Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cresce interesse de psicólogos por psicodélicos, mas estigma persiste https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/20/cresce-interesse-de-psicologos-por-psicodelicos-mas-estigma-persiste/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/20/cresce-interesse-de-psicologos-por-psicodelicos-mas-estigma-persiste/#respond Mon, 20 Sep 2021 20:09:41 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=646

Repare no vídeo acima: uma chamada para evento da SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica), associação de psicanalistas junguianos. “Plantas de poder e outras substâncias psicoativas – Ciência e espiritualidade”, promete o título.

Junguianos talvez sejam a tribo psi mais propensa a se interessar por essas substâncias, afinal há entre eles uma tradição de estudo sobre o acesso ao inconsciente coletivo e seus arquétipos intermediado por psicodélicos, como relembrou James Harris no periódico Jama Psychiatry. Essa linhagem remonta aos anos 1950, com o analista Ronald Sandison, seguido pelo psiquiatra Stanislav Grof na Universidade Johns Hopkins.

O interesse extrapola o campo junguiano, contudo. Pipoca aqui e ali, entre psicólogos e psiquiatras, uma aproximação cautelosa com os compostos modificadores de consciência, após décadas de hegemonia da psicanálise refratária a medicamentos e da psiquiatria farmacológica fundada no conceito de desequilíbrio bioquímico (neurotransmissores).

Reemerge, assim, o emprego de psicodélicos para recuperar conteúdos psíquicos recalcados, como traumas, a serem elaborados depois na psicoterapia. A técnica chamada de “psicolítica” teve larga utilização até meados dos anos 1960, pelo menos, quando a reação proibicionista da Guerra às Drogas lançou LSD, psilocibina e MDMA no rol das drogas proibidas.

Alan Davis, da mesma Johns Hopkins e da Universidade do Estado de Ohio, pôs-se a campo para medir o interesse entre psicólogos. Constatou, conforme relata no artigo “Atitudes e Crenças sobre o Uso Terapêutico de Drogas Psicodélicas entre Psicólogos nos Estados Unidos”, uma disposição cautelosamente favorável ao uso, ainda que acompanhada de perene preocupação com riscos psiquiátricos e neurocognitivos.

Dito de outra maneira, o trabalho publicado no periódico Journal of Psychoactive Drugs indica que estigma persiste. Isso apesar do crescente corpo de estudos comprovando que o perigo de danos permanentes ao cérebro ou à saúde mental contido nos psicodélicos é diminuto, sobretudo se comparado ao álcool.

Não vai ser fácil desfazer a lenda urbana de que o LSD, por exemplo, abriria buracos no tecido cerebral. Ou que várias pessoas entrem em surto psicótico com o ácido, que viagens ruins sejam frequentes e que muitos “nunca voltariam”, mitos criados pela propaganda governamental americana com auxílio da imprensa sensacionalista no mundo todo.

Davis e seu grupo usaram um desenho complicado, “quase-experimental”, para obter pela internet respostas que permitissem tirar conclusões com significado estatístico de 366 psicólogos clínicos atuantes nos EUA. Mais de quatro quintos opinaram que intervenções apoiadas por psicodélicos merecem mais estudos, embora menos da metade concorde com a afirmação de que representem uma promessa para tratamento de transtornos psiquiátricos.

Ora, é precisamente isso que a pesquisa científica vem constatando. O MDMA (ecstasy) enfrenta testes clínicos de fase 3 para tratar transtorno de estresse pós-traumático, e há expectativa de que seja licenciado para isso até 2023. A psilocibina passa por ensaios clínicos contra depressão e, como o MDMA, entrou numa via rápida de aprovação pela FDA (a Anvisa dos EUA), como “breakthrough therapy”.

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

Os psicólogos entrevistados se mostraram duas vezes mais inclinados a alertar pacientes para riscos de tomar psicodélicos do que de praticar meditação, embora haja trabalhos indicando que o risco de efeitos psiquiátricos adversos é similar. Nos artigos sobre psicodélicos publicados na última década, não há notícia da ocorrência de psicose prolongada, comportamentos lesivos ou alterações persistentes de percepção.

A equipe de Davis conclui pela necessidade de educar e esclarecer psicólogos sobre os efeitos reais dos psicodélicos, até porque seu consumo só faz aumentar: “Dada sua sensibilidade e experiência no trabalho com questões de saúde mental, acreditamos que psicólogos são especialmente qualificados para apoiar clientes no processamento e na integração de experiências psicodélicas e para encorajar práticas vitais de redução de danos, assim como ajudar a guiar a implementação ética desses tratamentos em contextos clínicos e de pesquisa”.

O evento virtual da SBPA se propõe exatamente a isso, por meio de quatro meses redondas no final de novembro. Participarão algumas das figuras de proa da ciência psicodélica nacional, como o psiquiatra Dartiu Xavier, a antropóloga Bia Labate e o biomédico Eduardo Schenberg.

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Berkeley recebe US$ 800 mil para impulsionar jornalismo psicodélico https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/15/berkeley-recebe-us-800-mil-para-impulsionar-jornalismo-psicodelico/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/15/berkeley-recebe-us-800-mil-para-impulsionar-jornalismo-psicodelico/#respond Wed, 15 Sep 2021 19:51:18 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/BerkeleyFerris-300x142.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=620 Não estivesse completando 64 anos na data, tal notícia soaria como presente de aniversário: a Universidade da Califórnia em Berkeley, epicentro da contracultura nos anos 1960, vai abrir bolsas para jornalistas em início e meio de carreira se especializarem na cobertura de psicodélicos. São mais de US$ 800 mil (R$ 4,2 milhões), ao longo de três anos, para começar o programa.

A doação inicial veio do blogueiro, podcaster e escritor Tim Ferriss, grande incentivador do renascimento para a medicina dessas drogas modificadoras de consciência. Ele já contribuiu para campanhas de fundos de pesquisa para o estudo de MDMA contra estresse pós-traumático da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) e se engajou na controvérsia sobre a voga de pedidos de patentes dos compostos por startups.

A iniciativa integra o Centro Berkeley para Ciência de Psicodélicos lançado há um ano, noutro 14 de setembro, com doação anônima de US$ 1,25 milhão (R$ 6,6 milhões). Entre os fundadores desponta o jornalista Michael Pollan, autor do best seller “Como Mudar sua Mente”, que apresentou a renascença psicodélica para o grande público.

A ideia do programa é que os “fellows” (bolsistas) se aparelhem para produzir reportagens em meios de grande circulação sobre ciência, negócios, políticas públicas e cultura em torno de psicodélicos. Pollan coordenará as atividades com os jovens repórteres, nos moldes de uma bolsa que Berkeley já oferece a jornalistas sobre alimentos e agropecuária (11th Hour).

Cada candidato aprovado poderá receber entre US$ 5.000 e US$ 15.000 de auxílio para produzir reportagem de profundidade em texto ou áudio. Projetos serão analisados duas vezes por ano, e o formulário para a primeira leva de propostas ficará disponível em 1º de dezembro. Saiba mais sobre a bolsa psicodélica de Berkeley aqui.

“Se você quiser moldar o arco da história, jornalismo narrativo e investigativo é uma das melhores ferramentas contemporâneas que temos”, afirmou Ferriss em comunicado da escola de jornalismo de Berkeley.

“A explosão cambriana da medicina psicodélica trouxe com ela tanto promessa incrível quanto complexidade incrível. Jornalistas dedicados são necessários para ajudar a separar fato de ficção, cobrar as pessoas e muito mais. Michael Pollan é a pessoa perfeita para capitanear essa bolsa ambiciosa, e sou muito grato por ele estar envolvido.”

Michael Silver, primeiro diretor do centro psicodélico aberto em Berkeley (Foto: Divulgação/Elena Zhukova)

Diferentemente de outros centros psicodélicos de estudos clínicos, como os de Imperial College, Johns Hopkins, Harvard e o Psychae Institute da Austrália, Berkeley dará prioridade para o estudo de efeitos psicodélicos em pessoas saudáveis, e não portadores de transtornos psiquiátricos e outras patologias. E não só sob o ângulo da psiquiatria, psicologia e neurociência, mas também filosofia, religião, antropologia, arte e até ciência da computação e inteligência artificial.

“Este é um momento de virada na história para a discussão sobre psicodélicos e sob quais circunstâncias devem ser usados”, disse no lançamento Michael Silver, primeiro diretor do centro. “Obviamente esse tem sido um tópico muito polarizador, mas creio que a mente das pessoas está mudando.”

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Boa notícia: a Fósforo Editora está dando 20% de desconto no livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” para quem se inscrever no curso sobre drogas modificadoras da consciência no portal Bora Saber, que começa em 28 de setembro. Não perca essa chance de saber um pouco mais sobre o que a pesquisa está (re)descobrindo de benéfico e terapêutico em substâncias poderosas como psilocibina, LSD, ayahuasca, MDMA e ibogaína.

 

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Mais estudos atestam potencial psicodélico contra pandemia de suicídios https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/mais-estudos-atestam-potencial-psicodelico-contra-pandemia-de-suicidios/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/mais-estudos-atestam-potencial-psicodelico-contra-pandemia-de-suicidios/#respond Mon, 05 Apr 2021 15:16:07 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/knottedgun-300x154.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=404 Um ano atrás, em 29 de março de 2020, o corpo de Thomas Schäfer foi encontrado junto de trilhos de trem perto de Wiesbaden, na Alemanha. Ele era secretário da Fazenda do estado de Hesse, e sua morte foi atribuída a suicídio após desespero com a impotência diante do desastre na economia e no emprego causado pela Covid-19. Dias depois, outro funcionário da secretaria tirou a própria vida.

A pandemia generalizou o temor de um crescimento no número de suicídios (são mais de 800 mil por ano no mundo), na tempestade perfeita a combinar angústia, isolamento social, desemprego e perda de renda. Não há dados ainda para confirmar uma tendência, mas é certo que ao menos nos EUA há mais gente pensando em tirar a própria vida, segundo os Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), num país que sem a Covid já contava 48 mil desses óbitos por ano, e aumentando.

Em paralelo, avolumam-se indicações da pesquisa biomédica de que psicodélicos clássicos como a psilocibina de cogumelos “mágicos” e o DMT da ayahuasca podem ser úteis na prevenção dessas mortes. No entanto, essa classe de substâncias permanece banida na maior parte dos países, sob a justificativa de que os chamados “alucinógenos” causam dependência e têm alta toxicidade –coisas que a ciência comprova ser uma falsidade.

O potencial de psicodélicos na prevenção do suicídio já foi tratado aqui. Pesquisadores brasileiros, favorecidos pelo fato de a ayahuasca ser legal no país, mostravam então que o chá ritual de religiões como Santo Daime, Barquinha e UDV pode ser útil nessa empreitada.

Agora, mais estudos surgem para corroborar essa promessa terapêutica e a irracionalidade manifesta de manter tais compostos no rol de substâncias proibidas e controladas, o que só dificulta a pesquisa. Um deles, sobre ansiedade de pacientes com câncer grave e risco de suicídio multiplicado por quatro, tem como co-autor Richard Zeifman, do Imperial College, que já aparecera entre os responsáveis pelo artigo de brasileiros sobre ayahuasca e suicídio, liderado por Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

No novo trabalho, publicado em 18 de março, Zeifman, Stephen Ross e outros mostram que a diminuição de ideações suicidas entre diagnosticados com câncer submetidos a psicoterapia com psilocibina permanece até 4,5 anos depois. Para os autores, o psicoativo dos cogumelos Psilocybe aparece como boa alternativa aos antidepressivos disponíveis na prevenção do problema.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

Zeifman também participa do outro estudo, lançado em 11 de março, neste caso sobre risco de suicídio e psicodélicos clássico em geral, não só psilocibina. Trata-se de uma revisão sistemática, tipo de artigo que busca reunir conclusões de vários outros estudos para robustecer relações causais pressupostas.

Foram considerados 64 trabalhos, 41 deles sobre a associação entre uso não clínico de psicodélicos e comportamentos suicidas e 23 sobre terapias psicodélicas e seu impacto no risco de morte autoprovocada. Nada conseguiram concluir sobre uso continuado dessas substâncias e aumento ou diminuição de risco, mas nos estudos clínicos recentes sobre psicodélicos encontraram evidências preliminares de redução acentuada e sustentada em ideações suicidas.

Para saber mais:

 

 

 

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Universidade da Califórnia tem doação de US$ 6,4 mi para estudar psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/universidade-da-california-tem-doacao-de-us-64-mi-para-estudar-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/universidade-da-california-tem-doacao-de-us-64-mi-para-estudar-psicodelicos/#respond Wed, 31 Mar 2021 19:34:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/neuroscape-239x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=394 O entusiasmo acadêmico com o chamado renascimento psicodélico ganhou adesão de peso nesta terça-feira (30): a Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF) criou uma divisão só para pesquisar essas drogas em seu centro de neurociência Neuroscape.  O financiamento inicial, obtido com doações privadas, é de US$ 6,4 milhões (cerca de R$ 36 milhões).

Parte desse valor, US$ 4 milhões, se destina à nova cátedra Ralph Metzner de Neurologia e Psiquiatria. Para ela foi designado, como diretor-fundador da divisão, o neurocientista britânico Robin Carhart-Harris, hoje a face mais conhecida desse campo de pesquisa biomédica voltado a encontrar alternativas para a psiquiatria tratar transtornos mentais como depressão.

Carhart-Harris deixa a direção do pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres, aberto em 2019 com dotação privada similar à que o atrai agora para a Califórnia. O pesquisador se notabilizou por imagens do cérebro de voluntários sob efeito de LSD e psilocibina, substância psicoativa de cogumelos que o Imperial College mostrou em estudo preliminar ser eficaz contra depressão.

Perguntei por email a Carhart-Harris sobre a razão de interromper a carreira no Imperial, pelo qual publicou mais de uma centena de artigos científicos em 11 anos. “Muito bem-sucedida, sim, mas menos em termos de promoção na carreira”, respondeu o neurocientista. “Ofereceram-me algo incrível na UCSF, a cátedra com dotação sendo particularmente atraente.”

“Ainda tenho estudos importantes em curso no Imperial, mas espero produzir neurociência realmente bacana, ciência interdisciplinar entre medicina e tecnologia, na UCSF. A expertise em tecnologia do Neuroscape é particularmente animadora. Ah, sim, e o tempo na área leste da baía [de São Francisco], onde pretendemos nos estabelecer!”

O Imperial puxou uma fila que não cessa de aumentar. Em seguida viria o Centro para Pesquisa de Psicodélicos e Consciência da Universidade Johns Hopkins, o mais bem-dotado (US$ 17 milhões). Depois, a Universidade de Nova York (NYU), os hospitais Mount Sinai e MassGeneral/Harvard.

Hospital Mount Sinai em Nova York (REUTERS/Mike Segar)

A doação para a cátedra Metzner homenageia o companheiro de Timothy Leary e Richard Alpert no Projeto Psilocibina, criado em 1960 para estudar psicodélicos na mesma Universidade Harvard que agora retoma o veio de pesquisa. O grupo controverso acabou expulso da universidade, e Leary se tornou a partir daí o “guru do LSD” e inimigo número 1 na Guerra às Drogas deflagrada em 1971 por Richard Nixon, que lançou os psicodélicos no ostracismo.

Os US$ 4 milhões doados à vaga aberta para Carhart-Harris na UCSF partiram de outras figuras polêmicas, Ekaterina Malievskaia e George Goldsmith, da empresa Compass Pathways. A companhia realiza testes clínicos para obter para obter aprovação da psilocibina no tratamento de depressão e atua agressivamente para patentear o uso do psicodélico em terapia.

“Como um dos destacados cientistas desta geração, estamos satisfeitos que Robin Carhart-Harris seja o primeiro beneficiário dessa cátedra. Estamos confiantes de que ele e a equipe do Neuroscape continuarão avançando a inovação para transformar o cuidado em saúde mental”, declarou Goldsmith.

Robin Carhart-Harris (Divulgação)

“Nossos generosos financiadores estão tornando possível um grande salto à frente na geração de eficácia e segurança clínica para indivíduos no uso de psicodélicos para tratar uma ampla gama de condições de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade, TEPT [transtorno de estre pós-traumático] e dependência química”, afirmou em comunicado da UCSF Adam Gazzaley, diretor do Neuroscape, a unidade interdisciplinar que se dedica a aproximar a neurociência da tecnologia.

A nova divisão da UCSF no Neuroscape atuará no que se diagnosticou como carência de estudos para otimizar a administração de psicodélicos, uma vez que os testes clínicos preliminares até aqui só teriam focalizado sua comparação com placebo. A ideia é monitorar dados fisiológicos, neurológicos e psicológicos para determinar a influência de vários fatores sobre o resultado terapêutico, como condições prévias do paciente, ambiente de terapia, decoração, música etc. –o que na literatura psicodélica ficou conhecido como set e setting.

“Essa pesquisa nos permitirá entender se um tratamento particular está bem adequado a um indivíduo, monitorando em tempo real como uma experiência [psicodélica] se desenrola”, disse no comunicado Jennifer Mitchell, professora da UCSF que lidera ensaios sobre MDMA (ecstasy) para tratar TEPT. “Nós miramos em ajustar dinamicamente elementos chave do contexto de uma maneira que guie os pacientes a uma experiência otimizada, assim maximizando benefícios positivos sustentáveis, de longo prazo.”

As principais instituições acadêmicas do mundo surfam a onda psicodélica com dedicação. Já o Brasil, que tem tradição pioneira de pesquisa com ayahuasca e figura entre os três países com estudos de maior impacto na área, atrás só de EUA e Reino Unido, está ficando para trás.

Por mais improvável que pareça durante um governo retrógrado como o de Jair Bolsonaro, a pergunta do primeiro post deste blog se mantém: quando o país vai abrir seu centro de pesquisa psicodélica? Onde estão os investidores brasileiros visionários o bastante para não se acomodar diante do obscurantismo?

Para quem quiser mais, em maio darei um curso sobre o renascimento psicodélico na plataforma Bora Saber:

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Brasil é 3º país com mais artigos de impacto sobre psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/brasil-e-3o-pais-com-mais-artigos-de-impacto-sobre-psicodelicos/#respond Tue, 09 Feb 2021 14:44:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/FernandaPalhanoFontesFotoDeAnastaciaVazUFRN-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=311 Pesquisadores brasileiros e a ayahuasca ocupam posição invejável num campo de estudo em crescimento acelerado, o chamado renascimento psicodélico, que ganhou impulso após 2010. Segundo ranking publicado na última quarta-feira (3), o Brasil é o terceiro país que mais produz estudos de impacto, atrás somente dos EUA e do Reino Unido.

O levantamento de David Wyndham Lawrence saiu no Journal of Psychoactive Drugs. Ele montou duas listas de artigos sobre LSD, psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), DMT (da ayahuasca), mescalina (do cacto peiote) e 5-MeO-DMT (do sapo-do-rio-colorado) –classificados como psicodélicos clássicos, que atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina.

A primeira lista traz os 50 trabalhos sobre o assunto que foram mais citados na literatura científica desde 1957, ano de um trabalho de Julius Axelrod sobre LSD que colecionou desde então 154 menções de outros especialistas. O campeão é Stephen Peroutka, com estudo de 1979 sobre LSD e receptores de serotonina detentor de 1.557 citações.

A segunda relação contém artigos com as maiores taxas anuais de citação, uma maneira de descontar a vantagem numérica conferida pela antiguidade. Nos dois casos, os rankings se limitam a 50 trabalhos cada um (77 ao todo, já que vários aparecem nas duas listas).

Lawrence dividiu os artigos em dois grupos temporais: uma primeira geração de 37 estudos em que predominavam investigações farmacológicas e observacionais, sobretudo sobre LSD; e a geração atual de trabalhos (40) com dominância de testes clínicos sobre efeitos terapêuticos em que se destaca a psilocibina. Após o primeiro pico de produção, 1965-75, a proibição de psicodélicos massacrou a pesquisa, que retornaria com força a partir de 2010.

(Reprodução/Journal of Psychoactive Drugs)

Na leva pioneira o Brasil nem aparece. Já na segunda figura em terceiro lugar com 5 artigos (12,5% do total), à frente da Suíça com 4 (10%). Em primeira colocação estão os EUA, com 15 (37,5%), seguido pelo Reino Unido, com 13 (32,5%). Ou seja, apenas quatro países reúnem 92,5% da produção científica mais relevante sobre psicodélicos.

Estudiosos brasileiros se destacam entre os artigos com maior taxa de citações, com Fernanda Palhano-Fontes na liderança. A engenheira de 35 anos especializada em imagens cerebrais atua no grupo do físico Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro e no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Palhano-Fontes é a primeira autora de um artigo pioneiro sobre tratamento de depressão resistente com ayahuasca noticiado em 2018 na Folha. O texto aparece em sexto lugar no ranking daqueles com maior média anual de citações, 38/ano; os cinco que o precedem marcam de 38,6 a 50,2 citações/ano.

Há bom motivo para um estudo de país relativamente periférico em pesquisa científica destacar-se assim: nunca antes um teste clínico randomizado duplo-cego controlado com placebo havia investigado o efeito terapêutico de um psicodélico (DMT) contra depressão.

Maceração do cipó-mariri, um dos ingredientes da infusão de ayahuasca (Marcelo Leite/Folhapress)

“Aparecer na 6ª posição desse ranking, ao lado de nomes tão importantes do campo da pesquisa psicodélicas, reafirma o valor do nosso trabalho, feito completamente no Brasil, e me estimula a continuar fazendo pesquisa de qualidade”, disse a pesquisadora da UFRN ao blog.

Palhano-Fontes se refere ao fato de dois dos quatro autores do levantamento no Journal of Psychoactive Drugs serem estrelas da neurociência psicodélica: Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, e Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Não por acaso eles parecem com quatro artigos cada um no ranking.

“Entre os ensaios clínicos que aparecem mais bem citados, o nosso é o único em que a ayahuasca foi investigada”, destaca a neurocientista da UFRN. “Isso mostra o potencial que temos no Brasil, uma vez que essa substância faz parte da cultura brasileira e tem seu uso religioso regulamentado aqui.”

A engenheira aparece com dois trabalhos no levantamento, o segundo também sobre ayahuasca, de 2015. Os outros três autores brasileiros citados também publicaram estudos sobre ayahuasca: Flávia Osório, Rafael Sanches e Rafael dos Santos, todos do grupo da USP de Ribeirão Preto liderado por Jaime Hallak, pioneiro na investigação de efeitos antidepressivos da ayahuasca e co-autor dos estudos na UFRN com Araújo, que trabalhou com Hallak na USP.

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‘Efeito comitiva’ distingue ayahuasca e cogumelos de outros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/06/efeito-comitiva-distingue-ayahuasca-e-cogumelos-de-outros-psicodelicos/#respond Sat, 06 Feb 2021 19:35:16 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/jaguve2horizontal-287x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=303 Muita gente sabe que o chá ayahuasca se prepara com duas plantas, o arbusto chacrona (Psychotria viridis) e o cipó-mariri ou jagube (Banisteriopsis caapi), mas não por que essa mistura é importante para seu poder psicodélico. Por trás de sua força está o “efeito comitiva” (entourage effect), sinergia entre substâncias vegetais que tornam o daime algo único entre compostos psicodélicos.

Eis aí um tema quente no panorama da neurociência dos produtos também chamados de “entactógenos”. Um exemplo da atenção que o assunto desperta está no artigo “O Papel da Ayahuasca no Efeito Comitiva e Depressão”, de José Alexandre Salerno, que apareceu em 28 de janeiro na Psychedelic Science Review.

Salerno faz doutorado com Stevens Rehen na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Rehen se destaca na neurociência brasileira pelo uso de organoides cerebrais (“minicérebros” construídos em laboratório a partir de células pluripotentes) para desvendar o perfil de ação de psicodélicos sobre tecidos neurais.

“Vejo muitos autores-cientistas escrevendo sobre a ayahuasca e seu potencial terapêutico, mas quase sempre restritos  às moléculas, sem dar muitas satisfações ao leitor sobre a complexidade da infusão”, diz Salerno,  “incluindo todos os aspectos socioculturais que poucos conhecem –o que é irônico, já que a ayahuasca foi testada em humanos como a infusão completa e natural.”

A alteração da consciência propiciada pela ayahuasca tem sua origem no composto n,n-dimetiltriptamina (DMT). Presente nas folhas da chacrona, a substância seria incapaz de ocasionar visões –as “mirações” de religiões ayahuasqueiras como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha– e a dissolução do ego características do efeito psicodélico ao ser ingerida sozinha, porque seria degradada no trato digestivo.

Folha de chacrona, Psychotria viridis (Marcelo Leite/Folhapress)

Para chegar ao cérebro, a DMT precisa da ajuda da harmina, uma das substâncias do grupo das betacarbolinas presentes no jagube. A harmina inibe a ação da enzima monoamina-oxidase (MAO) do estômago e do fígado, que sem o componente do cipó quebraria a DMT, impedindo sua difusão no organismo pela corrente sanguínea.

Essa parceria produtiva entre harmina e DMT é a base do que se convencionou designar como “efeito comitiva”, o entourage effect da expressão franco-anglo-saxônica (a harmina e demais betacarbolinas fazem mais, entretanto, como se verá adiante). A locução nasceu em 1998 para designar outro casamento feliz, desta vez entre componentes da maconha em sua interação com os receptores “promíscuos” para canabinoides no cérebro, na expressão do pioneiro em pesquisa com cânabis Raphael Mechoulam, do Instituto Weizman.

Plantação de maconha em clube de cultivo perto de Montevidéu, Uruguai (Danilo Verpa/Folhapress)

A primeira vez em que ouvi fala de efeito comitiva foi em palestra do neurocientista Sidarta Ribeiro na conferência Psychedelic Science de 2017, em Oakland (Califórnia). O pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) fez uma defesa ao mesmo tempo racional e apaixonada de produtos naturais, como variedades de marijuana com maiores ou menores teores relativos de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) e a própria ayahuasca.

Quase quatro anos atrás, ao responder uma questão da plateia em Oakland, Ribeiro disse desconhecer se o efeito comitiva também caracterizava um psicodélico natural muito popular, os cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe. Depois disso, explica agora, artigo de Barbara Bauer na mesma PSR descreveu a interação entre psilocibina e aeruginascina.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina (Divulgação)

“À medida que a gente começa a entender melhor essas substâncias e essas interações, a tendência é crescer essa lógica”, diz Ribeiro. “O conceito mais geral é que, quando se usa uma preparação com muitos análogos de uma mesma molécula-base, um padrão como no caso da serotonina, se alcance esse efeito de um ataque complexo a esse receptor, de maneira que ele nunca caminhe para a tolerância e para sua própria diminuição. Parece que isso começa a emergir como um princípio amplo.”

Na maconha e nos cogumelos, a comitiva de moléculas se apresenta naturalmente, mas não na ayahuasca, uma invenção humana. Nunca será possível saber de que povo nem quando surgiu a técnica de ferver os dois vegetais, mas a pesquisa vem demonstrando que os efeitos neurológicos da infusão parecem ir muito além da sinergia entre betacarbolinas e DMT que propicia a alteração da consciência e engendra as mirações.

No centro das atenções está a harmina. O grupo de Rehen na UFRJ e no Idor mostrou, com ajuda de organoides, ter ela mesma relação estreita com o fenômeno da neuroplasticidade que se postula estar por trás do potencial antidepressivo do daime.

Outro estudo de pesquisadores brasileiros e australianos, com Nicole Galvão-Coelho à frente, mostrou que os compostos presentes na ayahuasca também têm efeito anti-inflamatório, provável componente da depressão resistente a medicamentos. Seu grupo na UFRN mediu o nível da proteína C-reativa no sangue de pacientes que tomaram ayahuasca e verificou que eles tinham níveis diminuídos.

Proteína C-reativa, marcador de inflamação que tem baixa quantidade em quem toma ayahuasca

“A substância harmina é mais estudada na literatura científica do que a própria DMT, o psicodélico da infusão”, diz Salerno. “Sem querer roubar o protagonismo do psicodélico, acho importante a reflexão científica de que provavelmente a mistura complexa da ayahuasca vai muito além do que já conseguimos responder até hoje sob o rigor do método científico.”

O aluno de Rehen pondera que a ayahuasca já é considerada eficaz há milhares de anos por povos nativos. “Talvez falte diálogo da ciência biomédica com as sociais para que as razões dessa eficácia possam eventualmente ser respondidas pela ciência biomédica também.”

“Compostos isolados, e até os sintéticos, oferecem a grande vantagem do controle mais rigoroso, especialmente de qualidade, e tornam a proposta de terapia assistida com psicodélicos bem mais atrativa e comercializável pelas gigantes farmacêuticas. Mas talvez estejamos deixando escapar variáveis importantes ao considerar os compostos isolados.”

A defesa das comitivas naturais parece mais comum entre estudiosos de alteradores de consciência que os investigam também da perspectiva da fenomenologia, ou seja, com experiência própria. Eles costumam ainda dar reconhecimento a saberes ancestrais que legaram seu uso para a ciência.

No polo oposto da tensão que percorre a cena psicodélica ficam os psicofarmacólogos mais reducionistas. Seu feijão-com-arroz é isolar princípios ativos e sintetizá-los, na convicção de que moléculas e receptores específicos são individualmente responsáveis por fenômenos neurais discretos.

Algo similar se viu na história da genética, em que o paradigma um gene/uma função (ou uma característica) acabou cedendo lugar, por força de observações empíricas, para uma visão mais complexa. Hoje se buscam mais associações entre genes espalhados pelo genoma inteiro, partindo do princípio de que fenótipos resultam da interação de vários genes entre si e com fatores ambientais e do organismo, como as marcas epigenéticas agregadas ao genoma no curso da vida.

Ilustração de Stefan Keller (Pixabay)

Existe até quem acredite que o efeito psicodélico propriamente dito –visões, dissolução do ego, sinestesia etc. –possa ser dispensável A psiquiatria poderia assim lançar mão do poder reparador dessas substâncias expurgado da alteração da consciência. Mas há também estudos indicando que o benefício terapêutico é proporcional a intensidade da experiência mística (outros diriam: do grau de dissolução do ego).

Em resumo, haveria um outro efeito comitiva, por assim dizer, nos psicodélicos em geral: não se vence a ruminação sem uma dose de dissociação, ou, como diz Robin Carhart-Harris, sem um aumento de entropia no cérebro. A ciência psicodélica precisa de mais jogo de cintura.

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Mass General e Mount Sinai entram na onda de centros psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/mass-general-e-mount-sinai-entram-na-onda-de-centros-psicodelicos/#respond Mon, 01 Feb 2021 14:20:54 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/MOUTASINAIreutersMikeSegar-300x199.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=296 A cada semana chegam dezenas de informes de investidores, notícias, avisos de transmissões ao vivo e lançamentos de livros sobre o renascimento psicodélico para a psiquiatria. Eis aqui algumas novidades selecionadas nos últimos dias, com destaque para dois templos da medicina dos EUA: Mass General e Mount Sinai.

O Hospital Geral de Massachusetts, mais conhecido como Mass General ou MGH, é o mais importante hospital ligado à Escola Médica da Universidade Harvard. Seu departamento de psiquiatria recebeu uma doação do Fundo em Memória de Arielle Soussan para Pesquisa Psicodélica que deu origem no MGH ao Centro para Neurociência de Psicodélicos, no final de 2020.

Arielle faleceu aos 24 anos, após anos sofrendo de depressão resistente às terapias disponíveis. Antes de morrer, interessou-se pelo estudo de substância psicoativas como psilocibina, DMT e LSD para tratar transtornos mentais, o que motivou a família a criar o fundo.

Metade dos gastos anuais com tratamentos para depressão nos EUA –US$ 350 bilhões (R$ 1,9 trilhão, o equivalente a ¼ do PIB brasileiro)– se destina a esses doentes que não encontram alívio nos medicamentos atuais. Esses pacientes apresentam baixa neuroplasticidade, ou seja, formam poucas conexões cerebrais novas e neurônios para abrir rotas alternativas à ruminação que caracteriza o transtorno, o que psicodélicos parecem capazes de estimular.

O novo centro do MGH, que agora se associa à Atai Life Sciences, uma startup alemã da área, focalizará suas pesquisas na neuroplasticidade. O psiquiatra Jerrold Rosenbaum, diretor do grupo, diz que, como a maioria dos médicos, via os psicodélicos apenas como drogas proibidas, de uso recreativo: “Quando comecei a aprender mais, percebi que havia aí uma oportunidade [de pesquisa] que deixamos passar subdesenvolvidas por décadas”, afirmou ao jornal Boston Globe.

Outra instituição a surfar o tsunami é a Escola de Medicina Icahn do sistema Mount Sinai, em Nova York, que emprega 7.200 médicos em oito hospitais. A faculdade, uma das 20 melhores dos EUA, abriu o Centro para Psicoterapia Psicodélica e Pesquisa de Trauma, que se dedicará a novos tratamentos para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em veteranos militares e em civis.

O centro nova-iorquino terá na direção da psiquiatra Rachel Yehuda, uma especialista em TEPT que também dirige um centro de saúde mental para veteranos no Bronx. Ela própria treinada nos protocolos para uso de MDMA (ecstasy) desenvolvidos pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), ONG à frente do teste clínico de fase 3 que deve levar em breve à aprovação do emprego psicoterápico da droga, diz ser importante conhecer as experiências subjetivas de quem sofre:

“As pessoas que tomam MDMA relatam sentimentos de introspecção, conexão, compaixão consigo mesmas e com os outros, empatia e confiança interpessoal aumentada, que são condições ótimas para se engajar no processamento de material [psíquico] difícil ou traumático”, afirmou à newsletter Psilocybin alpha. Ouça Yehuda falar de psicodélicos e do centro, em inglês, aqui.

MGH e Mount Sinai se somam, assim, a várias instituições de excelência acadêmica que abriram centros para pesquisa psicodélica, como Imperial College de Londres, Universidade Johns Hopkins e Universidade de Nova York. É uma onda irresistível. No Brasil há grupos com pesquisa de primeira linha no tema, mas instituições acadêmicas acossadas por um governo retrógrado se preparam mais uma vez para perder o bonde, como alertou o primeiro post neste blog.

Publicações científicas e não especializadas não cessam de editar reportagens especiais e notícias sobre o assunto. Na semana que passou foi a vez da Nature, que fez um apanhado das novidades do setor sob o título “Como ecstasy e psilocibina estão sacudindo a psiquiatria”.

O texto assinado por Paul Tullis trata dos testes clínicos com essas drogas –17 só em 2020– e do desafio posto para órgãos reguladores, que cedo ou tarde terão de retirar os psicodélicos da lista de substâncias banidas. Ao contrário do que supõem o senso comum e os conservadores proibicionistas, a ciência vem mostrado que elas podem ser usadas de maneira segura, têm benefícios médicos e não causam dependência –vale dizer, não faz sentido manter sua proscrição.

Testes clínicos com psicodélicos (Reprodução/Nature)

Dos 17 ensaios clínicos relacionados pela Nature, 13 investigam a psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos”, do gênero Psilocybe. Esses fungos alucinógenos têm longa história na ciência psicodélica e seu uso terapêutico começa a ser legalizado nos EUA, na esteira da maconha medicinal, avanço cultural que nem mesmo o governo primitivo de Donald Trump conseguiu barrar.

Outra droga que deverá ganhar atenção nos EUA é a ibogaína, por seu potencial para ajudar a domar a epidemia de mortes de dependentes de opioides, que poderá chegar a 100 mil vítimas em 2021. Originária do ritual Bwiti no Gabão e outros países da África, a substância já é usada em poucos centros da Costa Rica e do Brasil, por exemplo, que conseguem autorizações excepcionais para administrar o alucinógeno a drogadictos e o fazem sob controle de médicos, uma vez que pode desencadear arritmias cardíacas.

Um indício forte de que arrefece o preconceito contra psicodélicos como a ibogaína está no interesse que despertam entre investidores e, por extensão, nas publicações dirigidas a homens de negócio, como a agência Bloomberg. A droga é tratada de forma respeitosa em vídeo recente de sua série Moonshot, que já tinha 27 mil visualizações na segunda-feira (1º/2).

Um dos espectadores, identificado como CryptoMilitary Vet, comentou: “Psicodélicos me curaram de todas as minhas dependências, TEPT, e me mostraram que esta é a minha realidade e que a controlo por escolha. O passado só dói se eu permitir, mas eu sei que ele não existe mais, e assim me curei”.

A ciência brasileira tem a sorte de contar não só com grupos de pesquisa experimentados na pesquisa de psicodélicos –na UFRN, na UFRJ, na USP e na Unicamp, por exemplo—mas também com uma origem nos estudos sobre ayahuasca (DMT), de uso religioso autorizado. Os rituais tradicionais oferecem uma moldura de segurança para o consumo dessa droga poderosa, o setting acolhedor que as psicoterapias em teste se empenham em reproduzir com a decoração de ambientes e música suave.

Essa linhagem garante que pesquisadores como Sidarta Ribeiro (Instituto do Cérebro da UFRN) e Stevens Rehen (UFRJ/IDOR) cultivem o respeito por tradições xamânicas. Eles combatem a noção de que bastam as moléculas para obter efeito terapêutico, visão farmacológica reducionista compartilhada entre alguns pesquisadores.

“O trabalho mais difícil é o de encontrar com a dor do outro”, disse Sidarta quinta-feira (28/1) numa transmissão ao vivo do Instituto Phaneros com Stevens. “Quem sabe de settings não são os psiquiatras, mas sim os xamãs, que estão fazendo psicoterapia psicodélica há muito tempo. Precisamos ter delicadeza e cuidado com a experiência das pessoas. O ambiente hospitalar pode ser um problema.”

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Em 2021, psicodélicos sairão do gueto e invadirão até a tela de seu celular https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/02/em-2021-psicodelicos-sairao-do-gueto-e-invadirao-ate-a-tela-de-seu-celular/#respond Sun, 03 Jan 2021 00:35:11 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Cerebro1Plasticidade-300x137.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=224 Antes mesmo das agruras da pandemia de Covid se estimava que, nos países mais ricos, metade das pessoas receberão algum diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida. Após mais de um ano de isolamento e medo, males da alma como depressão e ansiedade vão piorar até virar outra pandemia, e os tratamentos disponíveis são limitados.

Neste caso, porém, não será preciso desenvolver uma vacina a partir do zero, ainda que em tempo recorde. A neurociência está ressuscitando uma classe de substâncias –psicodélicos como psilocibina, ecstasy, LSD e ayahuasca– estudadas há mais de 60 anos e montando com elas uma nova onda que já inunda a imprensa especializada e leiga, chega à TV aberta e em breve estará na palma de sua mão.

Neste domingo (3), o renascimento psicodélico aparecerá no Fantástico, programa dominical superfamília da Rede Globo. A julgar pelo teaser, mostrarão pesquisas brasileiras que comprovaram efeito antidepressivo rápido e prolongado da ayahuasca, chá psicoativo de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ponto para o Instituto do Cérebro da UFRN.

Devem aparecer também estudos que investigam a aplicação de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), flagelo de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. Embora não seja considerado um psicodélico clássico como LSD, MDMA é a droga mais próxima de obter aprovação oficial como medicamento.

Em 2021 os psicodélicos sairão do gueto em que foram confinados pela proibição, nos anos 1970, e se banharão na luz da ciência e da respeitabilidade. A certeza de que este será o ano da virada levou um trio de pesquisadores do Canadá a escrever longo artigo no periódico Pharmacological Review reunindo o que se sabe sobre os mecanismos de ação desses compostos em termos bioquímicos e neurológicos, um guia de 76 páginas para psiquiatras caretas. Dos receptores para serotonina e outros neurotransmissores às teorias inflamatórias e entrópicas do cérebro doente, está tudo ali.

Reprodução/Pharmacological Review

Informalmente os psicodélicos já se infiltravam pelo tecido social por meio da microdosagem com psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), ayahuasca ou LSD, ou seja, recorrer a quantidades subclínicas de psicodélicos 2 ou 3 vezes por semana. Há pouca evidência científica da eficácia dessas microdoses para aguçar criatividade e produtividade, como defendem praticantes, mas elas se tornaram o meio mais popular de buscar os benefícios mentais sem enfrentar experiências psicodélicas plenas, descasamento meio puritano e controverso buscado também por alguns pesquisadores.

Microdosagem e uso recreativo de psicodélicos, apesar de seu baixo potencial para criar dependência, não se fazem inteiramente sem riscos. Pesquisadores sérios se inquietam com a renascida popularidade dos psicodélicos, mas não são todos que preferem mantê-los sob controle estrito no cercadinho da academia.

Cápsulas de cogumelos Psilocybe moídos, usados em microdosagem (Foto de Pedro Amaral)

Um dos que não temem exposição na esfera pública é Robin Carhart-Harris, que dirige no Imperial College de Londres o pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica. Em 2020, ainda antes de completar 40 anos e sem contar com financiamento público para pesquisa, RC-H publicou seu centésimo artigo científico.

Para 2021 ele promete divulgar os resultados de um estudo em que seu grupo comparou o efeito antidepressivo de apenas duas doses de 25 mg de psilocibina diretamente com 43 doses diárias de escitalopram. Tudo indica que um dos mais modernos medicamentos disponíveis para tratar depressão não se saiu tão bem na pesquisa quanto o rival psicodélico.

Em sua última incursão além do reduto dos periódicos especializados, Carhart-Harris escreveu um comentário para a revista Wired com o título “Big Pharma está para sintonizar [tune in] o potencial dos psicodélicos”. Além da referência ao termo médio do clássico lema de Timothy Leary (Turn on, tune in, drop out), o autor profetiza: “A medicina psicodélica vai começar a invadir o domínio estabelecido [mainstream] da saúde mental em 2021”.

Carhart-Harris, à esq., e Michael Pollan, autor de “Como Mudar sua Mente”, à dir. (Reprodução/MyDelica)

Seria a terceira onda da ciência psicodélica. Na primeira, ali pelos anos 1950, predominava a concepção psicotomimética –drogas como LSD serviriam para mimetizar psicoses e permitir seu estudo controlado. Uma onda mais benigna se levantou nos anos 1960, em que a alteração da consciência mediada por psicodélicos passou a ser usada em psicoterapia e, a seguir, se tornou popular entre hippies, alavancando a contracultura, a contestação política e, por fim, a reação proibicionista.

O neurocientista britânico apoia sua profecia sobre a chegada ao mainstream (portanto o avesso do comando drop out de Leary) na explosão de artigos científicos sobre o tema, nos últimos cinco anos, e na voga de filantropos e investidores de risco que doaram US$ 30 milhões (R$ 156 mi) para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos organizar teste clínico com MDMA para TEPT e US$ 115 milhões (quase R$ 600 mi) para a empresa Compass Pathways fazer o mesmo com psilocibina para depressão.

RC-H não espera sentado pela aprovação da comunidade científica e dos órgãos reguladores aos quais caberia levantar as restrições ainda vigentes para substâncias psicodélicas. Cioso de que o uso só tende a crescer, por vias legais ou ilegais, ele fundou uma empresa e promete lançar ainda neste ano um aplicativo de celular, MyDelica, voltado para a redução de danos entre usuários.

Reprodução/MyDelica

“MyDelica oferece um marcador personalizado de progresso e um serviço de aconselhamento baseado em evidências para educar e salvaguardar jornadas psicodélicas”, promete a página provisória do app na internet. Na ilustração de como será a tela do programa no celular, acima de gráficos com marcadores e tendências de bem-estar, aparece o registro “Domingo 19 de abril”.

Reprodução/MyDelica

Não é qualquer data. Nela se comemorará o Dia da Bicicleta, para celebrar a primeira viagem com LSD, realizada em 1943 por Albert Hoffman após ingerir 250 microgramas de sua invenção no laboratório Sandoz e voltar pedalando para casa, em meio a visões psicodélicas.

Hoffman escreveu uma biografia com o título “LSD, Minha Criança Problema”. Aos 78 anos, ela enfim alcança a maturidade.

 

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Retrospectiva 2020: ciência psicodélica tem desaceleração paradoxal https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/retrospectiva-2020-ciencia-psicodelica-tem-desaceleracao-paradoxal/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/retrospectiva-2020-ciencia-psicodelica-tem-desaceleracao-paradoxal/#respond Mon, 21 Dec 2020 10:37:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/GraficoPubMedPsuchedelic-300x79.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=193 Até que o renascimento psicodélico não foi tão mal em 2020, o ano da pandemia: 498 artigos publicados até 20 de dezembro, segundo busca com a palavra “psychedelic” no diretório PubMed.

Houve retração de 34% sobre os 754 de um ano antes, é verdade, mas ainda o bastante para continuar em evidência em meio à avalanche de estudos sobre Covid (82.513 trabalhos publicados). Mesmo encolhida, a neurociência dos estados alterados de consciência demonstra grande vitalidade.

Pesquisa psicodélica era até pouco tempo, e ainda é para muitos, um beco sem saída na carreira de pesquisador. Não mais. Imperial College, Johns Hopkins e NYU criaram centros específicos para esse campo de investigação, e o Brasil ainda vai ter o seu.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Entre os mais produtivos estão justamente o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres e o Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (EUA). Neste annus horribilis, contei mais de uma dúzia de artigos publicados por Robin Carhart-Harris e David Nutt, do primeiro, e de Roland Griffiths e Matthew Johnson, do segundo –todos eles apareceram mais de uma vez neste blog (como aqui e aqui).

Muitos artigos se dedicam a difundir que substâncias psicodélicas (MDMA, LSD, DMT, psilocibina, ibogaína) são a grande voga em psiquiatria, seja em editoriais e comentários, seja com revisões sistemáticas e meta-análises. Também há vários textos alertando para o risco de ressuscitar a reação conservadora dos anos 1970, quando a pesquisa no ramo foi paulatinamente sepultada sob o peso da regulação proibicionista.

Outro debate que ganha força na literatura biomédica diz respeito à contribuição da fenomenologia psicodélica –vivências subjetivas como visões, sinestesia, estado onírico, dissolução do ego– nos efeitos terapêuticos observados, ou quanto estes dependem das viagens ou não. A massa de estudos editados, porém, se compõe de pesquisa básica sobre os compostos e sua ação –como este exemplo com pesquisadores brasileiros, ou mais este.

Ilustração JR Korpa/Pixabay

Não foi só nos periódicos especializados que a ciência psicodélica aconteceu em 2020, mas sobretudo na imprensa leiga (exemplos aqui e aqui). Se em 2018 e 2019 chamava mais a atenção o teste clínico de MDMA (ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático, iniciativa da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) que já levantou US$ 30 milhões para o estudo , neste ano a cena foi tomada pelo avanço dos ensaios com psilocibina para tratar depressão.

A psilocibina também agita investidores. Empresa controversa por buscar patente de uma formulação desse composto psicoativo de cogumelos Psilocybe, a Compass Pathways levantou US$ 146,6 milhões (cerca de R$ 748 milhões) em setembro ao abrir suas ações na Nasdaq. A empresa está à frente de um grande teste clínico para tratar depressão, mas terá concorrência científica de organizações sem fins lucrativos como o Instituto Usona.

Muitos investidores se movimentam, abrindo ou adquirindo clínicas e startups, para contar com uma boa posição quando o mercado se abrir de vez para a psiquiatria e a psicoterapia baseadas em psicodélicos. Empresas como Numinus, Eleusis, MindMed, Tryp Therapeutics, MagicMed, Mydecine, MindSet, BetterLife, FieldTrip, Better Plant Sciences, Beckley Psytech, Cybin, Entheon Biomedical, Champignon Brands, Mind Cure Health etc. surgem a cada dia (veja um panorama aqui).

Algumas das empresas do ramo de psicodélicos listadas pela newsletter Psilocybin Alpha (Reprodução)

Elas estão mais ativas em países como Canadá e Holanda, onde cogumelos “mágicos” ou “trufas” de Psilocybe gozam de certa tolerância legal, o suficiente para funcionarem clínicas e spas psicodélicos. As oportunidades crescem também nos EUA, com os recentes plebiscitos e referendos sobre drogas.

Até no Brasil os capitalistas já estão de olho. A Red Light Holland comercializa trufas na Holanda, a Disruptive Pharma investe na distribuidora online MyPharma2Go.com, e juntas elas anunciaram acordo para atuar no mercado brasileiro.

“Esperamos agregar nosso conhecimento na cultura de Trufas Mágicas com o propósito de cultivar, manufaturar e distribuir no Brasil”, disse à newsletter Psilocybin Alpha o diretor da Red Light, Todd Shapiro.

O país tem algumas vantagens comparativas nesse setor, como a tradição de pesquisa com ayahuasca, cuja autorização para uso religioso facilita estudos pioneiros. Como não vai durar para sempre o obscurantismo que dominou 2020, cientistas e investidores daqui ainda têm chance de fazer de 2021 o ano da virada.

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Editorial alerta para risco de ciência psicodélica descarrilar de novo https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/03/editorial-alerta-para-risco-de-ciencia-psicodelica-descarrilar-de-novo/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/03/editorial-alerta-para-risco-de-ciencia-psicodelica-descarrilar-de-novo/#respond Thu, 03 Dec 2020 22:19:21 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/railroad-163518_1280-300x194.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=132 O melhor sintoma de que a febre psicodélica está em alta aparece no suor despendido por pesquisadores pioneiros da área na defesa da pureza científica. O apelo mais recente saiu quarta-feira (2) num editorial da Jama Psychiatry, uma das publicações da Associação Médica Americana.

“Psicodélicos em Psiquiatria — Evitando que o Renascimento Saia dos Trilhos” é o título do comentário assinado por Roland Griffiths e David Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins, com Mary Yaden, da Universidade da Pensilvânia.

O renascimento a que se refere o artigo consiste na enxurrada de ensaios clínicos com psicodélicos como a psilocibina de cogumelos, a DMT da ayahuasca  e a MDMA do ecstasy, em especial a partir de 2000, para testá-los como tratamentos alternativos de vários transtornos mentais, com ênfase na depressão.

Os autores começam assinalando que o campo de pesquisa, retomado em meados da década de 2000, alcança agora a mesma idade de sua primeira encarnação, nos anos 1950-60, até ser abortada pela proscrição dessas drogas na voga reacionária diante da contracultura. E expõem o temor de que o sequestro de seus avanços científicos pela esfera da cultura e da política leve de novo ao limbo em que vegetaram por quatro décadas.

“Um trilho à frente favorece o mesmo tipo de exuberância, pensamento utópico e abordagens clínicas irregulares que contribuíram para interromper o período prévio de pesquisa”, alertam. “Combinada com a tendência contemporânea de politizar a ciência, a possibilidade de uma repetição dos anos 1960 representa uma preocupação significativa.”

Griffiths e os Yaden defendem caminho alternativo nessa encruzilhada: “Um outro trilho à frente, mais cuidadoso e sistemático, envolve a integração apropriada de tratamentos psicodélicos em paradigmas psiquiátricos existentes, baseados em evidências, tais como psicoterapia e farmacoterapia.”

Quando Griffiths fala, recomenda-se ouvir. Ele é uma das cabeças-brancas do ramo, líder e autor de vários dos estudos responsáveis pela reabilitação da pesquisa psicodélica na corte da ciência respeitável, como o trabalho de 2006 sobre experiências místicas desencadeadas por psilocibina. Nessa condição, Griffiths já apareceu mais de uma vez neste blog, como no seguinte vídeo (em inglês):

O risco existe, de fato, em especial quando se considera a onda conservadora que se abateu sobre os EUA, o Brasil e outras nações –ora em crise, se espera, com a derrota eleitoral de Donald Trump.

Todos os psicodélicos permanecem como substâncias proscritas em acordos internacionais e várias legislações domésticas, o que dificulta muito a pesquisa. A reversão desse status legal mal começou, na esteira da maconha medicinal, com os referendos sobre psilocibina em cidades e estados americanos.

Não há indícios gritantes de que a história vá se repetir, entretanto. Em lugar de hippies, militantes por direitos civis e contestadores da guerra, alguns dos apóstolos da psicodelia no presente são yuppies do Vale do Silício, de Wall Street e da Faria Lima adeptos da microdosagem de LSD e psilocibina.

Cápsulas de fungos Psilocybe secos e moídos, usadas para microdosagem (Foto Pedro Amaral)

Também brilham na renascença os neurocientistas sem preconceitos, filhos e netos daqueles cujo sonho acabou nos anos 1970. Uns e outros, nas mesas do mercado financeiro ou nas bancadas de laboratório, vislumbram ganhos polpudos com as startups que começam a brotar das universidades.

Parece um pouco exagerado o temor de gatos escaldados como Griffiths. Num reflexo muito comum da academia, ao ver seu objeto de pesquisa escapar do cercadinho das publicações científicas e de seu jargão obscuro, denunciam preventivamente a própria divulgação de seus trabalhos.

“Numerosos e recentes livros de editoras populares, websites, podcasts e reportagens na mídia têm promovido acriticamente os benefícios presumidos de psicodélicos”, acusam. “A demanda de pacientes está aumentando, assim como o interesse na população em geral, com a possibilidade de que expectativas ultrapassem os dados atuais sobre quais resultados podem ser previstos com confiança.”

“Psicodélicos não são nem cura para transtornos mentais nem saída fácil para uma vida incompleta e não devem ser apresentados como panaceia. Subculturas pró-psicodélicos, de modo agourento, estão fomentando de maneira crescente visões utópicas para a sociedade com base em achados de pesquisa que, embora intrigantes, ainda devem ser considerados preliminares.”

Em 2017, quando assisti a uma palestra de Griffiths na conferência Psychedelic Science em Oakland, ele não reagiu mal aos aplausos de hippies envelhecidos na plateia quando mencionou que ateus participantes de um estudo seu com psilocibina tinham deixado de sê-lo. Além de poucos pesquisadores corajosos como ele, foram esses psiconautas do submundo que impediram uma vitória completa do proibicionismo retrógrado.

Decerto há charlatães e irresponsáveis, numa franja de terapeutas esotéricos, prescrevendo psicodélicos em doses inadequadas ou até para quem não devia tomá-los, como pessoas com tendências ou histórico de psicose. Tampouco faltam oportunistas vendendo lotes no paraíso artificial em que a modinha “welness” encontra o misticismo de butique.

Meter essa fauna no mesmo saco de divulgadores do calibre de um Michael Pollan, como fazem os Yaden e Griffiths na Jama Psychiatry ao não dar nome aos bois, equivale a cuspir no prato em que se comeu. O livro “Como Mudar sua Mente”, de Pollan, fez provavelmente mais para ressuscitar o prestígio da pesquisa psicodélica do que uma dúzia de artigos em periódicos especializados.

O escritor Michael Pollan, em sabatina da Folha de S.Paulo (Fabio Braga/Folhapress 2014)

Pollan, assim como outros jornalistas de ciência que fazem a quente a crônica do renascimento psicodélico, não são propagandistas. Ancoram-se nas publicações científicas de neurocientistas para separar o joio do trigo, mas também se valem de experiências pessoais com psicodélicos para descrever com propriedade o que nelas se vislumbra de potencial terapêutico –o mesmo fazem muitos pesquisadores do ramo, aliás.

Este blog também enfrentou restrição em sua estreia. Receio que meu livro “Psiconautas” (no prelo, programado para 2021) receba o mesmo tipo de reparo. Repito aqui, preventivamente, o que respondi então:

A função do jornalista é noticiar o que for relevante para possíveis tratamentos de transtornos mentais. Claro, sempre ressalvando que ainda são pesquisas experimentais, não autorizadas para uso disseminado.

Cabe ao psiquiatra e ao pesquisador fazerem o mesmo, seja para repórteres, seja para pacientes. Todos os três –jornalistas, cientistas e profissionais de saúde– precisam caminhar juntos na direção de esclarecer o público sobre o funcionamento da ciência.

Acrescento agora: o caminho é longo e nos fará suar muito, mas não há como se desviar dele, nem parece correto lançar companheiros de viagem debaixo do trem.

*

ADENDO em 05.12.2020: Depois de publicar esta nota, assisti ontem à noite ao minidocumentário “A História da Johns Hopkins” (42 mins.), primeiro capítulo da série Foco em Pesquisa Clínica, da Horizons. Muito bom, sobretudo as entrevistas esclarecedoras de Roland Griffiths e Matthew Johnson. Mas percebo algum ruído entre as cautelas adiantadas por Griffiths no editorial da Jama Psychiatry (comentado acima) e a apresentação bem entusiasmada dos estudos clínicos sobre potencial terapêutico de psicodélicos para depressão, anorexia, Alzheimer, alcoolismo, tabagismo… Pode parecer panaceia, algo que Griffiths pede que NÃO se pregue.

Além disso, ele também deu muita ênfase no minidoc para a qualidade mística da experiência psicodélica, outra marca registrada dos tempos da contracultura, movimento que teria desencadeado a reação conservadora proibicionista e inviabilizado a pesquisa.

 

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