Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Este blog está de mudança https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/este-blog-esta-de-mudanca/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/este-blog-esta-de-mudanca/#respond Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=778 Caro leitor,

Este blog continua na Folha, mas, agora, em um novo endereço. Acesse folha.com/viradapsicodelica para continuar lendo tudo que o Virada Psicodélica publica.

Os textos já publicados permanecerão neste espaço para serem lidos e relidos.

Clique a seguir para ler o novo texto o blog:

Podcasts destacam oportunidades e riscos da onda psicodélica

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Relatório prevê mercado de R$ 13 bilhões para medicina psicodélica em cinco anos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/04/relatorio-preve-mercado-de-r-13-bilhoes-para-medicina-psicodelica-em-cinco-anos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/10/04/relatorio-preve-mercado-de-r-13-bilhoes-para-medicina-psicodelica-em-cinco-anos/#respond Mon, 04 Oct 2021 19:47:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/2021PSYHreport-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=668 É provável que a pandemia de tristeza pós-Covid-19 turbine as cifras, porém elas já são de dar água na boca de investidores menos caretas: um mercado de US$ 190 milhões, hoje, que deverá saltar para US$ 2,4 bilhões (R$ 13 bilhões) em cinco anos. A previsão está na terceira edição do relatório “PSYCH: O Relatório de Psicodélicos como Medicamentos“, sobre pesquisas, negócios e regulamentação de psicodélicos.

A publicação do grupo Psych/Blossom aponta o ano de 2021 como um ponto de virada para o setor emergente das terapias assistidas por esses compostos alteradores da consciência. MDMA, psilocibina e cetamina já estão fazendo a cabeça de homens de negócio, na perspectiva de aprovação dos primeiros tratamentos para transtornos mentais a partir de 2023.

Em apenas 18 meses, desde que a MindMed estreou na Bolsa Canadense, o número de empresas listadas saltou para 40. Seu valor de mercado conjunto está em US$ 10 bilhões.

Os investimentos quintuplicam a cada ano e somam até aqui cerca de US$ 2 bilhões. Várias já se preparam abrindo clínicas que oferecem terapias com cetamina, meditação e respiração holotrópica, que podem produzir efeitos similares a psicodélicos.

Até no Brasil se ouvem ecos do entusiasmo, ainda que de modo incipiente. O pioneirismo coube à Scirama, uma aceleradora de estudos e empresas na área.

A excitação decorre da perspectiva de que o psicodélico MDMA (base da droga da noite ecstasy) seja aprovado em 2023 nos Estados Unidos para facilitar psicoterapia de portadores de transtorno de estresse pós-traumático. É o medicamento em fase mais avançada no processo regulatório.

Na sequência virão tratamentos para depressão, como a psilocibina dos cogumelos “mágicos” e o anestésico cetamina, já usado fora de bula (“off-label”). Há expectativa de que sejam autorizados por volta de 2025; a partir daí virão outros psicodélicos –LSD, DMT, 5-MeO-DMT, ibogaína— para uma série de condições psiquiátricas.

Não será surpresa se os psicodélicos seguirem trajeto da cânabis rumo à regulamentação para uso médico e à explosão de negócios. A população beneficiada, e portanto o mercado para essas drogas, se autorizadas, poderá ser muito maior, porque em tela se encontram males cuja incidência ultrapassa o bilhão de sofredores no mundo.

O relatório PSYCH estima em US$ 680 bilhões (R$ 3,7 trilhões) a redução de custos sociais com tratamentos e perdas econômicas com formas graves de depressão, estresse pós-traumático e abuso de substâncias (incluindo álcool), transtornos com resposta insatisfatória os medicamentos disponíveis, como antidepressivos. Isso levando em conta só Europa e Estados Unidos.

Pesquisa de opinião da Blossom indica boa aceitação do público (2/3) para esses estudos e futuros medicamentos psicodélicos. De mais de 3.000 entrevistados, 38% declararam conhecer alguém que poderia beneficiar-se de tratamentos inovadores, pessoas hoje desassistidas pelos recursos à mão de psiquiatras e psicoterapeutas.

Entre profissionais de saúde, está na mesma proporção a expectativa positiva com os psicodélicos. Deve pesar nisso o fato de 50% relatarem problemas mentais e 40% admitirem já ter recorrido a essas drogas.

O documento traz ainda algumas entrevistas com líderes de negócios e pesquisas no campo, como George Goldsmith, da controversa empresa Compass Pathways (que deve publicar em breve estudo de fase 2b sobre psilocibina para depressão e detentora de várias patentes na área), Cosmo Feilding Mellen, da Beckley Psytech, e Henrik Jungaberle, da fundação MIND e da provedora de serviço de saúde OVID.

Jungaberle chama a atenção para um possível entrave na disseminação das terapias assistidas por psicodélicos, a formação de terapeutas especializados para preparar, acompanhar e depois explorar com o paciente o que aflorar nas sessões (integração, como se diz no jargão da área).

O especialista alemão considera ambiciosa a meta da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), organização sem fins lucrativos que lidera o estudo com MDMA, de formar 24 mil terapeutas até 2023. Ele receia que cursos de poucas semanas à distância não bastem para capacitar integralmente esses profissionais.

O relatório faz poucas menções às pesquisas daqui, citando de passagem estudos com ayahuasca e ibogaína. Isso apesar de o Brasil figurar em terceiro lugar numa lista de artigos científicos de alto impacto no campo.

Os autores destacam três nações para investidores ficarem de olho: Canadá, primeiro país do G8 a legalizar cânabis, cujos reguladores dão mais liberdade para empresas do setor; China, que começou a suspender restrições a estudos com psicodélicos; e Suíça, com 35 testes clínicos em andamento, perdendo só para os Estados Unidos.

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Cresce interesse de psicólogos por psicodélicos, mas estigma persiste https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/20/cresce-interesse-de-psicologos-por-psicodelicos-mas-estigma-persiste/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/20/cresce-interesse-de-psicologos-por-psicodelicos-mas-estigma-persiste/#respond Mon, 20 Sep 2021 20:09:41 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=646

Repare no vídeo acima: uma chamada para evento da SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica), associação de psicanalistas junguianos. “Plantas de poder e outras substâncias psicoativas – Ciência e espiritualidade”, promete o título.

Junguianos talvez sejam a tribo psi mais propensa a se interessar por essas substâncias, afinal há entre eles uma tradição de estudo sobre o acesso ao inconsciente coletivo e seus arquétipos intermediado por psicodélicos, como relembrou James Harris no periódico Jama Psychiatry. Essa linhagem remonta aos anos 1950, com o analista Ronald Sandison, seguido pelo psiquiatra Stanislav Grof na Universidade Johns Hopkins.

O interesse extrapola o campo junguiano, contudo. Pipoca aqui e ali, entre psicólogos e psiquiatras, uma aproximação cautelosa com os compostos modificadores de consciência, após décadas de hegemonia da psicanálise refratária a medicamentos e da psiquiatria farmacológica fundada no conceito de desequilíbrio bioquímico (neurotransmissores).

Reemerge, assim, o emprego de psicodélicos para recuperar conteúdos psíquicos recalcados, como traumas, a serem elaborados depois na psicoterapia. A técnica chamada de “psicolítica” teve larga utilização até meados dos anos 1960, pelo menos, quando a reação proibicionista da Guerra às Drogas lançou LSD, psilocibina e MDMA no rol das drogas proibidas.

Alan Davis, da mesma Johns Hopkins e da Universidade do Estado de Ohio, pôs-se a campo para medir o interesse entre psicólogos. Constatou, conforme relata no artigo “Atitudes e Crenças sobre o Uso Terapêutico de Drogas Psicodélicas entre Psicólogos nos Estados Unidos”, uma disposição cautelosamente favorável ao uso, ainda que acompanhada de perene preocupação com riscos psiquiátricos e neurocognitivos.

Dito de outra maneira, o trabalho publicado no periódico Journal of Psychoactive Drugs indica que estigma persiste. Isso apesar do crescente corpo de estudos comprovando que o perigo de danos permanentes ao cérebro ou à saúde mental contido nos psicodélicos é diminuto, sobretudo se comparado ao álcool.

Não vai ser fácil desfazer a lenda urbana de que o LSD, por exemplo, abriria buracos no tecido cerebral. Ou que várias pessoas entrem em surto psicótico com o ácido, que viagens ruins sejam frequentes e que muitos “nunca voltariam”, mitos criados pela propaganda governamental americana com auxílio da imprensa sensacionalista no mundo todo.

Davis e seu grupo usaram um desenho complicado, “quase-experimental”, para obter pela internet respostas que permitissem tirar conclusões com significado estatístico de 366 psicólogos clínicos atuantes nos EUA. Mais de quatro quintos opinaram que intervenções apoiadas por psicodélicos merecem mais estudos, embora menos da metade concorde com a afirmação de que representem uma promessa para tratamento de transtornos psiquiátricos.

Ora, é precisamente isso que a pesquisa científica vem constatando. O MDMA (ecstasy) enfrenta testes clínicos de fase 3 para tratar transtorno de estresse pós-traumático, e há expectativa de que seja licenciado para isso até 2023. A psilocibina passa por ensaios clínicos contra depressão e, como o MDMA, entrou numa via rápida de aprovação pela FDA (a Anvisa dos EUA), como “breakthrough therapy”.

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

Os psicólogos entrevistados se mostraram duas vezes mais inclinados a alertar pacientes para riscos de tomar psicodélicos do que de praticar meditação, embora haja trabalhos indicando que o risco de efeitos psiquiátricos adversos é similar. Nos artigos sobre psicodélicos publicados na última década, não há notícia da ocorrência de psicose prolongada, comportamentos lesivos ou alterações persistentes de percepção.

A equipe de Davis conclui pela necessidade de educar e esclarecer psicólogos sobre os efeitos reais dos psicodélicos, até porque seu consumo só faz aumentar: “Dada sua sensibilidade e experiência no trabalho com questões de saúde mental, acreditamos que psicólogos são especialmente qualificados para apoiar clientes no processamento e na integração de experiências psicodélicas e para encorajar práticas vitais de redução de danos, assim como ajudar a guiar a implementação ética desses tratamentos em contextos clínicos e de pesquisa”.

O evento virtual da SBPA se propõe exatamente a isso, por meio de quatro meses redondas no final de novembro. Participarão algumas das figuras de proa da ciência psicodélica nacional, como o psiquiatra Dartiu Xavier, a antropóloga Bia Labate e o biomédico Eduardo Schenberg.

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A Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa em 28 de setembro. Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

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Empresa psicodélica levanta US$ 225 milhões em oferta inicial de ações https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/21/empresa-psicodelica-levanta-us-225-milhoes-em-oferta-inicial-de-acoes/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/21/empresa-psicodelica-levanta-us-225-milhoes-em-oferta-inicial-de-acoes/#respond Mon, 21 Jun 2021 20:14:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/capitalism-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=523 Dinheiro grosso começa a fluir de investidores para o campo do renascimento psicodélico, que deixa assim de ser um fenômeno restrito à pesquisa acadêmica. Prova disso foi a IPO (oferta pública de ações) da empresa Atai Life Sciences na sexta-feira (18), que levantou US$ 225 milhões.

Não é pouca coisa. A soma equivale a R$ 1, 125 bilhão, o suficiente para o governo comprar 70 milhões de doses da vacina da AstraZeneca contra Covid-19. No Brasil, contudo, o interesse de investidores por psicodélicos ainda engatinha, apesar de significativa produção acadêmica de cientistas psicodélicos brasileiros.

As ações da Atai partiram de um preço-alvo de US$ 15 e chegaram a valer US$ 22,91, alta de mais de 50%. No fechamento estavam cotadas a US$ 19,45, quase 30% acima da oferta inicial. Com esse resultado, o valor de mercado da companhia deve ultrapassar US$ 2,3 bilhões.

A Atai é em realidade uma holding controladora de firmas envolvidas no desenvolvimento de dez drogas e seis tecnologias de apoio (como compostos químicos e protocolos terapêuticos). Entre as controladas está Viridia Life Sciences, que pesquisa medicamento para depressão resistente, VLS-01, a partir da dimetiltriptamina (DMT), uma das substâncias psicoativas da ayahuasca.

Outra empresa em seu portfólio é a EmpathBio, que desenvolve uma variante do MDMA batizada de EMP-01, para uso no tratamento do transtorno de estresse pós-traumático. Nesses e noutros casos, a Atai tem pedidos de patentes em andamento.

O modelo de negócios da Atai segue a via usual da grande indústria farmacêutica, dependente de regulamentação por agências com o FDA e Anvisa e de propriedade intelectual. A patente, neste caso, se torna ainda mais crucial para a rentabilidade, uma vez que psicodélicos se encaminham para emprego esporádico, como apoio de psicoterapia, e não como remédios de uso contínuo ao estilo de antidepressivos atuais, da fluoxetina ao escitalopram.

Com todo o entusiasmo de investidores, podem surgir pedras no caminho de empresas como Atai Life Sciences e Compass Pathways. Existe um movimento contra a propriedade intelectual buscada por elas, uma vez que os compostos psicodélicos em mira são de uso corrente há décadas, se não milênios, e já são objeto de vários ensaios clínicos desde a virada do século.

Não haveria, portanto, inovação importante nem a não obviedade exigida para obter patentes. Um empresário insuspeito de anticapitalismo, Bill Linton, dono da empresa Promega e fundador do Instituto Usona (concorrente da Compass em testes clínicos de psilocibina para depressão), patrocina um repositório de informações de domínio público sobre psicodélicos para municiar analistas de patentes no exame desses pedidos questionáveis, Porta Sophia.

A Atai está sediada na Alemanha e tem como principal investidor Christian Angermayer (na companhia de Peter Thiel, fundador da PayPal). Angermayer se envolveu recentemente em debate acalorado com o blogueiro pró-psicodélicos Tim Ferriss sobre a questão de propriedade de intelectual no setor.

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O dia em que Drauzio Varella recusou LSD e o dia em que aceitou ayahuasca https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/07/o-dia-em-que-drauzio-varella-recusou-lsd-e-o-dia-em-que-aceitou-ayahuasca/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/06/07/o-dia-em-que-drauzio-varella-recusou-lsd-e-o-dia-em-que-aceitou-ayahuasca/#respond Mon, 07 Jun 2021 17:54:55 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/2021jun02LiveTravessaLancamentoPsiconautas-300x172.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=512 Quarta-feira passada (2) foi dia de um encontro divertido –como sempre– com Drauzio Varella. Há muito não conversava com ele, e foi uma alegria encontrá-lo, ainda que numa sala virtual, para falar do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.

O encontro, aliás, era uma transmissão ao vivo da Livraria Travessa em parceria com a Fósforo Editora para marcar o lançamento do volume. Quem perdeu, como os amigos e interessados no tema dos psicodélicos que ficaram divididos entre essa live e outra de que se falará a seguir, podem assistir aqui a pouco mais de uma hora de conversa, mediada pela colega de Folha Fernanda Mena.

Além da surpresa de descobrir que ele se chama Antonio Drauzio, como apareceu na tela, ficamos sabendo também que o médico foi aluno e depois amigo de Clovis Martins, citado no livro. Psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da USP, Martins realizou entre 1958 e 1963 pesquisas com LSD no venerando Instituto de Psiquiatria (IPq-USP), quando o ácido era medicamento legalizado e distribuído no mundo todo pelo laboratório suíço Sandoz, sob o nome Delysid.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Drauzio contou que Martins chegou a ser entrevistado no programa Silvio Santos sobre estudos com LSD aplicado a pacientes do IPq-USP, objeto de sua tese de livre docência. Isso anos antes de a dietilamida do ácido lisérgico ser proibida e amaldiçoado como droga perigosíssima (o que de fato não é: não causa overdose nem dependência química, como álcool e tabaco, ambos legalizados).

O oncologista contou mais. Um paciente com linfoma grave aos 27 anos, submetido a tratamento agressivo, aparentemente enfrentou a provação com ajuda de LSD. Numa consulta, disse que daria ao médico um presente que transformaria sua vida, um papel de seda com um pingo de ácido. Drauzio, profissional e polidamente, recusou:

“Não vou ter coragem de tomar isso. Você comprou de um traficante”, ponderou o médico, como contou na live, alegando não ter meios de saber o que de fato estava de fato contido no presente. “Preferi não arriscar. Hoje me arrependo.” Houve outra chance psicodélica para Drauzio, porém, ali pelos 60 anos de idade.

Numa viagem à bacia do rio Purus, no Acre, ele tomou ayahuasca oferecida numa aldeia indígena. Viu uma estrela cadente cair bem devagar, e as estrelas do céu em movimento (a distorção da percepção do tempo é uma das características mais comuns do efeito psicodélico, um dos pontos investigados por Clóvis Martins).

Drauzio criticou na live o círculo vicioso em que se encontra presa a emergente ciência psicodélica: faltam estudos para lhe dar maior credibilidade, mas a pesquisa termina muito prejudicada pelas dificuldades impostas pelo preconceito, pelo que chamou de visão enviesada da sociedade quanto a drogas psicoativas.

Mencionou que a depressão é apontada pela OMS como maior causa de absenteísmo no trabalho. “É uma doença grave, muitos morrem de depressão”, disse, e os antidepressivos disponíveis são muito limitados.

Psicodélicos podem revelar-se uma alternativa promissora, inclusive porque não teriam provavelmente uso contínuo, como os antidepressivos atuais. Não seria nada mau romper com esse modelo das grandes empresas farmacêuticas e, talvez, contribuir para desfazer o mito de que o bem-estar pode ser encontrado numa cápsula para tomar todos os dias.

“As pessoas querem uma pílula para emagrecer, uma pílula para ser feliz. É enorme a quantidade de pessoas que tomam antidepressivos, um absurdo. Ginecologistas e ortopedistas receitam”, alertou Drauzio. “Quase todo mundo toma remédio para dormir. Não sabemos quais serão as consequências a longo prazo. Distúrbios de memória? Alzheimer?”

No mesmo horário da live, por uma dessas coincidências indesejáveis, acontecia um dos Encontros Psicodélicos que o site Ciência Psicodélica realiza todas as primeiras quartas-feiras do mês. E o assunto foi logo depressão, objeto de um teste clínico com ayahuasca no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, e não do Rio de Janeiro, como se disse na primeira live, um lapso; eu também afirmei que o cacto peiote é um cogumelo, e vários que assistiam logo me corrigiram, felizmente).

Os convidados da segunda live foram Fernanda Palhano-Fontes, engenheira que coordenou o teste clínico liderado pelo físico Dráulio Barros de Araújo no ICe-UFRN, e Dimitri Daldegan-Bueno, biólogo atualmente na Universidade de Auckland, Nova Zelândia. Neste caso, uma bate-papo muito mais informado, porém superdidático, com especialistas mergulhados até o pescoço em ciência psicodélica.

Fernanda contou em detalhes a história que aparece resumida no livro “Psiconautas”, sobre o experimento que tomou dois anos e meio em Natal (RN) e foi objeto de seu doutorado. Começou com a palestra de Dráulio (não confundir com Drauzio) a que assistiu na época em que se formava em engenharia elétrica e começava a lidar com análise de imagens do cérebro por técnicas como ressonância magnética funcional.

Fernanda Palhano-Fontes, Lucas Maia e Dimitri Daldegan-Bueno

A entrevista para o mestrado com Dráulio foi a primeira vez em que ela ouviu falar de ayahuasca, mas a candidata a pesquisadora não se intimidou e abraçou a chance de se tornar uma neurocientista. “Foi fácil se envolver, o assunto é fascinante.” Na parede atrás da jovem de aparência doce e delicada, um cartaz com uma frase em inglês dizia: “Apoie a mulher enraivecida do local” (ou, em tradução mais solta, “mulher-pistola”, “your local angry woman”).

Dimitri, seu interlocutor sob a mediação de Lucas Maia, é um psicólogo que trabalhou com modelos animais de depressão, roedores no caso. Ele e Fernanda deram verdadeira aula sobre como se estudam psicodélicos para transtornos mentais, desde a fase pré-clínica até as fases 3 e 4, quando novos medicamentos ou terapias são aprovadas para uso geral. Ótima introdução.

Não é o caso ainda das drogas que protagonizam hoje o chamado renascimento psicodélico, como ayahuasca, LSD, psilocibina e ibogaína. Mas o MDMA (base do ecstasy, que muitos preferem chamar de empatógeno e não de psicodélico) está perto disso nos EUA, onde deve tornar-se tratamento autorizado para transtorno de estresse pós-traumático em 2022 ou 2023.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)

 

 

 

 

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Psicodélico contra dependência química corre risco com superexploração https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/17/psicodelico-contra-dependencia-quimica-corre-risco-com-superexploracao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/17/psicodelico-contra-dependencia-quimica-corre-risco-com-superexploracao/#respond Mon, 17 May 2021 14:35:52 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/EbandoOrg-300x172.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=468 Toda inovação vem ao mundo sob o espectro dos efeitos não pretendidos, e com a ibogaína não seria diferente. A procura pelo composto psicodélico, hoje a maior promessa de tratamento eficaz contra dependência química, arrisca criar uma ameaça para a planta da qual é extraída, com prejuízo para ritos africanos que a legaram ao mundo e até para doentes que poderia recuperar.

O alerta está no relatório “Charting a Path Forward for Iboga” (traçando um caminho de avanço para iboga, minha tradução), publicado pelo Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico (Iceers, em inglês).

A organização sediada em Barcelona chama atenção para os riscos à sobrevivência do arbusto Tabernanthe iboga nas florestas da África e para a falta de reconhecimento à religião Bwiti, que a emprega em seus ritos de passagem. Além disso, destaca a falta de segurança na disseminação desregrada de tratamentos em clínicas alternativas.

O documento de 38 páginas se baseia em entrevistas com 55 pessoas em 12 países –praticantes, terapeutas, antropólogos, cientistas naturais, líderes religiosos etc.– e outras 228 em 34 nações que participaram respondendo questionários. Entre eles estava o médico brasileiro Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), que tem larga experiência em aplicação de ibogaína em dependentes químicos.

A ibogaína é usada legalmente para fins médicos em três países: África do Sul, Brasil e Nova Zelândia, onde se admite uso compassivo em situações excepcionais. Embora a droga seja conhecida desde o século 19 e tenha sido usada como remédio para fadiga e depressão na França, acabou proibida na maioria dos países na década de 1970, ao lado de psicodélicos como LSD e psilocibina (cogumelos).

O centro de gravidade do levantamento foi o Gabão, país centro-africano no epicentro da religião Bwiti e da ocorrência natural do arbusto iboga (encontrado também em Camarões, na Costa do Marfim e no Congo). Com a demanda pelo extrato da planta e a proibição de exportação pelo governo gabonês em 2019, estima-se que a maior parte da ibogaína usada terapeuticamente no mundo tenha origem ilegal.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

As raízes de que se obtém a droga são colhidas cladestinamente no Gabão, levadas para Camarõea e chegam ao mercado como se fossem procedentes de lavouras camaronesas. A coleta assume escala predatória, e a lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) classifica a situação da planta como preocupante, ainda não em risco.

“Esta situação leva o grupo de clínicas que trabalham com iboga ou ibogaína, assim como indivíduos e comunidades que adquirem iboga por razões psico-espirituais ou psicoterapêuticas, a recorrer ao mercado ilegal de iboga”, constata o relatório. “Conscientemente ou não, tornam-se colaboradores na progressiva depredação da planta sagrada.”

Pode-se sintetizar a substância a partir de extratos de outro vegetal, Voacanga africana. Mas só 20% da ibogaína usada em clínicas vem dessa fonte mais sustentável, estimou o levantamento, e uma das razões é o preço: um grama de hidrocloreto de ibogaína, a forma solúvel, pode custar US$ 165; no Brasil, uma dose de 15 miligramas por quilo de peso do paciente custa em torno de R$ 5.000.

A organização não governamental Blessings of the Forest (bênçãos da floresta) recebeu autorização em 2020 do governo gabonês para iniciar plantações de T. iboga com vistas a exportação de matéria-prima certificada, com compensação para comunidades tradicionais. Mais de 3.000 pés de iboga foram plantados em três áreas; o plano prevê 10 mil em 2021 e 100 mil até 2023.

Alguns laboratórios e grupos de pesquisa trabalham para patentear métodos de extração ou síntese do composto, alerta o relatório. E há também corrida para desenvolver moléculas análogas para uso terapêutico que não desencadeiem a perturbadora viagem da ibogaína, que pode ultrapassar 24 horas, dependendo da dose, e que os Bwiti consideram dar acesso ao mundo dos espíritos.

Ambas as estratégias causam preocupação em povos tradicionais e defensores da repartição de benefícios, como detectou o grupo do relatório em visita de várias semanas ao Gabão, quando 56 pessoas em 12 comunidades Bwiti foram entrevistadas. A controvérsia sobre propriedade intelectual de psicodélicos presentes na natureza, de resto, já pega fogo no caso da psilocibina de cogumelos do gênero Psilocybe, sintetizada desde os anos 1960.

Por fim, o relatório destaca a necessidade de articulação entre todos que trabalham com ibogaína, sobretudo nas clínicas para dependentes químicos, para criar protocolos de segurança. A substância pode provocar arritmias cardíacas potencialmente fatais, se não houver pronto atendimento médico.

Um estudo de 2018 identificou 33 casos de morte documentados em periódicos científicos, vários deles associados com doenças preexistentes ou consumo concomitante de outras drogas (cocaína, heroína, álcool, benzodiazepínicos etc.). Por essa razão algumas clínicas não administram o tratamento sem antes submeter dependentes a exames do coração e testes toxicológicos e monitoram a pessoa durante toda a sessão onírica.

Para o médico Bruno Rasmussen Chaves, “o modelo médico é o mais seguro e o que vai permitir maior acesso às pessoas que precisam, pois é uma substância que requer um pouco mais de cuidados ao ser usada do que os outros psicodélicos”.

“A Voacanga africana é uma ótima fonte de ibogaína, preserva o meio ambiente, é sustentável, respeita o Protocolo de Nagoya, além de que seu cultivo e coleta são fonte de renda para comunidades de Camarões. E ajuda a preservar a Tabernanthe iboga. Acho que o futuro está aí. E, claro, a molécula extraída da Voacanga é a mesma extraída da T. iboga, o efeito é o mesmo.”

O relatório publicado pelo Iceers recomenda articulação de todos os interessados no emprego da ibogaína para trocar informações, criar protocolos de uso e influenciar a regulamentação que, acredita-se, acabará por vir na esteira do renascimento psicodélico.

Elementos de culto Bwiti no Gabão (Divulgação/Ebando)

“Apesar da ausência de regulamentos específicos, tem havido diversas colaborações respeitosas e exemplares entre cientistas, companhias e comunidades nativas a partir das quais se desenvolveram conjuntos de produtos e conhecimento”, afirma o texto, indicando que a repartição de benefícios da comercialização com as comunidades, nesses casos, fica entre 10% e 20% dos lucros.

André Brooking Negrão, coordenador do teste clínico com ibogaína para dependentes de crack e cocaína em vias de ser iniciado no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, diz que a questão do reconhecimento ao saber tradicional está no rol de preocupações para seus protocolos de pesquisa: “Qualquer estudo nessa área de enteógenos e etnobotânica tem de levar isso em consideração, o respeito devido pela universidade à produção e ao conhecimento locais”.

“Uma vez que o mercado é ilegal, [precisa haver] não só certificação de procedência, mas de pureza, por respeito à segurança de pessoas para quem a droga vai ser administrada”, diz o líder do ensaio clínico, no qual se utilizará a droga fornecida pela empresa Phytostan, que trabalha com preparados a partir da Voacanga.

O documento do Iceers alerta, por fim, para a questão do acesso: “Se o desenvolvimento da ibogaína seguir os modelos ocidentais típicos de desenvolvimento farmacológico, em que o lucro vem antes do bem comum, o acesso a benefícios terapêuticos continuará a ser limitado somente para aqueles que podem pagar por eles”.

SAIBA MAIS

Livro

(Reprodução)

Curso

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Corrida por patentes ameaça pesquisa com terapias psicodélicas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/corrida-por-patentes-ameaca-pesquisa-com-terapias-psicodelicas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/corrida-por-patentes-ameaca-pesquisa-com-terapias-psicodelicas/#respond Fri, 19 Mar 2021 14:03:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Magic_mushroomsJanieWikiCommons-300x202.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=369 Um espectro ronda o renascimento psicodélico e ameaça a liberdade de pesquisa no campo das novas terapias para transtornos mentais como depressão. Bem no momento em que compostos como LSD, psilocibina e MDMA –substâncias ainda proibidas, bom lembrar– deixam a clandestinidade científica para retornar ao altar de templos da biomedicina acadêmica como Harvard, Johns Hopkins e Imperial College, reivindicações de propriedade intelectual podem barrar estudos clínicos já em andamento.

Após o presidente americano Richard Nixon declarar Guerra às Drogas em 1971, a pesquisa clínica com psicodélicos ficou abafada por três décadas, tornando-se uma linha de estudo suicida para a carreira de pesquisadores. Isso começou a mudar na passagem do século 20 para o 21, com a atenção renovada atraída por uma série cada vez mais encorpada de estudos clínicos.

A promessa de terapias inovadoras para distúrbios mentais fortaleceu-se a ponto de gerar um excesso de interesse da parte de investidores. Como resultado, a corrida para garantir direitos de patente sobre substâncias e práticas curativas muito antigas agora põe em risco a própria avalanche de estudos.

Veja o caso da psilocibina, ingrediente psicoativo dos “cogumelos mágicos” (principalmente as mais de 200 espécies do gênero Psilocybe). Vários deles são usados tradicionalmente em cerimônias por povos como os mazatecas do México, que revelaram o poder desses fungos para a ciência ocidental e nunca foram devidamente reconhecidos por isso.

De acordo com o diretório de patentes da área mantido pelo site Psilocybin alpha (uma fonte útil para análises do setor emergente de medicina psicodélica), existem 44 patentes concedidas ou sob análise tratando da psilocibina, 41 delas após o ano 2000; outras 24 foram solicitadas depois de 2019. Números similares abrangem pedidos de propriedade intelectual relativas a MDMA (53 patentes, 47 desde 2000) e DMT, psicodélico presente na ayahuasca (55, das quais 53 desde 2000).

A lógica por trás do privilégio de patente é remunerar o investimento realizado por inovadores, dando-lhes exclusividade sobre a invenção por 20 anos. O simples número de solicitações apresentadas, no entanto, assim como a abrangência do privilégio contido algumas delas, suscitaram muita preocupação nessa área.

A corrida pode ser comparada com uma onda de “cercamentos”, em que recém-chegados tentam garantir rapidamente um pedaço de chão tão grande quanto possível no terreno agora acessível. O movimento implica a exclusão daqueles que preservaram a área no passado, sejam eles xamãs experimentados no uso ou pesquisadores pioneiros e teimosos, que assumiram riscos quando quase ninguém ousava enfrentar a árdua viagem por território não cartografado.

Uma onda de “cercamentos”, em que recém-chegados tentam garantir rapidamente um pedaço de chão tão grande quanto possível

O primeiro alarme soou em 2018, após a empresa Compass Pathways, baseada no Reino Unido, solicitar três patentes para o uso de psilocibina para depressão resistente a outros tratamentos. Uma delas já foi concedida pelo Escritório de Patentes dos EUA (USPTO) em 31 de dezembro de 2019, deslanchando uma onda de protestos.

A reação partia do entendimento de que tal proteção poderia impedir o uso medicinal, recreativo ou ritual de cogumelos Psilocybe por terceiros. A preocupação arrefeceu desde então, à medida que se tornou mais claro que a patente cobre apenas uma forma cristalina específica de psilocibina sintética (COMP360), não o próprio fungo natural.

Apesar disso, prosseguiu acesa a apreensão quanto ao escopo amplo das patentes apresentadas pela Compass e seus impactos esperados sobre a pesquisa. Na realidade, ela entrou em combustão acelerada nas últimas semanas graças ao escritor, podcaster e investidor Tim Ferriss.

Numa série de tuítes, ele lançou o toque de reunir: “Estou muito preocupado com a grilagem patentária em preparação no mundo psicodélico do lucro (…) quando companhias tentam obter patentes amplas que poderiam impedir pesquisa científica, competição razoável (isto é, para obter escala e acesso amplo, precisamos de competição para reduzir custos)”.

Ferriss é muito influente nos círculos psicodélicos, como investidor visionário que despejou milhões de dólares e ajudou a levantar outro tanto para pôr de pé os pioneiros Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres e Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência. Também apoiou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês).

Seria simplório acusá-lo de ser anticapitalista ou de ingenuamente colocar os interesses de xamãs à frente dos daqueles que sofrem com transtornos mentais debilitantes como depressão resistente ou estresse pós-traumático (TEPT) e poderiam beneficiar-se de eventuais medicamentos psicodélicos. Entretanto, essas acusações parecem insinuar-se nas entrelinhas da brusca refutação que partiu de Christian Angermayer, investidor que já financiou a Compass e fundou a empresa Atai Life Sciences, companhia alemã de biotecnologia interessada em psicodélicos.

Angermayer escreveu que Ferriss estaria “incrivelmente desorientado” nessa questão: “A Atai e a Compass (…) levantaram perto de US$ 650 milhões para essa causa só nos últimos anos, ao mesmo tempo em que trouxeram as melhores cabeças e inovação crítica para esse desafio. Se incluirmos capital levantado por outras empresas nesse campo, a soma vai para mais de US$ 1 bilhão”, argumentou o empresário. “Esse é nível de recursos, talento e compromisso necessário para finalmente mudar as coisas, e isso se torna possível por haver um modelo de negócios viável.”

“Se essas companhias forem bem-sucedidas, centenas de milhões de pessoas que sofrem atualmente poderão beneficiar-se, e, como essas drogas serão provavelmente aprovadas como drogas medicinais, há uma probabilidade significativa de que seguros de saúde as cubram”, escreveu Angermayer.

A troca de tuítes evoluiu para cartas abertas publicadas por Ferriss e Angermayer. A longa argumentação pode ser resumida assim:

1) De acordo com Ferriss, iniciativas em busca de lucro têm um papel crítico, mas não ganham por isso um passe livre, pois enfrentam incentivos para tomar decisões anti-éticas de maneira a gerar renda extra, tais como patentear “invenções” que não são invenções;

2) Angermayer alega que propriedade intelectual e dinheiro grosso são a chave para acelerar o acesso a novos remédios psicodélicos e compara o investimento requerido a uma hipoteca para adquirir uma casa que de outro modo não caberia no orçamento do cidadão mediano: “Por um certo período, a sociedade precisa pagar o financiamento (presumindo que a casa seja ótima e que a pessoa queira mudar-se para nela), mas depois disso a sociedade se torna proprietária e pode morar nela sem pagar aluguel”.

A argumentação de Angermayer se apoia sobre dois pilares. Primeiro, que a Compass não está patenteando um produto natural, e sim uma forma específica de psilocibina cristalizada (polimorfo A) produzida em grandes quantidades seguindo etapas de síntese otimizadas pela empresa. Depois, que a patente cobre o uso dessa inovação particular em terapia para depressão resistente a tratamento.

Os questionamentos às patentes da Compass se baseiam em vários argumentos: o polimorfo A quase certamente está presente tanto no produto natural quanto em outras formas do composto sintetizado; a Compass usa informações sobre a síntese publicadas anos atrás; o uso de psilocibina como adjuvante de psicoterapia para depressão já esteve em teste em vários ensaios clínicos, realizados, entre outros centros, pelo Imperial College e pela Johns Hopkins (para não falar de séculos ou milênios de uso medicinal).

Há preocupação geral com o risco de a incursão da Compass no domínio público psicodélico evolua para barreiras ao estudo clínico de fase 2 com psilocibina para depressão patrocinado pelo Instituto Usona. Afinal, o Usona é um competidor e obteve da FDA (agência americana de fármacos) o mesmo status de terapia revolucionária (breakthrough therapy) conferido à Compass.

Há risco de que a incursão da Compass no domínio público psicodélico  evolua para barreiras ao estudo clínico de fase 2 com psilocibina para depressão

A iniciativa da Usona, porém, se fundamenta numa abordagem oposta: o instituto publica todos os passos para a síntese de psilocibina, põe sua versão do composto à disposição de outros pesquisadores e não busca patentes para processos ou terapias relacionadas, contando em lugar disso com os cinco ou seis anos de direitos exclusivos que a aprovação pela FDA garante ao uso de dados do estudo clínico e à comercialização dos protocolos terapêuticos relacionados.

Cinco ou seis anos de direitos exclusivos, comparados com duas décadas de privilégio garantido por patentes, pode parecer pouco tempo para investidores em busca de enormes taxas de rendimento. Para muitos que não chegaram agora para o campo de batalha psicodélico, por outro lado, parecem ser uma maneira mais equitativa de tornar os novos medicamentos acessíveis a preços mais módicos

O argumento mais difícil de contrariar, contudo, é aquele dizendo que abrir mão de patentes não produzirá o montante de capital necessário –centenas de milhões de dólares, diz-se– para fazer um novo remédio chegar ao mercado. Sem essa montanha de dinheiro, pode-se atrasar desnecessariamente o acesso para quem precisa.

Não são só capitalistas gananciosos que adotam esse ponto de vista na matéria. Pesquisadores respeitados também, como David Nutt, do Imperial College, que me disse numa entrevista de 2019 serem as patentes um preço que teremos de pagar para ver psicodélicos regulamentados o mais cedo possível.

O mesmo se dá com David Nichols, professor emérito da Universidade Purdue e consultor da Compass listado como co-autor do pedido de patente. Nichols declarou a Ann Harrison, de Lucid News: “Há tamanha necessidade de novas terapias para tratar depressão e dependência química que me parece improvável uma estratégia sem fins lucrativos ser sustentável. Aplaudo os esforços do Instituto Usona para tornar essa medicação de uso global, mas pessoalmente não vejo como isso possa ser operado”.

Há que considerar, entretanto, o gigantesco mercado potencial para tratamento de transtornos mentais como depressão resistente, em especial após todo o sofrimento e isolamento impostos pela pandemia de Covid-19. Harrison relata em Lucid News que o mercado de todas as doenças que psicodélicos têm potencial para tratar está avaliado em US$ 400 bilhões anuais.

Em outras palavras, há muito dinheiro para ganhar com psicodélicos. Obviamente, essa é a razão que torna investidores tão ansiosos para garantir propriedade intelectual sobre essas aplicações.

Há muito dinheiro para ganhar com psicodélicos. Essa é a razão que torna investidores tão ansiosos para garantir propriedade intelectual

Se Nichols se alinha com a Compass, a estratégia do Usona obtém apoio de Rick Doblin, força motriz por trás da Maps, ONG que ele fundou 35 anos atrás. Nessa época, Ferriss e Angermayer ainda estavam no ensino fundamental.

É eloquente que a terapia psicodélica mais próxima de aprovação pela FDA –MDMA para estresse pós-traumático (TEPT)– decorra do trabalho desbravador realizado a muito custo por Doblin e seus colegas da Maps, e não por uma startup qualquer cheia de dinheiro depois de uma oferta pública de ações (IPO) bem-sucedida. O ensaio clínico multicêntrico de fase 3 em curso pela Maps sobre MDMA/TEPT deve publicar resultados promissores, neste ano ou no próximo, graças a financiamento obtido em anos e anos de campanhas.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Não chega a ser surpresa que Doblin tenha apoiado Ferriss e questionado Angermayer numa série de tuítes. “Christian [Angermayer] não está certo quanto a patentes serem essenciais para obter direitos exclusivos para comercializar um medicamento”, escreveu.

“A exclusividade de dados difere de patentes pelo fato de não bloquear que outros patrocinadores gerem seu próprios dados para obter aprovação e comercializar o mesmo remédio para a mesma indicação ao mesmo tempo, se outros patrocinadores decidirem gastar tempo e dinheiro. Estamos muitos anos e US$ 50 milhões, por aí, à frente de quaisquer outros.”

Doblin foi mais longe: “Na medida em que a Atai e a Compass buscam lucro bloqueando os outros por meio de patentes sobre processos [de sínteses] ou processos terapêuticos que não inventaram, elas fracassarão e vão desperdiçar seu potencial para ser uma força em favor de curas e de lucros”.

Ativistas do campo psicodélico também protestaram contra essas pretensões. Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna, assinala que “reivindicar ser preciso recorrer a técnicas agressivas de patenteamento a fim de tratar milhões de pessoas doentes em todo o globo seria como dizer que é preciso uma cadeia grande como a Starbucks para que as pessoas possam tomar café”.

Além de Angermayer, os avanços patentários da Compass também já haviam sido defendidos por Ekaterina Malievskaia, principal executiva médica da empresa e sua co-fundadora com o parceiro George Goldsmith, num artigo publicado pela Maps. Após narrar como a firma se distanciou de acordos anteriores de colaboração com os institutos Usona e Heffter, ela afirmou:

“Nossas patentes não impedem nenhum outro clínico de usar nosso produto ou quaisquer produtos contendo psilocibina em conjunção com os tipos de terapia ou apoio psicológico que julgarem útil, desde que não ameacem a segurança do paciente”, escreveu. “Por fim, nem nossas patentes nem estratégias regulatória e de preços têm impacto sobre as práticas da comunidade subterrânea de praticantes em situações não clínicas.”

Malievskaia e Angermayer não tiveram sucesso até aqui em convencer outros atores do campo psicodélico de que a Compass não pôs seus interesses comerciais e projeções de rentabilidade à frente de benefícios para a saúde pública e da liberdade de pesquisa. Uma das razões está em outra patente pedida pela empresa, WO2020212952.

Nesse pedido a Compass reclama propriedade intelectual sobre um método de tratar depressão descrito em 162 cláusulas. Elas incluem até a administração de psilocibina num recinto com aparência substancialmente não clínica, mobília aconchegante, decoração em cores suaves, um sistema de som de alta fidelidade e uma cama ou divã…

“Patentear métodos terapêuticos inventados por outros está fadado a fracassar, são terríveis para reputação e capitalismo fora-da-lei”

Qualquer pessoa familiarizada com protocolos de tratamentos psicodélicos desenvolvidos por legiões de terapeutas desde os anos 1960, alguns sob risco pessoal ao trabalhar sob o radar da lei em tempos de proibicionismo, pode reconhecer de imediato que não há novidade nenhuma aí. Fica visível uma intenção não muito sutil de impedir competição com a Compass. Doblin tuitou: “Tentativas de patentear métodos terapêuticos inventados por outros estão fadados a fracassar, são terríveis para a reputação e capitalismo fora-da-lei [capitalism gone rogue]”.

Tim Ferriss, ao que parece, estava certo quando redigiu diplomaticamente que “até as mais puras intenções podem ser distorcidas quando colidem com as duras realidades do negócio”.

Uma versão deste texto foi publicada em inglês no site do Instituto Chacruna

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Saiba por que psicodélicos da ayahuasca poderiam tratar até Alzheimer https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/22/saiba-por-que-psicodelicos-da-ayahuasca-poderiam-tratar-ate-alzheimer/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/22/saiba-por-que-psicodelicos-da-ayahuasca-poderiam-tratar-ate-alzheimer/#respond Mon, 22 Feb 2021 09:40:37 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/HARDDRIVEDESTRUIDOafpRichardHenry-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=329 Uma das dificuldades de escrever sobre substâncias psicodélicas está no risco de ser ou parecer entusiasta, laudatório, pouco crítico –o oposto do que deve fazer um jornalista. A cada semana são incluídas novas patologias no rol de aplicações possíveis ou já em diferentes fases de teste clínico. Até a doença de Alzheimer entrou nessa alça de mira.

Aquele desvio profissional –ou tentação, se quiserem– se combate com precisão e as ressalvas cabíveis. Alzheimer, por enquanto, é somente uma hipótese para pesquisa com compostos como dimetiltriptamina (DMT) e harmina, componentes da infusão ayahuasca, e também como LSD e psilocibina (de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe).

A mais recente indicação nesse sentido está no capítulo “Biological and Psychological Mechanisms Underlying the Therapeutic Use of Ayahuasca” (Mecanismos Biológicos e Terapêuticos Subjacentes ao Uso Terapêutico de Ayahuasca) do recém-lançado livro Handbook of Medical Hallucinogens (Manual de Alucinógenos Médicos).

Capa do livro com capítulo de pesquisadores brasileiros sobre ayahuasca (Reprodução)

O volume foi organizado por Charles Grob, um dos pioneiros do renascimento psicodélico, e Jim Grigsby. Já o capítulo citado, de número 14 (entre 29 ao todo), é de autoria de quatro pesquisadores brasileiros que se destacam na área: Dráulio de Araújo e Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor).

“Até aqui, a evidência revisada neste capítulo apoia a noção de que a ayahuasca poderia ter usos terapêuticos para o mal de Parkinson, transtorno de uso de substância e depressão”, conclui o quarteto. “Outras aplicações terapêuticas para a ayahuasca e seus componentes estão atualmente em estudo. Elas incluem transtorno de estresse pós-traumático, câncer, mal de Alzheimer, transtornos alimentares e obsessivo-compulsivo.”

A gama avantajada de alvos terapêuticos possíveis ou sob investigação dispara todos os alarmes de um jornalista de ciência. Parece panaceia duvidosa, à primeira vista, ou pelo menos até que o repórter se aprofunde mais no campo de pesquisa. Há boas razões para que psicodélicos como DMT e harmina apareçam no radar de quem vasculha os céus da farmacologia em busca de um tratamento até aqui inexistente para Alzheimer, por exemplo.

Já faz algum tempo que essa forma de demência piscou na tela psicodélica. Quase quatro anos atrás o neurocientista Rehen comentou com este repórter, durante a conferência Psychedelic Science 2017 em Oakland, Califórnia, que a harmina da ayahuasca modula a produção da enzima DYRK1A, que tem papel na formação das placas características da degeneração cerebral do Alzheimer.

Maceração do cipó-mariri, um dos ingredientes da infusão de ayahuasca (Marcelo Leite/Folhapress)

Dois anos depois, em outra conferência psicodélica –Breaking Convention, em Londres–, o pesquisador apresentou a continuação do trabalho da pesquisadora Vanja Dakic com ayahuasca aplicada a organoides cerebrais, uma espécie de “minicérebro” que seu laboratório se especializou em cultivar. A análise do perfil de proteínas ativadas ou diminuídas pela harmina revelou também sua influência sobre vias de sinalização bioquímica associadas à comunicação celular e à neurodegeneração.

“Me preocuparia [se fosse tomado] como incentivo ao consumo do chá de ayahuasca como terapia alternativa para Alzheimer, o que obviamente seria leviano afirmar nesse momento”, teve o cuidado de ressalvar Rehen na época.

A indicação presente no capítulo recém-publicado aparece agora apoiada num minucioso mapeamento dos efeitos bioquímicos, neurológicos e psicológicos já comprovados da ayahuasca e seus compostos. Além da enzima DYRK1A, a peça central do quebra-cabeças parece ser um receptor cerebral para o neurotransmissor serotonina, conhecido como 5HT2A.

Uma das funções em que o 5HT2A está envolvido é a formação de novas conexões cerebrais, como sinapses e até neurônios novos, algo que pode ser valioso para deter e quem sabe reverter a degeneração cognitiva imposta pelo Alzheimer. Outra via importante está no reconhecido efeito anti-inflamatório dos psicodélicos, ayahuasca incluída, que pode ser uma ferramenta útil no combate tanto ao Alzheimer quanto na depressão.

Os pesquisadores brasileiros explicam em detalhe no capítulo como cada um desses fatores se manifesta no caso da ayahuasca e suas substâncias psicoativas. E há também quem vislumbre que propriedades semelhantes sejam acionadas por meio de outros psicodélicos, como o LSD e a psillocibina.

É o que propõem Simon Jones e Allison O’Kelly no artigo “Psychedelics as a Treatment for Alzheimer’s Disease Dementia” (Psicodélicos como Tratamento para Demência do Mal de Alzheimer) no periódico Frontiers in Synaptic Neuroscience. Neste caso, eles defendem que se deva testar o efeito terapêutico com base em microdosagem, vale dizer, sem desencadear o efeito psicodélico subjetivo (alteração da consciência, dissolução do ego, alucinações).

O renascimento psicodélico para a psiquiatria, mais que modinha ou hype, é um movimento de base científica sólida, que retoma no século 21 tradição de pesquisa interrompida nos anos 1970 sob pressão do conservadorismo proibicionista de Richard Nixon e sua obsoleta Guerra às Drogas. Alteradores de consciência, usados com cuidado e protocolos lastreados em evidência, têm potencial para livrar muita gente de sofrimento para o qual a medicina não tem boas opções de terapia no presente.

Para conhecer mais sobre essa renascença e a parte que lhe cabe no Brasil, Stevens Rehen organizou uma sessão da Cátedra Hertha Meyer para as 15h desta segunda-feira, em que ele e eu debateremos o assunto com Marília Zaluar Guimarães, da UFRJ, e Júlio Delmanto, autor do livro História Social do LSD no Brasil.

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Mass General e Mount Sinai entram na onda de centros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/#respond Mon, 01 Feb 2021 14:20:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/MOUTASINAIreutersMikeSegar-300x199.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=296 A cada semana chegam dezenas de informes de investidores, notícias, avisos de transmissões ao vivo e lançamentos de livros sobre o renascimento psicodélico para a psiquiatria. Eis aqui algumas novidades selecionadas nos últimos dias, com destaque para dois templos da medicina dos EUA: Mass General e Mount Sinai.

O Hospital Geral de Massachusetts, mais conhecido como Mass General ou MGH, é o mais importante hospital ligado à Escola Médica da Universidade Harvard. Seu departamento de psiquiatria recebeu uma doação do Fundo em Memória de Arielle Soussan para Pesquisa Psicodélica que deu origem no MGH ao Centro para Neurociência de Psicodélicos, no final de 2020.

Arielle faleceu aos 24 anos, após anos sofrendo de depressão resistente às terapias disponíveis. Antes de morrer, interessou-se pelo estudo de substância psicoativas como psilocibina, DMT e LSD para tratar transtornos mentais, o que motivou a família a criar o fundo.

Metade dos gastos anuais com tratamentos para depressão nos EUA –US$ 350 bilhões (R$ 1,9 trilhão, o equivalente a ¼ do PIB brasileiro)– se destina a esses doentes que não encontram alívio nos medicamentos atuais. Esses pacientes apresentam baixa neuroplasticidade, ou seja, formam poucas conexões cerebrais novas e neurônios para abrir rotas alternativas à ruminação que caracteriza o transtorno, o que psicodélicos parecem capazes de estimular.

O novo centro do MGH, que agora se associa à Atai Life Sciences, uma startup alemã da área, focalizará suas pesquisas na neuroplasticidade. O psiquiatra Jerrold Rosenbaum, diretor do grupo, diz que, como a maioria dos médicos, via os psicodélicos apenas como drogas proibidas, de uso recreativo: “Quando comecei a aprender mais, percebi que havia aí uma oportunidade [de pesquisa] que deixamos passar subdesenvolvidas por décadas”, afirmou ao jornal Boston Globe.

Outra instituição a surfar o tsunami é a Escola de Medicina Icahn do sistema Mount Sinai, em Nova York, que emprega 7.200 médicos em oito hospitais. A faculdade, uma das 20 melhores dos EUA, abriu o Centro para Psicoterapia Psicodélica e Pesquisa de Trauma, que se dedicará a novos tratamentos para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em veteranos militares e em civis.

O centro nova-iorquino terá na direção da psiquiatra Rachel Yehuda, uma especialista em TEPT que também dirige um centro de saúde mental para veteranos no Bronx. Ela própria treinada nos protocolos para uso de MDMA (ecstasy) desenvolvidos pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), ONG à frente do teste clínico de fase 3 que deve levar em breve à aprovação do emprego psicoterápico da droga, diz ser importante conhecer as experiências subjetivas de quem sofre:

“As pessoas que tomam MDMA relatam sentimentos de introspecção, conexão, compaixão consigo mesmas e com os outros, empatia e confiança interpessoal aumentada, que são condições ótimas para se engajar no processamento de material [psíquico] difícil ou traumático”, afirmou à newsletter Psilocybin alpha. Ouça Yehuda falar de psicodélicos e do centro, em inglês, aqui.

MGH e Mount Sinai se somam, assim, a várias instituições de excelência acadêmica que abriram centros para pesquisa psicodélica, como Imperial College de Londres, Universidade Johns Hopkins e Universidade de Nova York. É uma onda irresistível. No Brasil há grupos com pesquisa de primeira linha no tema, mas instituições acadêmicas acossadas por um governo retrógrado se preparam mais uma vez para perder o bonde, como alertou o primeiro post neste blog.

Publicações científicas e não especializadas não cessam de editar reportagens especiais e notícias sobre o assunto. Na semana que passou foi a vez da Nature, que fez um apanhado das novidades do setor sob o título “Como ecstasy e psilocibina estão sacudindo a psiquiatria”.

O texto assinado por Paul Tullis trata dos testes clínicos com essas drogas –17 só em 2020– e do desafio posto para órgãos reguladores, que cedo ou tarde terão de retirar os psicodélicos da lista de substâncias banidas. Ao contrário do que supõem o senso comum e os conservadores proibicionistas, a ciência vem mostrado que elas podem ser usadas de maneira segura, têm benefícios médicos e não causam dependência –vale dizer, não faz sentido manter sua proscrição.

Testes clínicos com psicodélicos (Reprodução/Nature)

Dos 17 ensaios clínicos relacionados pela Nature, 13 investigam a psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos”, do gênero Psilocybe. Esses fungos alucinógenos têm longa história na ciência psicodélica e seu uso terapêutico começa a ser legalizado nos EUA, na esteira da maconha medicinal, avanço cultural que nem mesmo o governo primitivo de Donald Trump conseguiu barrar.

Outra droga que deverá ganhar atenção nos EUA é a ibogaína, por seu potencial para ajudar a domar a epidemia de mortes de dependentes de opioides, que poderá chegar a 100 mil vítimas em 2021. Originária do ritual Bwiti no Gabão e outros países da África, a substância já é usada em poucos centros da Costa Rica e do Brasil, por exemplo, que conseguem autorizações excepcionais para administrar o alucinógeno a drogadictos e o fazem sob controle de médicos, uma vez que pode desencadear arritmias cardíacas.

Um indício forte de que arrefece o preconceito contra psicodélicos como a ibogaína está no interesse que despertam entre investidores e, por extensão, nas publicações dirigidas a homens de negócio, como a agência Bloomberg. A droga é tratada de forma respeitosa em vídeo recente de sua série Moonshot, que já tinha 27 mil visualizações na segunda-feira (1º/2).

Um dos espectadores, identificado como CryptoMilitary Vet, comentou: “Psicodélicos me curaram de todas as minhas dependências, TEPT, e me mostraram que esta é a minha realidade e que a controlo por escolha. O passado só dói se eu permitir, mas eu sei que ele não existe mais, e assim me curei”.

A ciência brasileira tem a sorte de contar não só com grupos de pesquisa experimentados na pesquisa de psicodélicos –na UFRN, na UFRJ, na USP e na Unicamp, por exemplo—mas também com uma origem nos estudos sobre ayahuasca (DMT), de uso religioso autorizado. Os rituais tradicionais oferecem uma moldura de segurança para o consumo dessa droga poderosa, o setting acolhedor que as psicoterapias em teste se empenham em reproduzir com a decoração de ambientes e música suave.

Essa linhagem garante que pesquisadores como Sidarta Ribeiro (Instituto do Cérebro da UFRN) e Stevens Rehen (UFRJ/IDOR) cultivem o respeito por tradições xamânicas. Eles combatem a noção de que bastam as moléculas para obter efeito terapêutico, visão farmacológica reducionista compartilhada entre alguns pesquisadores.

“O trabalho mais difícil é o de encontrar com a dor do outro”, disse Sidarta quinta-feira (28/1) numa transmissão ao vivo do Instituto Phaneros com Stevens. “Quem sabe de settings não são os psiquiatras, mas sim os xamãs, que estão fazendo psicoterapia psicodélica há muito tempo. Precisamos ter delicadeza e cuidado com a experiência das pessoas. O ambiente hospitalar pode ser um problema.”

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