flanco aberto para o revertério midiático que, na sua opinião, sempre sobrevém nos Estados Unidos com todo assunto que se torna popular.

Coincidência ou não, o sexo terá destaque especial na próxima Global Drug Survey, um influente levantamento de usos e práticas com drogas realizado por internet em vários países, incluindo o Brasil.

Pela descrição dos objetivos, o GDS 2022 parece mais interessado nos efeitos positivos de psicodélicos sobre a sexualidade. Talvez algo menos orientado para o prazer aflore nas questões dirigidas para “aqueles que tenham experimentado algum tipo de trauma sexual”, a fim de saber se “acharam que o uso de psicodélicos teve algum impacto nisso”.

Para evitar o viés edulcorante criticado por Hall, no entanto, haveria que incluir na pesquisa perguntas diretas sobre abuso sexual sofrido sob efeito de psicodélicos em contexto clínico, ritual ou recreativo. Por raro que seja esse tipo de abuso, conhecer sua dimensão e aperfeiçoar a prevenção são a maneira segura de impedir que predadores turvem as águas que mal começam a fluir desimpedidas.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)
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Documentário enquadra mistério da consciência em moldura quase mística https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/documentario-enquadra-misterio-da-consciencia-em-moldura-quase-mistica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/documentario-enquadra-misterio-da-consciencia-em-moldura-quase-mistica/#respond Tue, 26 Oct 2021 12:29:44 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/AwareCartaz2-300x195.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=708 Dentro de duas semanas psiconautas fluentes em inglês terão a chance de assistir a mais um filme sobre psicodélicos: “Aware – Glimpses of Consciousness” (em tradução livre, “Ciente – Vislumbres da Consciência”), de Frauke Sandig e Eric Black. O documentário só está em cartaz na Alemanha e nos EUA, mas “Aware” terá estreia no streaming em 10 de novembro (um trailer pode ser visto aqui).

O filme teuto-americano não trata exatamente de modificadores da consciência, mas da consciência em geral. Só que não: a psilocibina dos cogumelos “mágicos” entra como coadjuvante que acaba roubando a cena.

Repare no trecho do cartaz reproduzido acima. O rosto que aparece marcado pela cruz de luz laser vermelha é de Justine, voluntária em uma das mais de 600 sessões com psilocibina organizadas na Universidade Johns Hopkins pelo neurocientista Roland Griffiths, pioneiro da ciência psicodélica e talvez o maior responsável por manter vivo seu elo com a aura mística dos tempos do movimento hippie.

A moça conta no filme que, mesmo dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional para mapear sua atividade cerebral, a psilocibina a levou a conectar-se com pessoas queridas que já morreram. Disse que a experiência reforçou sua crença na vida além-túmulo e funcionou como um aprendizado para o futuro, dando-lhe segurança diante da morte.

Não será a primeira vez que este blog põe em dúvida a necessidade e a pertinência de preservar essa associação incômoda da ciência com misticismo. O filme não chega a embarcar na canoa esotérica, mas está lá no ancoradouro para dar boas-vindas a uma penca de pesquisadores e convertidos que têm um ou os dois pés nela.

Detalhe de “Celacanto Provoca Maremoto”, de Adriana Varejão, no Inhotim (Foto: Marcelo Leite)

Na entrevista para o documentário, Griffiths fala com desenvoltura sobre ensinamentos do budismo (“você não é o self”). Em sua interpretação, a psilocibina fornece uma via rápida para relaxar a chamada rede de modo padrão (ou DMN, default mode network em inglês), padrão de conexão cerebral da introspecção que se acredita estar na base do ego.

“Algo maior emerge”, diz o neurocientista no filme. “Uma abertura maior, para além das respostas habituais”, que estaria diretamente associada com o potencial terapêutico dos psicodélicos. Um estudo seu, aliás, mostrou forte correlação da intensidade da experiência mística vivida sob efeito da psilocibina com a melhora de sintomas de depressão.

Outros cientistas entrevistados vão mais longe. A mais desconcertante é Monica Gagliano, da Universidade de Sydney, que defende ampliar a noção de consciência difundindo-a pelo tecido da natureza –não só para incluir esboços da faculdade em primatas, cães, golfinhos e pássaros, como indicam alguns estudos, mas até as plantas.

Para Gagliano, vegetais são sencientes, ou seja, têm sentidos e sopesam informações do ambiente para aprender –meio caminho andado para a consciência. Seus experimentos indicam que brotos de ervilhas acham o caminho para fonte de água guiadas só pelo som gravado do líquido e que é possível reproduzir com plantas o condicionamento que Pavlov infligiu a cães (no caso vegetal, caules que se inclinam em busca de luz mesmo na ausência dela, após associar o som de uma ventoinha com a luz que se acende).

O documentário traz ainda um professor de filosofia, Richard Boothby (Universidade Loyola, Maryland, EUA), um agnóstico que deixa de sê-lo após ingerir cogumelos e se reconciliar como suicídio do filho. Dez anos depois de voluntariar-se para experimento com psilocibina, descreve a vivência como a mais significativa de sua vida, algo como sentir “o batimento cardíaco da realidade ela própria”.

A “aceitação amorosa” que lhe permitiu superar o luto revoltado seria a essência da vida, e não o medo ou defesas humanas. “A consciência não é nada mais que essa abertura”, diz. “Deus não é o destino, mas a jornada (…). Se Deus nos deu liberdade, ele não sabe o resultado. Nós somos os veículos [proxies] da própria vida de Deus.”

Previsivelmente, há também no filme um monge budista com doutorado em genética, Matthieu Ricard, e uma sacerdotisa maia, Josefa Kirvin Kulix. Nenhum deles economiza figuras expansivas para falar da consciência, que veem disseminada entre todos os seres e coisas –“como o vento, que não se pode aprisionar”, diz Josefa.

Mais surpreendente é ouvir Christof Koch, estrela da pesquisa sobre consciência no Instituto Allen criado pelo sócio de Bill Gates na origem da Microsoft, Paul G. Allen (1953-2018), quase exasperado com a impotência científica diante do desafio de capturar a natureza da consciência. “Só consigo ver mecanismos”, lamenta: “Como é que fazemos as águas do cérebro se transformarem no vinho da consciência?”.

Para Koch, a consciência é um traço fundamental do universo, como um mar que nos envolve. “Será que os peixes sabem que estão na água?” –pergunta. A julgar pelo título de seu livro de 2019, “A Sensação da Própria Vida – Por que a Consciência Está Disseminada, mas Não Pode Ser Computada” (The MIT Press), ele parece ter concluído pela impossibilidade de conhecer a consciência como um objeto exterior.

Com ele concorda o filósofo Boothby: a vivência psicodélica não é engendrada pela droga, mas vem de algo maior fora dela e do indivíduo. A psilocibina se limitaria a abrir o obturador da percepção, permitindo uma exposição radical do sujeito à própria vida, como o mecanismo da câmera fotográfica que propicia a entra da mais luz.

Se conclusão houvesse no documentário “Aware”, seria esta: a consciência permanece um mistério. Sua opacidade resiste até aqui a todas as ferramentas manejadas pela ciência para desvendá-la. O recurso frequente de pesquisadores a vocabulário e conceitos holistas, esotéricos ou místicos, como documenta o filme, é mais um sintoma de descolamento de nossa retina cognitiva, que nos condena a apenas tatear o objeto descomunal na penumbra psicodélica.

Interessante notar algum paralelo entre essas ideias sobre a consciência –não seria uma prerrogativa humana; substâncias psicoativas permitem vislumbrar suas manifestações em outros planos– e elementos do que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo ameríndio. Pajés e xamãs, afinal, usam psicodélicos ou quejandos para trocar de pele e transitar entre domínios em que todos os seres são humanos, por assim dizer, e vivem em sociedade.

“Aware”, o filme, é um bom exemplo do reconhecimento de que a consciência talvez só possa ser apreendida com ajuda de metáforas e poesia. Como o vento.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

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Pollan mergulha em mescalina, ópio e cafeína com novo livro sobre a mente https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/pollan-mergulha-em-mescalina-opio-e-cafeina-com-novo-livro-sobre-a-mente/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/pollan-mergulha-em-mescalina-opio-e-cafeina-com-novo-livro-sobre-a-mente/#respond Mon, 18 Oct 2021 18:50:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/peyote2-300x170.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=689 Escrevo esta resenha de “This is Your Mind on Plants” (Esta é a Sua Mente Sob Efeito de Plantas), de Michael Pollan, após três canecas de café e duas xícaras de chá preto. São 9h da manhã, e já vou dando exemplo de dependência do psicoativo mais usado no mundo –90% da população do planeta usa cafeína, informa o autor de outro best seller sobre inebriantes, “Como Mudar Sua Mente” (ainda não há previsão de lançamento da nova obra no Brasil).

Releve a repetida apelação marqueteira a “sua mente”, pois, embora se trate do que acontece em nossas cabeças, o livro destoaria numa prateleira de auto-ajuda. Seu foco não recai sobre muitos conselhos para enfrentar perrengues comezinhos, mas sobre três substâncias com efeitos paradoxais na mente (ópio, cafeína e mescalina) e ilumina uma pergunta desconcertante: por que nos intoxicamos?

Por coerência com o tema desta página e da obra anterior de Pollan, a acuidade mental propiciada pelo estimulante matutino sugere começar pelo psicodélico mescalina, terceira e última planta investigada no volume. Uma maneira também de fazer justiça ao primeiro “enteógeno” (mais sobre esse termo à frente) a estrear na literatura ocidental, com “As Portas da Percepção” de Aldous Huxley (1954).

Pollan enfrenta o composto originário dos cactos peiote (Lophophora williamsii, v. foto) e San Pedro (ou wachuma, gênero Trichocereus) com duas ferramentas afiadas de seu instrumental jornalístico, a pesquisa soberba e o testemunho de vivências pessoais. A primeira, porém, difere um tanto dos resultados em “Como Mudar Sua Mente”, pois passa quase ao largo das informações sobre farmacologia, testes clínicos e neurociência de psicodélicos, em favor da história e da antropologia.

Cacto andino San Pedro, ou wachuma.            (Por alexik – Flickr, CC BY-SA 2.0)

A mescalina, diz o autor, é provavelmente o psicodélico de emprego mais antigo por humanos. Seu uso ancestral por povos do sul da América do Norte e dos Andes pode ter começado há milênios, e já no século 17 foi proscrito pelo colonizador espanhol: em 1620 a Inquisição no México declarou o peiote uma “perversidade herética” e moveu 90 processos contra usuários até o fim do século 18.

Como de hábito, a proibição só logrou lançar o cacto na clandestinidade, e ele retornaria com a força do reprimido um século depois, como sacramento de uma nova religião libertadora. Após a dizimação dos habitantes originais da América do Norte, que teve seu clímax no massacre de dakotas em Wounded Knee (1890), vários povos indígenas confinados em reservas criaram a sincrética Native American Church, denominação também conhecida como peiotismo.

Aqui se apresenta a tese mais forte do livro, à guisa de resposta oblíqua para a questão de fundo sobre por que nos se intoxicamos: plantas portadoras de moléculas psicoativas, em geral alcaloides de gosto amargo que na origem podem ter sido adaptações para afugentar herbívoros, entram numa espiral de coevolução com humanos, parceria que favorece a propagação das primeiras e provê os últimos com recursos para intensificar modalidades da consciência que possam ajudá-los a se manterem vivos. No caso do peiote, permitir a sobrevivência cultural após o trauma da colonização.

No centro do peiotismo estão rituais de cura em torno de uma fogueira dentro das tendas “teepees”. Pollan tenta desvendar o que ocorre ali sob efeito do cacto, mas esbarra na impossibilidade de viagens com a pandemia de Covid-19 e na resistência dos praticantes à apropriação cultural do sagrado pelo homem branco, mesmo um jornalista antropologicamente correto como ele, que terá de se contentar com outro tipo de cerimônia bem californiana, mas de inspiração andina.

A repulsa da igreja a levantar o pano da “teepee” levou a uma escaramuça com o movimento Decrim Nature. O grupo tem conseguido convencer governos subnacionais dos EUA a descriminalizar as chamadas plantas de poder, os “enteógenos” (reveladores da divindade interior), ou pelo menos tirá-las do foco da repressão policial.

Embora seja o agrupamento muito respeitoso do uso tradicional de cogumelos, cactos e arbustos psicoativos, Decrim Nature recebeu da igreja a demanda para retirar o peiote da lista de organismos cujo poder não caberia ao Estado regular, sob pena de afrontar a liberdade religiosa e individual. A igreja teme que o peiote, já ameaçado de extinção nos poucos locais onde cresce naturalmente, ganhe mais popularidade em meio ao renascimento psicodélico e desapareça de seu habitat.

Pollan se encontrou antes com a substância pura, a mescalina sintetizada desde 1919, após ter sido isolada do cacto em 1897 (a Native American Church não repudia sintetizar o composto, só o consumo da planta sagrada por não membros e o cultivo em estufas). Sua experiência pessoal ecoa a ampliação quase acachapante da percepção, já descrita por Huxley, e oferece pistas sobre o potencial libertador de que se valeram indígenas norte-americanos.

A mescalina age lentamente, e a viagem que propicia pode durar 14 horas. Após aguardar mais de uma hora pelo efeito, na companhia de um livro, Pollan conta que em certo ponto a leitura passou a lhe parecer uma coisa absurda, inútil. Sentiu-se inundado pela realidade circundante, só tinha olhos para o que estava à mão ou no campo de visão, sem necessidade de mais nada além de contemplar.

Essa vivência não soa estranha para quem já viajou com psicodélicos como LSD ou cogumelos (psilocibina). Eles também aguçam a visão para cores e detalhes, sobretudo de objetos e seres naturais, que aparecem revestidos de um significado transcendental a que o psiconauta ganha acesso por obra e graça da substância.

No entanto, da descrição de Pollan parece sobressair uma diferença crucial da mescalina: o mergulho daria acesso às próprias coisas, à maravilha e ao espanto de sua mera existência. E não a um sentido oculto revelado, significados emanados e projetados da própria mente, o que um neurocientista talvez chamasse de saliência aberrante desencadeada pelos psicodélicos.

Nos vislumbres que colheu de praticantes do peiotismo, o jornalista ouviu mais de uma vez a comparação do cacto com um espelho, ou como uma entidade que vê dentro ou através da pessoa em busca de cura e lhe apresenta o que ela precisa enxergar. Ou seja, a realidade das coisas da biografia (traumas incluídos) como elas são, não como as explicamos ou revestimos de sentidos e sofrimentos, o que facilitaria a aceitação e a libertação –individual ou coletiva, no contexto da religião.

Essa aproximação entre o efeito individual (biográfico, psíquico) e o efeito coletivo (cultural, histórico) não é trivial de construir, mas Pollan tece a trama de modo convincente. Com sutileza e nuance, passa longe de narrativas pretensiosas como a do “macaco chapado”, hipótese propagandeada entre outros por Paul Stamets para explicar a própria emergência de faculdades conscientes em seres humanos, de maneira inverificável, como produto da coevolução com cogumelos alucinógenos.

Verdade que a atribuição de superpoderes históricos a compostos psicoativos funciona melhor com envolvimento da mescalina com a Native American Church. No caso da cafeína presente no café (Coffea sp.) e no chá preto (Camellia sinensis), sua emergência como bebidas globalizadas em paralelo com a Revolução Industrial e o Iluminismo pode não ser mais do que isso, uma coincidência.

Ainda assim, os indícios colhidos por Pollan na bibliografia acadêmica conferem, sim, alguma verossimilhança para a tese de que o estimulante favoreceu a adequação dos ritmos biológicos humanos à cadência do trabalho em máquinas e dos turnos em fábricas. Ou, ainda, a de que os cafés parisienses e londrinos tenham fomentado a moderna opinião pública e debates guiados pelo racionalismo, com a substituição do álcool dionisíaco pela beberagem apolínea.

No primeiro capítulo, o escritor escala a flor inocente da papoula (Papaver somniferum) e o demonizado ópio dela obtido para evidenciar a arbitrariedade do proibicionismo, que interfere no relacionamento milenar de culturas com determinadas plantas, ao sabor de acidentes históricos. Hoje o álcool destilado de vegetais está liberado; ópio e até papoulas são criminalizados, mas entre 1920 e 1933 se dava o oposto nos EUA: vender álcool era crime, mas não o láudano (tintura de ópio usada como sedativo).

Em realidade, ainda hoje a situação do ópio, de sua fonte e seus derivados se mostra para lá de ambígua. Sementes de papoula são vendidas livremente em terras americanas, para uso em padarias e jardins, mas é proibido fazer chá com elas ou com as cápsulas que crescem no canteiro após a queda das pétalas. Segundo outras interpretações legais obtidas por Pollan, até mesmo germinar as sementes compradas e cultivar as flores seria ilegal.

Papoulas das quais se extrai ópio (Papaver somniferum) (Tanja Niggendijker/Creative Commons)

Neste ponto o livro traz uma de suas narrativas mais kafkianas, sobre o jornalista amante da jardinagem que se viu constrangido a cortar de um artigo de revista, por aconselhamento de advogados, trechos em que contava suas experiências com a planta e os efeitos. As passagens autocensuradas só vieram à luz agora, no volume, um quarto de século depois, com a prescrição do possível delito.

Enquanto esses parágrafos ficaram num disco rígido, os EUA se debatiam com a comercialização desenfreada de opioides sintéticos que desencadeou uma epidemia de overdoses, matando 50 mil pessoas por ano. Em 1º de setembro foi dissolvida a empresa Purdue Pharma, que lançou em 1995 o analgésico OxyContin (oxicodona), e a família proprietária Sackler pagou US$ 4,5 bilhões (R$ 25 bilhões) em acordo para sustar processos (em 2011 o faturamento com a droga alcançara US$ 3,4 bi).

Pollan sobreviveu bem ao chá caseiro de papoula, não sem lamentar que o lenitivo tradicional tenha ficado proibido enquanto os Sacklers se safaram sem muita dor. Pelo que conta, duro mesmo foi abster-se de café por três meses, outro autoexperimento que resultou em perceptível perda de concentração e produtividade –e esta resenha constitui prova material de que a cafeína, mesmo não tendo propelido sozinha iluminismo ou fordismo, certamente tem fornecido combustível decisivo para o jornalismo.

Por que nos intoxicamos, afinal? Pollan diria, tentativamente, que o fazemos para alterar a textura da consciência, manipulando a malha do filtro com que coamos o caldo grumoso a jorrar dos sentidos para preparar o elixir de uma vida melhor.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)
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Sete erros e sete acertos com psicodélicos na série de TV ‘Nove Desconhecidos’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/sete-erros-e-sete-acertos-com-psicodelicos-na-serie-de-tv-nove-desconhecidos/#respond Sun, 26 Sep 2021 21:01:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/9ddesconhecidosNicole-300x169.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=652 “Só os psicodélicos (se) salvam” seria um resumo apropriado, ainda que enigmático, para a série da Hulu “Nove Desconhecidos”, em cartaz na plataforma Amazon Prime Video. Até Nicole Kidman, no papel de Masha, sai chamuscada da narrativa canhestra sobre a renascença dessas drogas para a medicina.

Os nove desconhecidos são clientes que chegam para dez dias de “transformação” no spa Tranquillum, comandado pela guru russa com apenas três auxiliares (Yao, Delilah e Glory). Zero faxineiros, cozinheiros e camareiros, mas pululam os erros, dos quais se destacarão os sete mais gritantes.

Antes, um pouco de contexto. Existem, sim, spas psicodélicos, por exemplo na Jamaica e na Costa Rica, assim como clínicas sérias no Brasil e turismo xamânico no Peru.

Não é por causa dessa indústria marginal, porém, que se ouve falar tanto das substâncias. E, sim, porque a ciência está a ponto de ressuscitá-las para tratar transtornos mentais, como se pôde acompanhar aqui ao longo dos últimos 12 meses.

É muito provável que em 2023 o MDMA (ecstasy, bala, Michael Douglas) termine autorizado nos EUA para psicoterapia para estresse pós-traumático. Depois deverá ser a vez da psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos” (gênero Psilocybe), em investigação para condições como depressão, ansiedade, TOC, anorexia e outros transtornos.

Agora, os sete erros (se quiser evitar spoilers, pare por aqui):

  1. Ausência de consentimento – Masha dá psilocibina misturada aos smoothies servidos ao longo do di sem o conhecimento dos hóspedes. Até o mais maluco dos gurus psicodélicos evitaria esse abuso, pois em qualquer país daria cadeia mesmo que não se tratasse de drogas psicoativas. A série não deixa claro nem se a personagem de Kidman está qualificada para ser terapeuta.
  1. Participante desequilibrado – O estafe de Tranquillum pesquisou e escolheu a dedo os nove clientes, o que torna incompreensível incluir Carmel, uma mulher transtornada, com passado violento e biografia cruzada com Masha. Em testes clínicos de psicodélicos, qualquer tendência ou histórico de psicose da pessoa ou na família próxima serve como critério de exclusão. Como se pode ver na TV, a mancada quase sai caro para a guru.
  1. Dosagens seguidas – O pessoal do spa fala várias vezes num protocolo nunca detalhado, mas fica evidente que as doses estão sendo ministradas todos os dias, ou quase. Ninguém desperdiçaria psilocibina assim, pois, como os psicodélicos clássicos LSD e mescalina, a repetição implicaria perda de efeito pela rápida tolerância que desencadeiam.
  1. Mistura de psicodélicos – Em certa altura Masha, Yao e Delilah discutem a antecipação do protocolo com inclusão de LSD no coquetel. Por mais que alguns adeptos gostem de misturar compostos psicoativos ao mesmo tempo (já vi gente usando ayahuasca, rapé, maconha e sananga na mesma noite, como narro no livro “Psiconautas”), nenhum terapeuta responsável seguiria por aí. Os efeitos podem se compor de maneira imprevisível e fazer mais mal do que bem (sem falar na tolerância cruzada de LSD e cogumelos, que agem sobre os mesmos receptores de serotonina).
  1. Alucinação coletiva – É a parte mais dura de engolir no drama da Hulu. A família composta por Napoleon Marconi, sua mulher Heather e a filha Zoe quer livrar-se do trauma pelo suicídio de Zach, gêmeo de Zoe, e Masha os convence de que uma dose alta de LSD (ou psilocibina, não fica de todo claro) trará o rapaz de volta. Já seria fantasioso além da conta, mas os três acabam tendo a mesma alucinação, participando de diálogo a quatro com o defunto.
Zoe (Grace van Patten) e Masha (Nicole Kidman) em “Nove Desconhecidos” (Foto: Dvilgação/Amazon Prime)

É verdade que muito da cultura psicodélica bordeja com o misticismo e que alguns rituais tradicionais são descritos como acesso ao mundo dos mortos. O enredo parece atribuir a Zoe um poder mediúnico amplificado pelo ácido, o bastante para invocar a aparição também para os pais, mas o abraço simultâneo dos três com o suicida resulta numa das cenas menos convincentes e mais constrangedoras.

  1. Envolvimento da terapeuta – Para piorar as coisas, Masha resolve tomar a droga junto com os Marconis. Supostamente, no esforço de convencê-los da segurança do composto (mas ela esconde que seu objetivo é conjurar outro morto). Qualquer manual sobre uso seguro de psicodélicos contraindicaria essa prática, mesmo que não se tratasse de um terapeuta.

Sempre se recomenda haver uma pessoa sóbria por perto, para eventuais emergências como viagens ruins, surtos e mal-estares. Delilah fugiu para chamar a polícia, pois acha que Masha passou dos limites. Yao está ocupado com Carmel. Glory se dedica a tourear o restante do grupo revoltado. Não sobrou nenhum adulto na sala.

  1. Experiência artificial de quase-morte – Por orientação de Masha, que já se encontra para lá de Marrakech, Glory tranca os hóspedes remanescentes num salão preparado para simular um incêndio e levá-los a acreditar que vão morrer. A ideia tresloucada é que a proximidade do desfecho final os force a considerar o que de fato importa na vida, blá-blá-blá.

Ninguém duvida de que uma vivência terminal possa ser transformadora para muita gente. Mas, de novo, soa despropositado que o efeito seja alcançado ao mesmo tempo e na mesma situação fortuita, coletivamente, por meia dúzia de pessoas. Além disso, se a série se baseia no poder dos psicodélicos, por que o artifício de recorrer a um recinto para suscitar a experiência? Faria mais sentido utilizar de forma controlada a 5-MeO-DMT, substância de forte e curto impacto comumente descrito como completa dissolução do ego.

Masha até menciona de passagem os termos técnicos “set” e “setting”, aludindo às disposições mentais do psiconauta e as condições do ambiente consideradas fundamentais para uma boa viagem, mas não passa de mesura inconsequente à melhor ciência psicodélica. Não há preparação digna do nome para os participantes sobre o que os espera, muito menos integração dos conteúdos psíquicos e emocionais que vão aflorando. Não espanta que tudo se encaminhe para um caos alarmante.

No oitavo e último capítulo, contudo, como em qualquer novela mequetrefe de TV, tudo se resolve. É pena que o passe de mágica obscureça tudo de verdadeiro que a série captou de fiel sobre a experiência psicodélica. Seria possível escrever uma apreciação inteira com, digamos, sete acertos de “Nove Desconhecidos”, por exemplo:

Sim, com psicodélicos é comum a pessoa aceitar melhor a própria mortalidade. Idem com traumas de infância, perda de pessoas próximas, desilusões amorosas. Como diz Zach, tudo que se vê sob efeito dessas drogas é irreal, está só na cabeça de quem toma e não no mundo exterior.

A empatia cresce de modo notável. Viagens ruins acontecem, mas são raras e podem ter rendimento terapêutico. Casais se tornam mais próximos, o sexo melhora. O psiconauta fica propenso a relevar defeitos, remorsos e más ações, em si e nos outros.

Essas sete coisas corretas estão lá no drama televisivo, o que lhe confere certo aspecto positivo. Também seria possível enxergar a série como uma espécie de denúncia dos riscos inerentes à esfera meio clandestina de curadores, pseudoterapeutas e xamãs improvisados que receitam psicodélicos como se fossem água benta. Não são.

Essa leitura benevolente de “Nove Desconhecidos” se esboroa no capítulo final. O caos não se consuma por força de suposto poder superior dos psicodélicos, que prevalece mesmo após a chegada da polícia. Até Masha se safa, misteriosamente, dos crimes patentes que cometeu em nome da força dessas substâncias.

Só os psicodélicos (se) salvam da série problemática. E com ela só se reforça o excesso de expectativas com eles, como se fossem a panaceia final, a salvação da humanidade, a bala de prata contra o sofrimento do mundo pós-pandemia –e não substâncias de trabalho, úteis para psicoterapia e autoconhecimento, mas que não trazem nada para quem está só em busca de soluções fáceis.

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A Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa nesta terça-feira (28 de setembro). Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

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Timothy Leary prova que não se fazem mais influencers como antigamente https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/28/timothy-leary-prova-que-nao-se-fazem-mais-influencers-como-antigamente/#respond Mon, 28 Dec 2020 10:35:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/TimothyLeary-LectureTour-OnStage-SUNYAB-1969DennisBogdan-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=214 No começo dos anos 1970, a mudança para uma casa maior trouxe a chance de realizar o sonho dos três adolescentes: um quarto para cada um. Em lugar disso, os dois rapazes abriram mão da privacidade ao repartir um dos cômodos e concretizar no sobressalente sonho ainda mais poderoso: ter espaço exclusivo para a moçada “curtir”.

Uma das paredes foi pintada de azul escuro, e sobre ela aplicaram-se dezenas de estrelas prateadas com um molde e tinta em spray. Um colchão direto sobre o piso, coberto com colcha indiana, recebeu várias almofadas. As estampas preferidas de tecidos eram artesanais, em geral tie-dye.

Instalaram sobre estante de tábua e tijolos vazados o bem mais precioso: um conjunto de som estéreo Gradiente (amplificador, duas caixas de som e fones de ouvido) conectado ao toca-discos Garrard e ao gravador Akai de rolo. Ali se refugiavam para ouvir música, em discos de vinil emprestados (copiados em fitas BASF) por amigos mais afortunados que tinham feito intercâmbio nos EUA.

Os três jovens talvez não soubessem (um certamente não sabia), mas seguiam os conselhos psicodélicos de Timothy Leary sobre set e setting. Ou seja, queriam expandir a consciência e projetaram um ambiente acolhedor para suas viagens.

O avô de todos os influencers havia criado o lema corrosivo da contracultura: turn on, tune in, drop out (ligue, sintonize, caia fora, em tradução pobre). No Brasil se dizia “desbunde”:  mergulhar na vida interior, sob influência de música e drogas, recusando o caminho previsível estudo-trabalho-família oferecido pelo “sistema”.

Ouviam-se Beatles, Pink Floyd e Traffic em meio à fumaça de maconha. O LSD prescrito por Leary era caro e raro, mas aparecia. Os mais atirados se mandavam para Arembepe ou Caixa-Prego, na Bahia; outros conseguiam alcançar a Meca lisérgica em Londres ou Amsterdã, “num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, como cantou Gilberto Gil.

Praia de Arembepe, na Bahia (Divulgação)

Milhões de adolescentes seguiram essa trilha pelo mundo. Até hoje, meio século depois, ainda se ouvem os ecos da revolução hippie –não é por acaso que se traduziu o like das redes sociais como curtir, gíria criada na época. Filhos e netos daqueles cabeludos ainda escutam Beatles e gozam da liberdade sexual conquistada por eles.

Leary não foi o único líder de uma geração que se insurgiu contra a Guerra do Vietnã e as ditaduras militares, apenas seu profeta mais midiático. Hoje é fácil ser influencer, com YouTube e Instagram na palma da mão –e também mais efêmero. Quem acredita que daqui a 50 anos vai ter tiozão cabeça escrevendo sobre Felipe Neto ou Whindersson Nunes?

Ninguém nem sonhava com internet nos anos 1970. As ideias se propagavam de um continente a outro em LPs, livros, revistas e cartas, ou viajavam na cabeça dos abastados que conseguiam ir e voltar de avião. Leary se tornou inimigo público número um nos EUA gravando conselhos em discos de vinil e exibindo na TV seu sorriso inconfundível (no que seguia a recomendação de Marshall McLuhan, teórico pioneiro da comunicação de massa).

Capa do LP “L.S.D.”, de Timothy Leary (Reprodução)

Leary gravou três discos de propaganda psicodélica: “Turn on, Tune in, Drop out”, “The Psychedelic Experience” e “L.S.D.” (todos disponíveis no Spotify). O psicólogo banido de Harvard pelos excessos do Projeto Psilocibina fala inglês devagar, quase hipnoticamente, com longas pausas entre as frases. Não há estridência, só convite a reflexão, suavidade e bondade. Parece incrível, ouvindo-o hoje, que tenha deixado marcas tão profundas na memória coletiva que chamamos de cultura.

Timothy Leary acabou preso várias vezes, fugiu da prisão e peregrinou pelo mundo. Um câncer de próstata o matou em 1996. Seu corpo foi cremado e, dez meses depois, sete gramas das cinzas foram lançadas no espaço a bordo de um foguete Pegasus, junto com as de outras 23 pessoas –entre elas Gene Roddenberry, criador de “Jornada nas Estrelas”.

Os luminares do renascimento atual são neurocientistas e querem provar em bancadas de laboratório os benefícios mentais que Leary e seus companheiros pretendiam espalhar pelo mundo. Fazem de tudo para se desvincular de sua pregação messiânica, e têm boas razões para isso, pois foi o potencial político subversivo que deu pretexto para a reação conservadora proibicionista enterrar a ciência psicodélica por três décadas.

Sinal dos tempos, contam até com um influencer, por coincidência outro Timothy: Tim Ferriss, coach de negócios e investidor que ajudou a levantar US$ 30 milhões para os testes clínicos de MDMA (ecstasy) contra transtorno de estresse pós-traumático, que deve levar à autorização da primeira terapia psicodélica em 2023.

Estaremos ainda falando de Tim Ferriss em 2070 como hoje lembramos de Tim Leary? Meu palpite é que não se fazem mais influencers como antigamente.

Bom 2021 a todos.

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Ilusões psicodélicas não são patológicas e podem até fazer enxergar melhor https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/ilusoes-psicodelicas-nao-sao-patologicas-e-podem-ate-fazer-enxergar-melhor/#respond Tue, 08 Dec 2020 01:43:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/FOTOOLHOSidney-Goncalves-Do-Carmo-300x169.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=148 Aborrecido com a conversa interminável, um homem de seus 60 anos deixa o grupo, caminha poucos metros pelo caminho de terra e para debaixo de uma árvore. Faz três horas que tomou cerca de 150 microgramas de LSD –uma dose cheia, mas não heroica, do psicodélico. Seu olhar é atraído para cima, e ele duvida do que vê.

A árvore está viva, viva demais. Claro, toda árvore vive, diz para si próprio, mas é mais que isso. Não há vento. Uma seção do tronco se move de forma lenta e lânguida, como uma serpente enorme. A casca da madeira tem padrões geométricos de amarelo, marrom e verde. Sabe que é uma ilusão, e se alegra com a chance de ver a árvore como se fosse a primeira vez que vê uma.

Passam alguns segundos de embevecimento confuso. A serpente vegetal ganha aos poucos os contornos de uma mulher. Os desenhos geométricos coalescem como estampa de sua blusa. A realidade real se impõe de modo brutal na visão de uma bermuda jeans. O momento mágico se desfaz: ele está, de fato, diante de uma moça que subiu na árvore, uma das companheiras de viagem no sítio da Grande São Paulo. Ri –de si mesmo, da convicção poderosa e fugaz propiciada pela visão.

O que são essas visões mediadas por psicodélicos, afinal? Quais mecanismos psíquicos lhes dão origem? No que elas diferem ou se aproximam das alucinações produzidas não por drogas, mas por transtornos psiquiátricos como os do espectro da esquizofrenia ou por distúrbios neurológicos como certas formas de demência? Como podem os psicodélicos carregar potencial terapêutico, por exemplo para tratar depressão, se seu efeito reproduz sintomas similares aos de graves patologias?

A neurociência ainda não tem repostas completas para essas questões, ainda que venha dando passos decididos nessa direção. O Consórcio Internacional para Pesquisa de Alucinações (ICHR, na sigla em inglês) mapeou o que se sabe sobre a matéria em vários níveis, da farmacologia às imagens funcionais do cérebro e das áreas envolvidas, passando pela fenomenologia, isto é, os relatos de experiências vividas por pessoas que têm visões ou alucinam.

Não seria o caso, aqui, de entrar nos detalhes do artigo publicado, no periódico Schizophrenia Bulletin, por Pantelis Leptourgos e uma penca de colaboradores, com o título “Alucinações sob psicodélicos e no espectro da esquizofrenia: Uma comparação interdisciplinar e multiescalar”. O leitor terá de se contentar com um resumo muito superficial e imperfeito, mas fica a recomendação para enfrentar o estudo original (em inglês).

A primeira semelhança descrita entre os dois tipos de alucinação, o psicodélico e o psiquiátrico, está uma redução na integridade e na estabilidade de redes funcionais do cérebro. Ou seja, uma espécie de relaxamento nos padrões de disparos simultâneos de neurônios em diferentes áreas cerebrais quando a pessoa se encontra em determinados estados (sono, vigília, atenção, introspecção etc.).

Uma rede importante aqui, da qual muito se ouvirá falar neste blog, é a rede de modo padrão (mais conhecida como DMN, na sigla em inglês). Ligada à introspecção, ela normalmente só fica ativa quando silenciam outras redes mobilizadas na realização de tarefas, com atenção voltada para o exterior –é o que se chama de anticorrelação, ou ortogonalidade, um funcionamento mais ou menos excludente que também se enfraquece durante a emergência de alucinações na esquizofrenia e com o uso de alguns psicodélicos, como a psilocibina.

Outra similaridade apontada no artigo é a atribuição às visões do que os autores denominam como forte sentido metafísico. As vozes ouvidas pelo esquizofrênico são percebidas por ele como vozes reais, não fabricações suas. O tronco coberto de desenhos geométricos que se contorce lentamente aparece na viagem psicodélica como revelação da verdadeira essência viva e feminina do vegetal, embora não passe de uma mulher que trepou na árvore.

Há algumas diferenças marcantes, porém. Psicodélicos turbinam disparos principalmente em áreas de córtex sensorial primário, enquanto na psicose a superativação afeta redes associativas. No primeiro caso, são transitórias, desaparecem com intervenção de pensamentos racionais e quando passa o efeito da droga; no segundo, manifestam-se de maneira crônica.

O primeiro estudo a evidenciar a ativação de córtex visual primário por um psicodélico –no caso, ayahuasca– foi realizado por brasileiros e publicado em 2012, no periódico Human Brain Mapping, pelo grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN. O artigo de Leptourgos, incrivelmente, não cita o trabalho pioneiro.

Alucinações e ilusões psicodélicas são predominantemente visuais, em geral geométricas, mas sem perda completa do senso de realidade. Já as psicóticas são comumente auditivas, vozes que o doente não consegue distinguir de vozes reais. Nas duas situações, porém, as visões vêm carregadas de intenso significado.

Leptourgos e colegas consideram alguns modelos teóricos que poderiam explicar o funcionamento normal do cérebro e o que nele se altera no curso de alucinações. Para eles, em ambos os casos ocorrem perturbações do mecanismo computacional identificado como processamento preditivo, vale dizer, das funções cerebrais que mobilizam conteúdos prévios para interpretar o que chega pelos sentidos e decidir o que fazer ou pensar a respeito. Desfeita a perturbação, a árvore-mulher maravilhosa volta a ser uma simples mulher na árvore.

Pense no cérebro como um filtro. Uma cacofonia de dados sensoriais tem de ser processada para ganhar sentido, na forma de hipóteses que vão sendo testadas com base em tudo que fixou na memória do que a pessoa viveu e aprendeu, até que ela ou ele conclua algo a respeito (não necessariamente de modo consciente). A trama do filtro que peneira as associações se compõe das redes de neurônios que se habituaram a disparar juntos para gravar o que se viveu e aprendeu de forma significativa.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Outro artigo esclarecedor sobre o tema, “Unificando teorias sobre efeitos de drogas psicodélicas”, foi apresentado em 2018 por Link Swanson, da Universidade de Minnesota, na revista Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology. O modelo do processamento preditivo, mostra Swanson, é apenas uma de várias construções teóricas fundadas na metáfora do filtro –uma história de mais de um século de tentativas de explicação da consciência e suas alterações que vão sendo aperfeiçoadas e abarcam de William James a Henri Bergson e de Sigmund Freud a Aldous Huxley.

O cérebro entrópico proposto por Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, está entre elas. Nessa concepção, a mente em condições normais se encontra num equilíbrio ótimo entre ordem e desordem, com redes como a DMN flexíveis o bastante para permitir adaptação do sujeito a novas circunstâncias e estáveis o suficiente para manter a unidade do self (ou do ego, como diria Freud).

Esse tipo de modelo permite também ir além do paradoxo na oposição entre o terapêutico e o patológico que as alterações visuais colocam para as substâncias psicodélicas, que por muito tempo foram chamadas também de drogas psicotomiméticas, pois induziriam uma imitação de estados psicóticos. Esse paradigma foi abandonado, em grande parte, a partir dos anos 1960, quando as diferenças entre a alteração da consciência nas “viagens” psicodélicas e o delírio psicótico foram ficando evidentes e as terapias psicodélicas ganharam espaço.

A explicação envolvendo a DMN sugere que, em transtornos como a depressão, a rede como que entra em parafuso, entregue à rigidez e repetição de pensamentos negativos, por assim dizer um excesso de ordem que culmina na ruminação incessante. O potencial terapêutico dos psicodélicos adviria, então, justamente de sua capacidade de relaxar a DMN, vale dizer, de reduzir sua integridade e estabilidade (aumentando a entropia), ao mesmo tempo em que arrefece a anticorrelação dela com redes mais voltadas para execução de tarefas e atenção voltada ao exterior.

Muito simplificadamente, uma atividade cerebral menos balizada pela ordem permitiria a emergência ou construção de novos percursos mentais. Caminhos alternativos, lampejos incomuns, hipóteses mais ousadas que não são descartadas de pronto como irrelevantes, deixando assim de sucumbir ao filtro implacável das memórias marcadas a ferro e fogo na psique, não raro por traumas incandescentes. Abrem-se frestas por entre as quais, como nas alucinações lisérgicas, interpretações impensáveis podem aparecer banhadas na luz da realidade.

Há uma mulher na árvore, e é verdade. A mente capaz de entender que há mais de um sentido nessa afirmação e de discernir o que é emocionante do que é apenas real e, mais, que não há contradição necessária entre uma coisa e outra –eis a mente de uma pessoa com mais chance de ser menos infeliz.

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Entenda o significado do termo ‘psicodélico’, melhor que ‘alucinógeno’ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/entenda-o-significado-do-termo-psicodelico-melhor-que-alucinogeno/#respond Mon, 30 Nov 2020 11:40:53 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/MandalasSpeedyMcVroomPixabay-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=126 Quando alguém ouve a palavra “psicodélico”, é quase certo que lhe venha à mente figuras super coloridas, cheias de curvas, motivos geométricos, labirintos fractais, talvez alguns elementos místicos. O vocábulo ficou associado com o estilo característico da “poster art”, a marca mais visível da contracultura dos anos 1960 e 1970.

Trata-se de uma redução indevida. O efeito psicodélico, ou seja, o tipo de experiência mental desencadeada com o consumo de LSD, psilocibina (cogumelos ditos “mágicos”) e DMT (presente na ayahuasca), vai muito além das manifestações visuais, mas estas acabaram por se tornar o símbolo das viagens propiciadas, inclusive para depreciar essas substâncias com o termo “alucinógeno”, que tem algo de pejorativo.

Ver coisas que não existem de verdade, afinal, se parece muito com o que seria um surto psicótico, para o senso comum. A pessoa ficaria “muito louca”. Alucinados, como se diz, usuários cometeriam desatinos como pular de uma janela, atirar o carro num precipício, atacar companheiros transformados em monstros –essa a noção que conservadores proibicionistas trabalharam para colar aos psicodélicos, com razoável sucesso.

Não é bem assim, como sabe quem já os experimentou mais de uma vez. Cores sensacionais na natureza, sim, belezas capazes de levar a pessoa às lágrimas. Enxergar lindas figuras geométricas e caleidoscópicas de olhos fechados, isso é bem comum. Porém, há psiconautas tarimbados que nunca viram, de olhos abertos, seres fantásticos andando pelo mundo.

Ilustração de Rodrigo Visca

Viagens ruins (“bad trips”) acontecem, mas são raras: entre 62% e 74% de usuários de LSD declararam, para uma pesquisa global sobre consumo de drogas, nunca ter passado por uma dessas experiências penosas. Mortes, então, ainda mais incomuns.

Por essas associações espúrias, não simpatizo com o termo “alucinógeno”. Isso embora possa ter um uso bem preciso –LSD, DMT e psilocibina, afinal, podem sim causar alucinações, em especial quando a dose é alta. O leitor o encontrará em mais de uma nota, neste espaço, mas de maneira bem menos frequente que “psicodélico”.

O termo que qualifica a virada no nome do blog foi cunhado no ano em que nasci, 1957, pelo médico britânico Humphry Osmond. Numa troca de cartas com o conterrâneo Aldous Huxley, autor do livro “As Portas da Percepção”, Osmond rejeitou a proposta do escritor de criar a palavra “fanerótimo”, algo como “revelador do espírito”, defendendo a alternativa “psicodélico”. O significado era parecido, “manifestador da mente, ou alma”.

Se o neologismo pegou, foi com razão. A vivência psicodélica envolve muito mais que os “visuais” de que tanto gostavam os hippies brasileiros, ou as “mirações” contempladas por cultuadores da ayahuasca. Pela qualidade mística da experiência que o chá, cogumelos Psilocybe e peiote (mescalina) propiciam em contextos religiosos, há quem prefira o termo “enteógeno” (indutor de êxtase divino ou xamânico, etimologia parecida com a de “entusiasmo”).

Num artigo de revisão de 2017 na revista Neuropharmacology, o pesquisador suíço Matthias Liechti listou os efeitos do LSD descritos em pesquisas ao longo de 25 anos (sim, realizaram-se muitos estudos, antes e depois da proibição, com o composto lisérgico inicialmente distribuído pelo laboratório Sandoz sob a marca Delysid):

– bem-estar

– sinestesia

– alterações da percepção

– despersonalização

– experiências místicas

– sentimento de proximidade com outros

– confiança

– sugestionabilidade

– empatia aumentada

– reação menor a imagens de medo

– resposta emocional aumentada a música

– níveis aumentados dos hormônios cortisol, prolactina e ocitocina

– redução de ansiedade etc.

Alterações mentais observadas em pessoas sob efeito de três doses de LSD, 75, 100 e 200 microgramas, segundo revisão na literatura de Matthias Liechti (Reprodução)

Não admira que LSD e congêneres psicodélicos clássicos como DMT e psilocibina tenham voltado a entrar na mira da pesquisa neurocientífica e psiquiátrica. Assim como o psicodélico não alucinógeno MDMA (base do ecstasy), em estudos experimentais essas drogas –que continuam proibidas, cabe lembrar– têm produzido resultados promissores.

A proposta é usar essas substâncias que reduzem medo e aumentam empatia como adjuvantes para psicoterapia em transtornos como depressão e estresse pós-traumático. Talvez para livrar-se da bagagem contracultural do vocábulo “psicodélico”, houve quem defendesse o emprego do termo “empatógeno” (causador de empatia) para designar o ecstasy, por exemplo, que não dá margem a visuais e alucinações.

Não colou muito. Um dos argumentos contra ele é a semelhança indesejável, ao ouvido do paciente, com “patógeno” (causador de doença), como defendeu David Nichols. O pesquisador americano propõe, em seu lugar, a variante “entactógeno”, para salientar a propriedade de “produzir um contato interior”, ou seja, pôr a pessoa diante de sua própria alma, revelar-lhe os cantos escuros da mente.

Ora, é bem o que “psicodélico” significa. Se era isso que os hippies buscavam, tanto melhor para eles –e, talvez, para seus descendentes, se a renascida ciência psicodélica prosseguir evidenciando que essas substâncias carregam mais benefícios do que faz crer a propaganda alucinada dos proibicionistas.

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Ciência psicodélica se afasta do misticismo sem perder a ternura https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/16/ciencia-psicodelica-se-afasta-do-misticismo-sem-perder-a-ternura/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/16/ciencia-psicodelica-se-afasta-do-misticismo-sem-perder-a-ternura/#respond Mon, 16 Nov 2020 15:01:22 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/BlocoTrombetasCosmicasBrunoSantos-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=96  

Viagens com LSD ou a psilocibina de cogumelos “mágicos” podem ser experiências perturbadoras, e não poucos que passaram por isso acreditam ter chegado mais perto de algum deus. Há quem diga que essas drogas podem converter ateus em crentes, ou amolecer o coração do conservador mais empedernido. Mas é melhor ir devagar com o andor do misticismo, porque os psicodélicos são de barro.

A discussão foi reaberta pelo bioeticista Eddie Jacobs na revista Scientific American, sob o título provocador de “E se uma pílula puder mudar sua política ou crenças religiosas?” (em inglês). Ele alerta para a possibilidade de que a associação entre o potencial psicoterapêutico e epifanias religiosas queime o filme das substâncias psicodélicas.

Há precedentes preocupantes, de fato. Os rótulos de misticismo e o pacifismo foram colados ao LSD pela contracultura e atingiram proporções messiânicas com as pregações de Timothy Leary. As viagens transformadoras salvariam o mundo, um maluco por vez, e quanto mais gente tomasse a droga, melhor.

A reação proibicionista dos anos 1970 acabou com esses sonhos. Só que ela baniu também, ou quase, a pesquisa científica com esses compostos para tratar transtornos mentais como depressão e alcoolismo, que também decolavam. Elas foram então abortadas e agora pelejam para voltar ao céu da ciência normal. No radar de Jacobs aparecem turbulências originadas pelos fortes ventos conservadores do presente.

Para eventualmente vingar como tratamentos autorizados contra depressão, por exemplo, o que poderia acontecer nos EUA com a psilocibina em poucos anos, psicodélicos precisam sair da lista de substâncias ilícitas. Ou, pelo menos, acabar regulamentadas como adjuvantes em psicoterapia, processo já iniciado no estado de Oregon. Trumpistas alarmados com o risco de novos antidepressivos virarem um elixir antifascista ou ateísta podem erguer sérios obstáculos nessa cruzada.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

Matthew Johnson e David Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (JHU), se apressaram a dissipar o vínculo ameaçador. Publicaram na mesma revista a resposta “Não há boa evidência de que psicodélicos possam mudar sua política ou religião” (em inglês).

Ocorre que muito da associação da psilocibina com misticismo partiu do grupo da JHU que deu origem ao Centro para Pesquisa Psicodélica. Mais precisamente, do trabalho do pioneiro Roland Grifftihs, que publicou em 2006 um estudo sobre a significado espiritual das experiências de tipo místico desencadeadas pelo composto psicoativo dos cogumelos Psilocybe.

Outra pesquisa, esta do grupo de Robin Carhart-Harris no Imperial College de Londres, investigou o aumento da identificação com a natureza e o decréscimo de visões políticas autoritárias em participantes de um estudo preliminar com psilocibina para depressão. Questionários padronizados para mensurar o grau de adesão a esses valores foram empregados com apenas sete voluntários, o que equivale a dizer que não se devem extrair conclusões muito bombásticas dos dados apresentados.

Além das limitações intrínsecas a esse tipo de investigação, há que considerar o forte viés de confirmação que se pode farejar aí. Pessoas conservadoras são menos inclinadas a tomar psicodélicos ou a participar desses estudos. Também parece mais provável que os voluntários tenham experiências anteriores com essas drogas ilícitas e pertençam àqueles grupos dispostos a enfrentar riscos para ter experiências espirituais significativas.

De resto, as chamadas para tais pesquisas selecionam esse perfil de maneira ativa. Por curiosidade, outro dia me decidi a preencher uma pesquisa online da JHU sobre mudança de crenças ocasionadas por experiências psicodélicas. Logo no começo a pessoa será excluída se responder “não” a uma pergunta sobre ter passado por alteração desse quilate esotérico que atribua à droga.

Página da pesquisa do Centro para Pesquisas Psicodélicas da Universidade Johns Hopkins para participar de estudo sobre mudanças de crenças (Reprodução)

A dificuldade está em como interpretar o pré-requisito “mudança”. Do modo como a questão é formulada, o participante acaba estimulado a entender como “troca” ou “deslocamento” de valores –o que não era meu caso (por exemplo, transferir-se da extrema direita para o centro do espectro político, como andam dizendo de Sérgio Moro). Alertado por outro voluntário dispensado de cara, forcei um pouco a mão e decidi que “intensificação” caberia no conceito de mudança.

Eu já era ateu antes dos psicodélicos, e assim continuei, como vai narrado no livro “Psiconautas” (no prelo, lançamento em 2021). Minha orientação política se pautava por valores como justiça social, direitos humanos, liberdades individuais e preservação ambiental –nada disso mudou.

Por outro lado, tomar ayahuasca, LSD, MDMA e psilocibina ocasiona algumas experiências espirituais profundas. Atenção: “espirituais”, e não místicas, nem religiosas. Os resultados ajudam a compreender por que os psicodélicos carregam potencial terapêutico, como indicam os testes clínicos ainda preliminares.

Aprofunda-se até quase um estado de graça o prazer de estar em contato com a natureza e poder admirar a beleza de uma ave. A comunhão com a dor de pessoas de quem nem era amigo próximo faz correrem lágrimas. Vínculos familiares se fortalecem, o medo da morte cede, a doença deixa de ser vista como injustiça malévola.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

Dá para entender que essa reconexão com coisas maiores do que o ego –natureza, humanidade, semelhantes– seja sentida por alguns como experiência mística, mas não é obrigatório atribuir a condição de realidade externa àquilo que se experimenta na psique. A chave parece estar no aumento da empatia de que todos são capazes, e para isso não é preciso acreditar que amor ao próximo é um comando divino.

Duvido que um conservador ou um crente deixe de sê-lo por tomar LSD ou comer cogumelos; parece mais crível que a experiência lhe reviva os sentimentos generosos que terminaram ossificados em proibições e mandamentos autoritários. Criar conexões cerebrais e abrir caminho para pensamentos novos não fará mal a ninguém.

Tudo somado e subtraído, a promessa medicinal dos psicodélicos só tem a ganhar livrando-se do misticismo e das pretensões messiânicas. Não é um ingrediente necessário, e nem há base científica sólida para o vínculo, como em boa hora assinalam Jacobs, Johnson e Yaden.

Diagrama mostra conexões entre áreas do cérebro (diferenciadas por cores) sob efeito de psilocibina (dir.) e sóbrio (Divulgação/Imperial College)
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