Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Parapsicodélicos pretendem alavancar bilhões no mercado de saúde mental https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/parapsicodelicos-pretendem-alavancar-bilhoes-no-mercado-de-saude-mental/#respond Mon, 29 Nov 2021 14:50:15 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/GREEDYBRAIN-300x147.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=772 O renascimento psicodélico está à beira de um cisma: a ultrapassada dicotomia entre química e experiência subjetiva se reencarna, agora, na oposição entre investidores recém-chegados obcecados com a neuroquímica e tradicionalistas que cultuam a alteração da consciência e a dissolução do ego como fundações do tratamento de transtornos mentais, como a depressão.

Não se trata apenas de crenças filosóficas ou modelos explicativos concorrentes para o potencial de cura dos psicodélicos, mas sim de abordagens díspares sobre como a nascente terapia alternativa será incorporada no mercado de serviços de saúde. Ou, se quiserem, um embate dos parapsicodélicos contra os psicodélicos como os conhecemos.

De um lado, os esteios são patentes, startups, regulamentação por autoridades sanitárias e cobertura dos novos protocolos de tratamento por seguradoras de saúde. Neste caso, a rentabilidade cresceria muito se eles empregassem drogas de efeito curto, de preferência sem risco de ocasionar viagens psicodélicas complicadas ou até mesmo sem envolver psicoterapia prolongada.

Na outra vertente, herdeiros de uma longa tradição de práticas xamânicas e clínicas alternativas subterrâneas trabalham por preservar, em parceria com a renascida ciência psicodélica, a ênfase no cuidado e na elaboração psíquica legados pelo uso tradicional de substâncias psicodélicas.

No campo aqui apelidado de parapsicodélico se esboçam três modelos de negócio para explorar no mercado o potencial para tratar condições que vão de depressão resistente a medicamentos até enxaqueca, passando por estresse pós-traumático, dependência química, ansiedade, TOC, anorexia e, talvez, Alzheimer.

O primeiro modelo ainda se encaminha para manter no tratamento o componente psicoterápico, restrito porém a uma dúzia de encontros com facilitadores. O processo começaria com reuniões para preparo do paciente sobre o que esperar da experiência com psicodélicos, depois sessões de dosagem e, em seguida, de integração (conversas para interpretar conteúdos emergentes e obter pistas úteis para conduta na vida cotidiana).

Empresas como a Compass Pathways planejam cercar com patentes o pacote todo, de sua variedade purificada da psilocibina de cogumelos “mágicos”, alcunhada COMP360, ao protocolo de atendimento. A propriedade intelectual sobre substâncias e práticas milenares, entretanto, vem sofrendo intensa resistência.

Mesmo essa modalidade enfrentaria alguns obstáculos no contexto usual de serviços de atendimento, pela longa duração do efeito da psilocibina, MDMA, LSD e ayahuasca e outros compostos psicodélicos em estudo (de 4 a 12 horas). O ideal seria contar com drogas de efeito curto como a cetamina (ou ketamina), substância dissociativa com ação diversa de psicodélicos clássicos como LSD e psilocibina.

A cetamina vem sendo usada com algum sucesso no tratamento rápido de depressão. Ela tem as vantagens de ser manejável em consultas de 1 a 2 horas e de estar legalizada, inclusive com a recente autorização para psiquiatras ministrarem a variante escetamina na forma de spray antidepressivo patenteado.

 

Nessa busca por psicodélicos de duração curta se engajou Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), agraciado com US$ 27 milhões (R$ 150 milhões) da agência americana Darpa (Projetos em Pesquisa Avançada de Defesa). Ele vai liderar um grupo de laboratórios no esforço de projetar medicamentos eficazes contra depressão, ansiedade e abuso de substâncias “sem efeitos adversos graves”.

Por força dessa limitação temporal emerge uma segunda estratégia, ainda como proposta experimental, para encaixar terapias psicodélicas no mercado: desenvolver moléculas com efeito psicodélico cujo efeito não ultrapasse duas horas. Essa é uma das linhas em estudo pelos acionistas da Atai Life Sciences, que é também uma grande investidora na Compass, e pela Field Trip Health, do Canadá, segundo reportagem de Will Yacowicz na Forbes.

A terceira via para exploração de psicodélicos em saúde mental vai além e pretende livrar-se completamente do que se chama de viagem, o efeito dissociativo e alucinógeno desses compostos. Esse é o plano por exemplo de David Olson, da Universidade da Ca;ifórnia em Davis.

Olson já publicou estudo sobre uma droga análoga à ibogaína que desenvolveu com a finalidade de oferecer uma alternativa a esse derivado de uma planta africana para tratar dependentes químicos, mas desprovido do prolongado e intenso efeito onírico desencadeado pela substância originária do Gabão. Ele é um dos fundadores da empresa Delix Therapeutics, de Boston, que também tem depressão e demência na mira.

Imagem de Robert Couse-Baker (Creative Commons)

Ninguém está ainda ganhando dinheiro com um desses três modelos tecnocientíficos de negócio, mas eles já permitiram levantar quantidades consideráveis de capital. A eles se contrapõem pelo menos outras três estratégias para fazer o potencial terapêutico dos psicodélicos chegar ao público hoje desassistido pela farmacopeia psiquiátrica.

As três se caracterizam por não terem fins lucrativos, por reivindicar-se como herdeiras da tradição de cura e autoconhecimento dos tempos da contracultura e por não se ancorar na propriedade intelectual para se sustentar, embora não a excluam. O trio alternativo já foi mais de uma vez apresentado neste blog, por isso não seria o caso de estender-se sobre elas:

  1. O modelo de corporação sem fins lucrativos seguido pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) em seu esforço de décadas para regulamentar o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático com psicoterapia assistida por MDMA, o que pode acontecer em 2023;
  2. A estratégia de ciência aberta capitaneada pelo Instituto Usona na competição com a Compass em ensaios clínicos da psilocibina para depressão, inclusive com o patrocínio de um repositório de estudos e saber tradicional sobre cogumelos “mágicos” e outros psicodélicos de uso ritual, Porta Sophia, para questionamento de patentes pela existência de conhecimento prévio;
  3. A inovadora experiência em curso no estado americano de Oregon para licenciamento de terapias com psilocibina, certificação e controle de procedência da composto e formação de terapeutas especializados, em paralelo com a progressiva descriminalização do uso adulto de várias drogas ditas “enteogênicas” (termo alternativo, menos estigmatizado, para designar psicodélicos).

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

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Terapias psicodélicas movimentam milhões antes de regulamentadas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/terapias-psicodelicas-movimentam-milhoes-antes-de-regulamentadas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/terapias-psicodelicas-movimentam-milhoes-antes-de-regulamentadas/#respond Sat, 13 Nov 2021 21:42:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/CetaminaInjecaoPsychonaughtWikiCommons-300x200.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=750 Quem quiser ter uma ideia da movimentação frenética dos negócios para aproveitar o renascimento psicodélico pode olhar para a Delic Corp. A empresa americana, que se apresenta como “corporação líder em bem-estar psicodélico”, fechou por US$ 3,3 milhões (R$ 18 milhões) a compra da rede Ketamine Welness Centers (KWC).

A KWC, como diz o nome em inglês, reúne clínicas que usam cetamina (ou ketamina) para tratamento de depressão e outros problemas mentais. Trata-se de um anestésico empregado há décadas, porém só mais recentemente na terapia desses transtornos.

A cetamina não pertence à classe dos psicodélicos clássicos, na qual figuram mescalina, LSD, psilocibina e DMT (dimetiltriptamina, presente na ayahuasca). Tem sobre eles a vantagem do efeito rápido e curto, compatível com atendimento no prazo de uma consulta médica, além de não ser substância proibida.

(Reprodução)

A aplicação se faz por injeção e só por médicos. A droga carrega ainda a fama de tirar de crises deprimidos graves, com ideações suicidas, embora sua versão em spray nasal (Spravato) não tenha essa indicação na bula porque testes clínicos da Janssen não obtiveram significância estatística para esse desfecho.

A KWC conta com dez clínicas de cetamina em nove estados: Arizona, Colorado, Flórida, Illinois, Minnesota, Nevada, Texas, Utah e Washington. Em 2020 a rede faturou US$ 3,5 milhões (R$ 19 milhões) e, neste ano, projeta alcançar US$ 4,5 milhões (R$ 25 milhões). Em seis anos, afirma ter aplicado 60 mil tratamentos.

A compradora, Delic, já operava duas clínicas com o nome Ketamine Infusion Centers (KIC), na Califórnia e no Arizona. O plano é abrir mais 15 delas em um ano e meio, consolidando a posição de líder do setor nos EUA e já se preparando para a explosão de mercado de psicoterapia assistida por psicodélicos esperada a partir de 2023, com a provável regulamentação de MDMA e psilocibina para esses tratamentos.

Na mira dos investidores estão milhões e milhões de pessoas que sofrem com depressão resistente a medicamentos existentes, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e dor crônica. Como as terapias psicodélicas em investigação não serão pílulas para tomar em casa, todo dia, como os antidepressivos, e sim como parte de tratamento psicológico ou psiquiátrico, pacientes terão de recorrer a médicos e centros clínicos.

No Brasil, nem mesmo a discussão sobre maconha medicinal avançou tanto quanto poderia, o que deixa prever muita morosidade quando chegar a vez dos estigmatizados psicodélicos. E não será por falta de gente que sofre, após uma pandemia mortífera potencializada pelo governo Jair Bolsonaro.

A movimentação de investidores por aqui é tímida, embora o país disponha de larga tradição de pesquisa com cânabis e psicodélicos, sobretudo ayahuasca. Foi graças a estudos com o chá, aliás, que pesquisadores psiconautas brasileiros ficaram em terceiro lugar num levantamento de estudos científicos de alto impacto, como o realizado sobre depressão na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Por ora o Brasil só conta com uma aceleradora de startups psicodélicas, a recém-fundada Scirama. Talvez não seja para estranhar tanto a falta de visão, numa nação em que a classe dos endinheirados apoiou, e em grande medida ainda apoia, um presidente do naipe de Bolsonaro.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

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Ciência aposta no anestésico psicodélico cetamina contra compulsão por jogo https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/30/ciencia-aposta-no-anestesico-psicodelico-cetamina-contra-compulsao-por-jogo/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/30/ciencia-aposta-no-anestesico-psicodelico-cetamina-contra-compulsao-por-jogo/#respond Mon, 30 Aug 2021 19:50:52 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/JOGO.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=588 A continuar a ampliação da gama de aplicações psiquiátricas potenciais, drogas psicodélicas correm o risco de ter sua imagem desacreditadas como um emplastro Brás Cubas, panaceia duvidosa. Agora até a compulsão por jogos de azar entra na mira da pesquisa de tratamentos psicodélicos experimentais.

O rol de terapias sob investigação não para de crescer: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, TOC, alguns transtornos do espectro autista, anorexia, dependência química… propõe-se que até males vistos como puramente fisiológicos, como enxaqueca e danos cerebrais em boxeadores, possam ser mitigados com alteradores de consciência.

Quem cacifa a utilização de um psicodélico contra a propensão compulsiva a jogar e apostar é a empresa canadense Awakn. Ela está recrutando participantes para um estudo no Reino Unido, sob direção de Celia Morgan, da Universidade de Exeter, que almeja esmiuçar o efeito da cetamina nos sistemas de recompensa atuantes nessa compulsão e no pensamento supersticioso que a sustenta.

A cetamina é um anestésico dissociativo raramente abordado na cobertura jornalística sobre o renascimento psicodélico (não aparece em meu livro “Psiconautas”, p. ex.). Droga legalizada de largo uso médico, faz sucesso também na cena noturna como “key” e vem sendo usada por psiquiatras para tratar depressão há pelo menos 15 anos, como injeção.

Mais recentemente, uma variante do composto chamada escetamina ganhou formulação nasal para emprego como antidepressivo. Uma vantagem dessas substâncias está no efeito mais curto, compatível com uso ambulatorial, em comparação com psicodélicos como ayahuasca e psilocibina, igualmente estudados para depressão.

Estima-se que só nos Estados Unidos haja 10 milhões de pessoas viciadas em jogo (2,5% da população). A Awakn está de olho em ampliar seu mercado terapêutico com outras formas de compulsão potencialmente tratáveis com cetamina, como dependência de álcool, contra a qual também planeja utilizar MDMA (base do ecstasy).

Abrindo o leque das várias formas de adição, incluindo por exemplo sexo, a parcela da população norte-americana afetada pode chegar a 27%. No mundo, a dependência química seria de 15-20%.

É um senhor mercado, e também um nicho de pesquisa regiamente financiado pelo governo dos EUA. Só a iniciativa HEAL (acrônimo em inglês de Ajudando a Acabar com Adição no Longo Prazo), da czarina da pesquisa sobre drogas Nora Volkow, destinou em três anos mais de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 8 bilhões, o triplo do orçamento do MCTI) para 500 projetos.

Volkow é criticada pelo neurocientista americano Carl Hart, de quem ele já foi próximo. Ele a acusa no livro “Drogas para Adultos” (Zahar) de fomentar uma histeria em torno do abuso de opioides nos EUA. De todo modo, em 2020, ocorreram 93 mil mortes por overdose naquele país (três quartos após uso de opioides), 29% a mais que no ano anterior.

Não deixa de ser curiosa a opção da Awakn de investigar cetamina e MDMA para adição. Há cinco décadas de experiência com um outro psicodélico derivado de plantas africanas, ibogaína, em tratamentos alternativos de dependência química, inclusive no Brasil, mas com a desvantagem de seu efeito tomar muitas horas e exigir monitoramento cardíaco.

PARA SABER MAIS

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Conheça portal para combater patentes abusivas de medicamentos psicodélicos https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/conheca-portal-para-combater-patentes-abusivas-de-medicamentos-psicodelicos/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/conheca-portal-para-combater-patentes-abusivas-de-medicamentos-psicodelicos/#respond Mon, 24 May 2021 14:03:03 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/PortaSophia2-271x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=478 Com o ressurgimento da atenção da pesquisa biomédica para substâncias alteradoras de consciência, levantou-se uma onda de interesse de investidores nos prometidos avanços para a psiquiatria. Na esteira vieram controvérsias sobre propriedade intelectual de psicodélicos, que um novo portal na internet pretende ajudar a resolver distinguindo o que é novidade do que não é.

A iniciativa estreou no final de abril e se chama Porta Sophia, algo como “portal da sabedoria”. Conta com apoio de Bill Linton, dono da empresa de suprimentos e equipamentos de biotecnologia Promega, que tem subsidiária no Brasil e fundador do Instituto Usona, de Madison (Wisconsin, EUA), voltado para a pesquisa clínica de psicodélicos como a psilocibina.

Seus parceiros são o escritório de advocacia americano Casimir Jones, especializado em direito patentário, o Instituto Americano de História da Farmácia da Universidade de Wisconsin, a Coleção Betsy Gordon de Pesquisa de Substâncias Psicoativas da Universidade Purdue e os fóruns online DMT-Nexus e Bluelight.

“Acreditamos fortemente no sistema de patentes que confere o reconhecimento de pedidos considerados legais, inovadores, úteis e não-óbvios”, diz o empresário, mas ressalvando: “Agentes de patentes precisam se fiar em informação que possam obter facilmente a respeito de conteúdos no domínio público, para poder decidir se concedem os pedidos de patentes”.

A ideia da Porta Sophia é reunir num lugar só milhões de documentos, artigos, resultados de pesquisas, conferências e simpósios científicos, bibliotecas de documentos, notas de internet e fontes de informação similares relacionados com terapias psicodélicas e assuntos correlatos. As buscas podem ser feitas por composto, condição mental e data, por exemplo.

“Isso ficará acessível para qualquer indivíduo ou organização, poupando tempo e despesas envolvidas na determinação de patenteabilidade”, afirma Linton.

Os usos terapêuticos desses compostos integram conhecimento milenar, como no caso dos cogumelos Psilocybe utilizados por curanderos e curanderas dos mazatecas, no México, ou da ayahuasca de povos indígenas no Brasil e no Peru. Outros foram criados em laboratório há décadas, como MDMA na farmacêutica Merck (1912) e LSD na Sandoz (1938), usados em psicoterapia nos anos 1950-1970.

A “curandera” Maria Sabina, que apresentou cogumelos “mágicos” à revista Life  nos anos 1950 (Creative Commons)

Não há, assim, tanta novidade nas substâncias psicodélicas, a não ser por seu renascimento para a medicina após meio século de proscrição. Apesar disso, empresas que ora aplicam fortunas na perspectiva de um mercado bilionário, ou recolhendo outro tanto de capitalistas arrojados para financiar ensaios clínicos e semear startups, buscam proteger a rentabilidade futura do investimento com recurso à propriedade intelectual.

Só no caso da depressão estima-se que haja no mundo mais de 100 milhões de doentes que não obtêm bons resultados com antidepressivos disponíveis, os ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina, como escitalopram). É o que se chama de depressão resistente.

Investidores em psicodélicos recorrem a pedidos de patentes para formulações retocadas de compostos, processos aperfeiçoados de síntese e protocolos terapêuticos para transtornos mentais particulares –às vezes tudo num pacote só. A proliferação de títulos de propriedade intelectual, contudo, pode desestimular a entrada de novos empreendedores na competição, pelo alto custo de enfrentar batalhas jurídicas.

Considere o caso da britânica Compass Pathways. Começou como uma colaboração entre pesquisadores e terapeutas para avançar testes clínicos de psilocibina para depressão, mas foi reinventada como empresa com fins lucrativos.

Em 2020, a firma levantou US$ 146 milhões (R$ 780 milhões) no mercado de capitais. Outros US$ 80 milhões (R$ 430 milhões) foram amealhados só para custear testes clínicos com vistas à aprovação da psilocibina como medicamento psiquiátrico.

Hoje a Compass está no foco das maiores polêmicas sobre patentes, após apresentar vários pedidos de proteção para a síntese de sua formulação COMP360 aplicada a terapia para deprimidos graves. A companhia já obteve três certificados nos Estados Unidos.

A empresa de George Goldsmith e Ekaterina Malievskaia segue adiantada com testes clínicos de fase 2 sobre emprego de psilocibina para depressão. Seu principal concorrente é o Instituto Usona, de Bill Linton.

Cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe (HansBraxmeier/Pixabay)

O Usona também empreende um teste clínico. A diferença é que publica todos os passos de sua síntese química e põe a própria psilocibina à disposição de outros estudiosos, fiel a ideais de ciência aberta que têm forte tradição no meio psicodélico.

“Devido a aspectos históricos e culturais dos psicodélicos, o estado da arte pode ser difícil ou complicado de achar. Porta Sophia identifica as inovações prévias pertinentes para revisores de patentes onde quer que existam em espaços comuns e incomuns”, afirma o portal patrocinado por Linton.

“Isso inclui fontes tradicionais (literatura científica, patentes publicadas) e arquivos domésticos e estrangeiros que destaquem trabalho fundamental realizado décadas atrás. Porta Sophia está desenvolvendo novas ferramentas para identificar inovação prévia em milhões de notas de blog contidas em vários fóruns digitais.”

Uma equipe de especialistas científicos e jurídicos faz a curadoria das referências relevantes para revisores de patentes. Os organizadores anteveem atualização contínua do conteúdo com o engajamento da comunidade psicodélica, que pode contribuir sugerindo referências, cinco por vez ou por atacado (por exemplo um acervo inteiro de documentos).

“Esperamos fazer Porta Sophia crescer como uma importante estrutura voltada para a sociedade que ajude a proteger o domínio público, estimular inovação sobre aplicações psicodélicas e instrumentar a aprovação rápida de opções de tratamento baseado em psicodélicos.”

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Lista dos mais influentes em psicodélicos tem só duas brasileiras https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/lista-dos-mais-influentes-em-psicodelicos-tem-so-uma-antropologa-brasileira/#respond Mon, 03 May 2021 19:51:51 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/RankingMachosBrancosPsicodelicos-300x158.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=446 ADENDO: depois de publicada a nota, veio ao meu conhecimento que Adriana Kertzer, 97a. da lista, advogada atuante no Plant Medicine Law Group dos EUA, nasceu em São Paulo. São, portanto DUAS brasileiras no ranking. Texto modificado para incluir essa informação.

Um ranking das cem personalidades com maior influência no campo psicodélico está dando o que falar. Toda lista de bambambãs se sujeita a controvérsia, mas essa caprichou em ignorar a diversidade hoje esperada de qualquer elenco, sob pena de perpetuar vieses que mantêm em posição subalterna quem deveria brilhar tanto ou mais que homens brancos ricos, famosos e poderosos.

A lista dos psiconautas mais influentes foi montada pelo serviço de informações Psychedelic Invest, dando peso sobretudo para audiência em redes sociais. Os organizadores do ranking se penitenciaram pela falta de diversidades, que privilegiou machos caucasianos em todas as 20 primeiras colocações.

Contei apenas 17 mulheres na relação de 100 nomes, entre elas DUAS únicas pessoas naturais do Brasil: Beatriz Caiuby Labate, antropóloga estudiosa de ayahuasca conhecida como Bia Labate, e a advogada Adriana Kertzer.

A antropóloga brasileira Bia Labate  (Divulgação)

Obviamente negros também só se veem dois: o especialista em abuso de drogas Carl Hart e o boxeador Mike Tyson, que em dezembro devorou 4g de cogumelos psicodélicos Psilocybe durante entrevista.

O destaque para Labate é justo. Ela já organizou, editou e escreveu duas dezenas de livros sobre ayahuasca, peiote, povos tradicionais que usam psicodélicos e sua redescoberta pela neurociência e pela psiquiatria.

O último deles, “Ayahuasca Healing and Science” (cura e ciência da ayahuasca, minha tradução para o título), foi editado com Clancy Cavnar, companheira com que administra o Chacruna Institute for Psychedelic Plant Medicines, em São Francisco (EUA).

(Reprodução)

Labate também trabalha como especialista em educação pública e cultura da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), cujo fundador, Rick Doblin, é o terceiro do ranking. (Possível conflito de interesses para o leitor conhecer e ponderar: já publiquei quatro artigos pagos na página Chacruna e tenho um no prelo do MAPS Bulletin, todos a convite de Labate.)

O volume contém ensaios de vários pesquisadores do Brasil, terceiro país com mais artigos científicos de impacto. O prefácio é do neurocientista Sidarta Ribeiro (40,4 mil seguidores), e o livro tem autores brasileiros como o psiquiatra Luís Fernando Tófoli (30,6 mil) e o físico Dráulio de Araújo, pesquisador principal do estudo sobre ayahuasca e depressão que aparece em sexto lugar naquele ranking dos artigos com mais citações (38/ano).

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Liberação de terapia com psilocibina em Oregon enfrenta resistência empresarial https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/26/liberacao-de-terapia-com-psilocibina-em-oregon-enfrenta-resistencia-empresarial/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/26/liberacao-de-terapia-com-psilocibina-em-oregon-enfrenta-resistencia-empresarial/#respond Mon, 26 Apr 2021 14:42:33 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/measure-109-logo-215x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=427  

No estágio atual do renascimento psicodélico em psiquiatria e psicoterapia, fica cada vez mais claro que está longe de ser um movimento unificado a aproximar pesquisadores, investidores e psiconautas, todos marchando na mesma direção. Ele se parece mais e mais com pessoas convergindo a uma sorveteria após longos passeios separados num dia de verão, quando cada cliente está ansioso por escolher a guloseima com maior probabilidade de propiciar a melhor experiência ao paladar –no caso dos psicodélicos, os melhores benefícios para a saúde mental.

Há um senão: cada cliente deve pensar duas vezes antes de optar por uma cumbuca misturada. Alguns sabores simplesmente não combinam com outros e podem arruinar o dia agradável.

O sorvete de creme do empreendimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização, com testes clínicos, aprovação por agências reguladoras, investidores capitalistas, patenteamento de moléculas e processos e todo o percurso burocrático voltado para reembolso por planos de saúde. Este é o sabor que faz barulho nos círculos e publicações empresariais, que costumam se entusiasmar com qualquer oportunidade de investimento num mercado de massa com potencial para alcançar centenas de bilhões de dólares em poucos anos.

A escolha pouco imaginativa tem por cobertura alguma controvérsia, também, causada por empresas como a Compass Pathways e suas patentes amplas demais em aplicações de psicoterapia com psilocibina sintética, o ingrediente psicoativo orginalmente obtido de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe, atualmente em testes clínicos para tratar depressão e várias outras condições.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Há também uma versão menos previsível do sabor popular, por assim dizer o sorvete de pistache da psicodelia. Iniciativas como a Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) acrescentam ingredientes incomuns à receita convencional ao abrir mão de lucros como objetivo primário e de direitos de propriedade intelectual (PI) sobre inovação por meio de patentes. De olho no benefício público, a Maps prefere privilegiar direitos exclusivos de comercialização de tratamento, menos restritivos, conferidos pela FDA (agência americana de fármacos) ao aprovar uma nova terapia. Com a diferença de que tal exclusividade sobre dados clínicos não impede que outros atores produzam seus próprios dados.

O Instituto Usona, de Wisconsin, segue trilha semelhante ao publicar todos os passos que desenvolveu para a síntese da psilocibina e tornar sua própria versão da droga disponível a outros pesquisadores interessados em testá-la.

Por fim, há o sabor açaí do acesso a psicodélicos, por sua excentricidade, aprovado em Oregon em novembro de 2020 com 56% dos votos: a Medida 109. Os eleitores desse estado do noroeste dos EUA ignoraram as opções creme e pistache e partiram direto para a novidade mais surpreendente, incluída no menu por Tom e Sheri Eckert, iniciadores e peticionadores principais da 109, que estabeleceu um programa estadual de psicoterapia com psilocibina, longe do alcance dos reguladores de Washington DC a da trilha batida das patentes.

Além disso, outra medida de Oregon, a 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), foi aprovada com 58% dos votos. De acordo com um artigo de Ismail Ali na última edição do MAPS Builletin, trata-se possivelmente da mais promissora reforma de política de drogas até agora nos EUA, pois é a que chega mais perto de repudiar a mentalidade de criminalização consagrada na Guerra às Drogas e de substituí-la por outra baseada em saúde pública, compaixão e tratamento não-coercitivo.

“Particularmente, a Medida 110 foi o primeiro esforço bem-sucedido nos EUA para descriminalizar o uso pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína, ao mesmo tempo em que adotava a pioneira descriminalização em nível estadual de plantas, cactos e fungos do Schedule 1 [lista de substâncias proibidas e controladas].”

Em outras palavras, um lance ainda mais radical, já que a Medida 110 vai muito além da 109 ao abranger todas as drogas e o assim chamado uso recreativo, não só a psilocibina para terapeutas licenciados.

A pergunta de centenas de bilhões de dólares que permanece, para retornar aos sorvetes salpicados com psilocibina: Há espaço para todos os sabores na mesma cumbuca psicodélica? Poderia o açaí se mostrar forte demais para os frequentadores costumeiros? Ou ainda, vice-versa, poderia a preferência de capitalistas pelo sabor creme das patentes e reembolsos submergir os esforços em Oregon para tornar a psilocibina mais acessível para os que dela precisam?

“Uma inspiração para a campanha [da 109] foi simplesmente terminar a proibição de 50 anos para a terapia psicodélica, o que já passava da hora, na minha opinião”, disse Tom Eckert em resposta por email. Sheri, Tom e seus companheiros estavam igualmente dedicados a refletir sobre a melhor maneira de integrar os psicodélicos de volta na cultura:

“Vimos a iniciativa de votação como ferramenta perfeita para cavar um espaço para a psicoterapia com psilocibina e erguê-la sobre uma fundação própria. Isso é importante porque os marcos de referência existentes, seja a medicalização movida pela indústria farmacêutica, seja a legalização ao estilo da cânabis, não pareciam ser bem o correto, ou, no caso da medicalização, pareciam incompletos em termos de acesso. Por isso queríamos entalhar uma moldura que desse conta da oferta.

Eckert integra a Comissão Consultiva para Psilobina formada pela Autoridade de Saúde de Oregon (OHA em inglês), como previsto na 109, com a tarefa de desenvolver as normas e regulamentos para disciplinar as aplicações e licenciá-las, assim como manufatura e rastreamento do composto, além do provimento de terapias. A comissão tem até junho de 2022 para fazer suas recomendações, e se espera que a OHA comece a aceitar pedidos de licenciamento de terapeutas e produtores em janeiro de 2023.

Esse cronograma é capaz de tornar a terapia assistida por psicodélicos disponível para o público de Oregon mais rápido que qualquer das iniciativas pela via da FDA. Os ensaios clínicos com psilocibina para depressão da empresa Compass e do Instituto Usona se encontram na fase 2, e mesmo a fase 3 da MAPS com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático não deve ganhar aprovação antes disso. Talvez seja essa a razão pela qual alguns entusiastas do sorvete de creme torcem o nariz para o açaí de Oregon.

Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

Um dos primeiros a pôr a boca no trombone foi David Bronner, auto-intitulado Executivo de Engajamento Cósmico (CEO em inglês) da Dr. Bronner’s, empresa fornecedora dos sabonetes naturais mais vendidos nos EUA. Num artigo publicado no blog da companhia, All-One, sob o título “Sounding the Alarm on Compass’s Interference With Oregon’s Psilocybin Therapy Program” (soando o alarme contra a interferência da Compass no programa de terapia com psilocibina de Oregon), Bronner afirmou não só que as patentes da Compass sobre a síntese de psilocibina poderiam dificultar a produção do medicamento pelo Usona, mas também que o CEO da Compass, George Goldsmith, estaria tentando organizar oposição à 109 entre pesquisadores psicodélicos na Universidade de Saúde e Ciência de Oregon.

A Compass nega qualquer interferência. “Não estamos tentando mobilizar oposição à implementação da 109”, afirmou em mensagem de email a chefe de comunicação Tracy Cheung. “O povo de Oregon votou a favor da medida, refletindo a imensa necessidade não atendida em cuidados de saúde mental. Respeitamos e entendemos isso, e não é nossa intenção fazer coisa alguma para mudá-lo.” Após elogiar a 109 como abordagem radicalmente nova para acesso a terapia com psilocibina capaz de ajudar milhões de pessoas, Cheung afirmou que ela “também levanta desafios e questões sobre como será implementada para assegurar segurança e acesso equitativo para os necessitados”.

“Acreditamos que a via médica regulamentada é a melhor maneira de assegurar segurança, eficácia e qualidade para qualquer medicamento ou terapia. Para tanto, estamos desenvolvendo nossa terapia com psilocibina COMP360 por meio de testes clínicos”, ressalvou. “Evidência clínica e aprovação regulatória são também pré-requisitos para qualquer consideração de reembolso. Isso significa que acreditamos ser a via médica a forma mais segura e eficaz de introduzir terapia com psilocibina (se aprovada) no sistema de saúde, com reembolso e tornada disponível para todos que possam beneficiar-se dela.”

Eckert explicou ter conversado com Goldsmith durante a campanha da 109, mas não depois disso. “Foi informativo e cordial, apenas uma troca de perspectivas. Ele vê a psilocibina com as lentes médicas, enquanto eu vejo mais um modelo de acesso, ou um modelo de terapia e bem-estar”, disse, negando ter qualquer informação sobre os alegados contatos de Goldsmith com pesquisadores de Oregon.

Eckert não acredita que os movimentos e patentes da Compass possam afetar o trajeto psicodélico de Oregon. O estado emitirá licenças para cultivadores e desenvolvedores de produtos de acordo com seus próprios padrões. Um espectro de produtos ou medicamentos será provavelmente oferecido para uso conforme a regulamentação, incluindo versões orgânicas, extraídas dos cogumelos.

“Aqui em Oregon, embora conhecedor de padrões de saúde, minha impressão é que realmente não enxergamos a psilocibina como uma droga farmacêutica e, assim, não a regulamentaremos dessa maneira. É claro que a própria psilocibina não pode ser patenteada, e, diante do marco regulatório e das provisões legais de Oregon para produtos inclusivos, patentes sobre processos específicos de produção não parecem relevantes. Você não pode realmente patentear o cultivo de cogumelos, e protocolos para produtos sintéticos ou biossintéticos estão cada vez mais em domínio público, segundo entendo.”

O principal argumento contra as pretensões da Compass se baseia, de fato, no princípio de que algo inerente ao estado da técnica (prior art) não pode ser patenteado. A psilocibina naturalmente existente tem sido usada há séculos em situações rituais por povos tradicionais <https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/artigo-pede-retribuicao-a-povo-mazateca-por-revelar-espiritu-de-cogumelos/> e por décadas em tratamentos alternativos por terapeutas, legalmente antes da proibição e sob o radar depois disso. Embora a empresa já tenha obtido três patentes de psilocibina nos EUA, uma maneira de contestar seus esforços de “cercamento” está em reunir num único repositório acessível toda a informação existente sobre aquela substância particular e outros compostos psicodélicos.

Pelo menos essa é a visão no Usona sobre a questão. Bill Linton, diretor executivo, deixou claro em mensagem de email que ele não é contra patentes em geral: “Acreditamos firmemente no sistema de patentes, que promove o reconhecimento de reivindicações consideradas legítimas, novas, úteis e não óbvias. Funcionários de patentes precisam se basear em dados que possam obter facilmente a respeito de informações no domínio público, de maneira a saber se devem aceitar pedidos de patentes”.

Nas próximas semanas, segundo informou, uma organização independente passará a prover um portal de referência projetado para ajudar agentes de patentes e funcionários no mundo todo a acessar facilmente milhões de documentos, artigos publicados, resultados de pesquisa científica, conferências, simpósios, bibliotecas de arquivos, notas na rede e fontes similares de informação relacionadas com terapias psicodélicas e temas associados. “Isso estará acessível para qualquer indivíduo ou organização, economizando tempo e despesas envolvidas em determinar patentabilidade”, afirmou, sem dar mais detalhes.

Um exemplo nessa linha é Freedom to Operate (liberdade de operação), organização sem fins lucrativos lançada por Carey Turnbull, que integra o comitê diretor do próprio Usona. Ele fundou a ONG com o propósito de proteger a ciência psicodélica e o desenvolvimento médico no interesse público, por meio de desafios a patentes inapropriadas –aquelas que tentam se apoderar de conhecimento preexistente no espaço público e depois vendê-lo de volta como invenção. O princípio é que patentes equivocadamente emitidas impedem a pesquisa e a inovação por outras organizações e criam ônus excessivo ou perdas para a eficiência da economia.

É o caso de perguntar se essas iniciativas não serão muito pouco muito tarde, em face do tremendo impulso ganho por investidores quando tomaram o bonde andando dos psicodélicos.

Eckert, de sua parte, nada tem de pessimista quando se trata dos vários modelos para levar benefícios de psicodélicos para quem precisa: “A aprovação da FDA para psilocibina e MDMA será enormemente positiva, e cumprimento organizações como Usona e Maps por sua tentativa de inovar abordagens baseadas em ciência aberta, melhores, talvez, do que costumamos esperar da indústria farmacêutica”.

Na sua visão, se um modelo de prescrição médica com reembolso por planos de saúde vier a ser aprovado, a infraestrutura em desenvolvimento em Oregon iria apoiá-lo e facilitá-lo, ao mesmo tempo em que continuaria a oferecer acesso seguro para um número de pessoas presumivelmente maior sem prescrições ou diagnósticos. “Ambos os modelos deveriam coexistir naturalmente dentro de um esquema integrado. Para aqueles em busca de cura psicodélica, deveria ser uma questão de conforto e escolha; todas as opções de uso responsável deveriam ser permitidas. O sucesso de cada área ou abordagem não deveria de modo algum bloquear o sucesso de outra. A coesão entre medicina, terapia e bem-estar representa o melhor serviço para o movimento e para o público.”

Em resumo: misturar o sabor peculiar do açaí com outros sorvetes na mesma cumbuca não parece ser a melhor escolha para paladares convencionais, mas todos devem ter a liberdade de fazer essa opção. A precondição para tanto é manter o açaí no menu da sorveteria psicodélica.

Uma versão deste texto foi originalmente publicada em inglês na página do Instituto Chacruna

https://www.borasaber.art.br/marcelo-leite-historia-das-drogas-para-uso-medicinal

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Nasce a Scirama, primeira empresa de inovação psicodélica do Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/18/nasce-a-scirama-primeira-empresa-de-inovacao-psicodelica-do-brasil/#respond Mon, 19 Apr 2021 02:15:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/LOGO-SCIRAMA-FUNDO-BRANCO-215x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=419 O renascimento psicodélico ganha nesta segunda-feira (19) a primeira empresa brasileira de inovação nesse campo efervescente, Scirama. Por trás dela está Marcel Grecco, 38, criador de The Green Hub, aceleradora na área de maconha medicinal e cânhamo que tem dez startups no portifólio.

O momento foi bem escolhido: 19 de abril é o Dia da Bicicleta, data em que o químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), descobridor do LSD nos laboratórios Sandoz, realizou a primeira viagem lisérgica da história, em 1943. Até a proibição nos EUA em 1968, a droga foi distribuída para distúrbios como o alcoolismo, sob o nome Delysid.

A partir de 1980, estudos clínicos com quase todos os compostos psicodélicos caíram no ostracismo. Ressurgiram a partir da virada do século e hoje entusiasmam neurocientistas e investidores, sobretudo a psilocibina dos cogumelos “mágicos”, por seu potencial para tratar transtornos mentais como a depressão resistente a medicamentos.

Nos últimos cinco anos quase 3 mil artigos científicos foram publicados acerca do tema. Estimativas sobre o mercado mundial para psicoterapia apoiada em psicodélicos partem de US$ 100 bilhões anuais (R$ 560 bilhões), e várias empresas travam hoje uma corrida para patentear moléculas e aplicações psicodélicas.

Nos EUA, governo, universidades e empresas investiram, no primeiro semestre de 2020, US$ 250 milhões em pesquisa psicodélica. A Janssen (Johnson & Johnson) lançou o spray nasal antidepressivo Spravato (escetamina, variante da cetamina, anestésico já usado contra depressão), com vendas de US$ 1,5 bilhão anuais.

“A Scirama [pronuncia-se ‘sairama’] nasceu a partir de uma dor, o mal do século na saúde mental”, diz Grecco, referindo-se principalmente a depressão e ansiedade. “Isso agora vai se intensificar, com o luto pós-Covid, a dor de quem perdeu alguém ou teve a doença, e os impactos econômicos, na perda de empregos e negócios.”

Marcel Grecco, criador de The Green Hub e da empresa psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

O empresário conta que, depois de criar The Green Hub em 2016, foi atraído pela promessa medicinal dos alteradores de consciência. Numa primeira rodada entre investidores para lançar a Scirama, obteve fundos da ordem de R$ 1,5 milhão.

“O uso de cânabis e de psicodélicos é disruptivo [revolucionário] para o setor de saúde”, diz, aludindo aos estudos que os apontam como alternativa para as terapias existentes, que no caso de depressão não funcionam para ao menos um terço dos doentes.

Grecco já conhecia como colaborador científico da aceleradora The Green Hub o neurocientista Stevens Rehen, 50, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), que tem estudos publicados sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos ayahuasca e 5-MeO-DMT (extraído originalmente do veneno do sapo-do-rio-colorado).

O neurocientista Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres.
(Mercelo Leite/Folhapress 2019)

Chamou Rehen para compor o comitê científico da Scirama ao lado de Sidarta Ribeiro, 50, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN). Ambos já trabalharam juntos em pesquisa básica com LSD, em colaboração com Dráulio de Araújo (ICe-UFRN) e Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Completa o time Clarice Pires, 36, economista especializada em inovação com quem Rehen atuou na startup de biotecnologia Hygeia, um raro caso de sucesso no problemático campo de inovação no Brasil. A empresa desenvolveu novas formulações do medicamento octreotida (supressor do hormônio de crescimento e antidiarreico) e as licenciou no Brasil e no exterior.

Clarice Pires, administradora da startup psicodélica Scirama (Foto Divulgação)

“Stevens e Sidarta têm todo o conhecimento, sabem para onde a ciência está indo”, diz Grecco. Com efeito, esse grupo de colaboradores está no epicentro da pesquisa nacional na área, favorecida pela legalização da ayahuasca por motivos religiosos, que pôs o Brasil em terceiro lugar na quantidade de artigos científicos de grande impacto sobre psicodélicos, atrás dos EUA e do Reino Unido apenas.

A ideia da Scirama é dar o financiamento inicial e ajuda na estruturação de produtos e terapias derivados das propriedades já conhecidas de psicodélicos. Entre elas estão a capacidade de estimular novas conexões cerebrais (neuroplasticidade) e a ação anti-inflamatória, que poderá gerar aplicações para transtornos mentais e doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

No exterior, já se investiga o uso de psicodélicos até para acidentes vasculares cerebrais, anorexia e enxaqueca. Entre os alvos da Scirama estarão também protocolos para o tratamento de dependência química, em especial de álcool –como se fazia com LSD nos anos 1950/60. A startup lançará em breve um edital para receber propostas de pesquisadores brasileiros.

No curto prazo, a equipe espera receber ideias na área de psicoterapia com psicodélicos clássicos (ayahuasca, LSD, psilocibina) e mesmo para cultivo de organismos produtores, como os cogumelos Psilocybe. No longo prazo, aplicações para envelhecimento, não dependentes do efeito psicodélico terapêutico propriamente dito (alterações da consciência, como a chamada dissolução do ego e o aumento de empatia).

Outro setor em que a Scirama pretende inovar é o de compensações para os povos tradicionais que usam psicodélicos em rituais há séculos e legaram esse conhecimento para a ciência contemporânea (um flanco aberto para intensa controvérsia). O próprio logotipo da firma faz alusão a isso, ao reunir filamentos de conexão entre neurônios em formato que lembra um cocar.

A administradora Clarice Pires afirma que patentes e propriedade intelectual são cruciais para seu modelo de negócios, mas que em breve a empresa apresentará um modelo sobre como pretende fazer esse ressarcimento. O assunto já está na pauta das próximas reuniões.

Para saber mais: meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” será publicado dia 17 de maio pela Editora Fósforo. E em 19 de maio começa o curso no canal Bora Saber:

 

 

 

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Psicodélicos enfrentam falso dilema farmacologia X autoconhecimento https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/psicodelicos-enfrentam-falso-dilema-farmacologia-x-autoconhecimento/#respond Sun, 28 Mar 2021 19:50:43 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/PORTAO2WikicommonsMarcinSzala-234x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=388 A popularidade acadêmica dos psicodélicos só faz crescer. O periódico JAMA Psychiatry, ao fazer um balanço dos 110 artigos de pesquisa que aceitou publicar entre os 2.190 recebidos em 2020, destacou um trabalho da Universidade Johns Hopkins (JHU) sobre psilocibina e depressão como um dos três textos mais lidos do ano.

Os outros dois versavam sobre saúde mental em tempos de Covid-19, um deles sobre suicídios. O artigo sobre psicodélicos não incluía a pandemia no título ou no resumo, largando mais atrás, portanto, na competição pelo interesse de especialistas.

Tamanho destaque só ressalta a visibilidade que o tema ganhou em anos recentes –aí incluído o cabo-de-guerra entre quem vê no renascimento psicodélico uma oportunidade bilionária para a indústria farmacêutica e os que nele enxergam a reversão da voga proibicionista que impediu, por quatro décadas, o acesso a fontes de bem-estar conhecidas há milênios.

A revista figura entre as de maior impacto no ramo da psiquiatria; os artigos que publica terminam citados em média por 17,5 outros estudos (dado de 2019). O estudo da JHU foi visto no ano passado por 118 mil interessados, e nestes primeiros meses de 2021 já somou mais 63 mil leitores, totalizando 181 mil. Em menos de cinco meses, já foi citado 11 vezes.

(Reprodução)

Toda essa atenção deriva de dois fatores. O primeiro está no fato de que grande parcela das pessoas que sofrem com transtornos mentais (depressão, estresse, ansiedade, dependência química etc.) não encontram alívio nas terapias farmacológicas disponíveis, como antidepressivos. Psiquiatras e pacientes precisam desesperadamente de alternativas.

O outro componente do interesse em alta decorre do enorme mercado que esses desassistidos representam. Já se estimou que possa ultrapassar US$ 400 bilhões anuais (R$ 2,3 trilhões).

Daí a corrida de pesquisadores e empresários investidores para serem os primeiros a ocupar espaço no novo território psicodélico. Seus veículos preferidos para conquistar o terreno sem dono são patentes e o reconhecimento por agências reguladoras, que abririam as portas para remuneração de tratamentos por planos de saúde privados ou públicos.

Nas duas últimas semanas, a controversa empresa britânica Compass Pathways obteve mais duas patentes nos Estados Unidos para sua versão sintética (COMP360) da psilocibina de cogumelos “mágicos” usada no tratamento de formas graves de depressão. A companhia já detinha uma patente, fonte do temor de que ela venha dificultar aplicações semelhantes do psicoativo dos fungos Psilocybe.

Psilocybe mexicana, cogumelo psicodélico (Creative Commons)

Essa forma de enquadrar o renascimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização farmacológica dos distúrbios mentais. Todo e qualquer transtorno, visto dessa perspectiva, decorreria de falta ou excesso de substâncias no cérebro, como o neurotransmissor serotonina (não por acaso um dos mais afetados pelos psicodélicos clássicos como psilocibina, LSD, mescalina e DMT).

Tratar esses transtornos, então, seria questão apenas de interferir na bioquímica cerebral desbalanceada. Há defensores até de que se usem microdoses ou compostos sintéticos que atuem sobre os mesmos receptores neuronais mas não desencadeiem efeito psicodélico completo, pondo em dúvida o papel terapêutico de alucinações, distorções na percepção de tempo e espaço, experiências místicas e a chamada dissolução do ego.

Um representante destacado dessa corrente mais reducionista é David E. Olson, da Universidade da Califórnia em Davis. Ele fundou a empresa Delix Therapeutics, que tem por lema “Reconectar o Cérebro para Curar a Mente” e se propõe a “aplicar as ferramentas do desenvolvimento farmacêutico a algumas das terapias mais antigas da natureza, os psicodélicos”.

Olson assina o editorial de um número inteiramente dedicado a psicodélicos do periódico ACS Pharmacology & Translational Science, da Sociedade Americana de Química. O título é “A Promessa da Ciência Psicodélica”. A edição especial promete “expor a incrível gama de pesquisas sendo feitas para elucidar como os psicodélicos impactam a função cerebral –estudos que abrangem os níveis molecular, celular e organísmico”.

Há uma outra vertente de pesquisa que, mesmo não abrindo mão das ferramentas analíticas da biomedicina contemporânea, tampouco desdenha do saber acumulado por xamãs, psiconautas, terapeutas pré- ou pós-proibicionistas e condutores de testes clínicos de psicoterapia assistida por psicodélicos. Mais especificamente, gente que respeita a importância do set (disposição ou propósito mental) e do setting (situação em que se dá a viagem) para o eventual resultado terapêutico.

Não se trata de engolir uma pílula e esperar o resultado do feitiço bioquímico sobre os neurônios. Nos estudos experimentais mais próximos de obter aprovação de reguladores com a força da FDA (agência americana de fármacos), como no caso de MDMA para estresse pós-traumático, os participantes se submetem a várias sessões de terapia e só em algumas delas ingerem alguma droga enteogênica ou empatogênica.

Por trás da técnica está a noção de que a viagem empreendida sob efeito do composto psicoativo, algumas vezes de caráter místico, tem ela própria valor curativo. Além disso, esses candidatos a remédios –ainda são substâncias ilegais, cabe lembrar –ajudam a derrubar barreiras que impedem acesso a memórias e pensamentos, contribuindo para a psicoterapia propriamente dita nas sessões subsequentes de integração.

Ilustração de Speedy McVroom (Pixabay)

Numa palavra, em jogo está o autoconhecimento, não uma intervenção misteriosa operada pelas moléculas no tecido cerebral, à revelia da consciência. A própria tentativa em curso de capturar esse processo na moldura da prática clínica encontra seus críticos, que a classificam no mesmo processo de medicalização a fomentar a expectativa de curas milagrosas.

Tal é o alerta de Jonathan Dickinson e Dimitri Mugianis no artigo “Por que pesquisadores de saúde mental estudam psicodélicos de maneira inteiramente errada” na Salon: “O uso médico de drogas psicodélicas é retratado na mídia como uma bênção para profissionais de saúde mental, com relatos de resultados aparentemente miraculosos para tratar algumas das questões de saúde mental mais significativas que nossa época enfrenta”.

“Embora aplaudamos os esforços que estão em andamento para a descriminalização e estejamos entusiasmados com o potencial de aprendizado com a fortuna de praticantes tradicionais e clandestinos, muita coisa se perderá no processo de medicalização.” (Agradeço a Stevens Rehen pela indicação desse texto provocador.)

Com efeito, existe um tipo de purismo ou puritanismo farmacológico para o qual seria melhor livrar-se da bagagem contracultural, alternativa ou mística, das práticas subterrâneas e do que chamam pejorativamente de uso recreativo. Mas foi isso tudo que manteve os psicodélicos vivos mesmo sob o obscurantismo da Guerra às Drogas declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971.

À luz dessa história, revela-se falso o dilema entre ciência contemporânea objetiva e técnicas de autoconhecimento há muito praticadas. O vigor do campo psicodélico vem do hibridismo, da fertilização cruzada entre as duas formas de investigação da psique (para escapar da dicotomia entre mente e cérebro) que sempre produziram frutos maravilhosos –e tanto mais quando caminham juntas, como pretendo defender neste curso:

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Startup levanta R$ 123 mi para explorar veneno de sapo contra depressão https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/14/startup-levanta-r-123-mi-para-explorar-veneno-de-sapo-contra-depressao/#respond Thu, 14 Jan 2021 10:05:29 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bufo-alvarius-CC-HolgerKrisp-300x208.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Numa segunda rodada com investidores, a startup Beckley PsyTech obteve £ 14 milhões (R$ 101 milhões) para realizar testes clínicos com a substância psicodélica 5-metoxi-DMT (5-MeO-DMT). O recurso se soma a £ 3 milhões (R$ 22 milhões) angariados em junho pela empresa do Reino Unido, surgida há cinco anos com pedigree dourado.

À frente da companhia de olho no veneno de sapo, como é conhecida a 5-MeO-DMT, está Cosmo Feilding Mellen, 35. Apesar da pouca idade, o rapaz tem larga experiência com psicodélicos –drogas que, como ele próprio diz, são usadas algumas há milhares de anos, ainda que seu plano de negócios não preveja compensações para povos tradicionais que as legaram para a ciência contemporânea.

A 5-MeO-DMT está presente na secreção das glândulas do sapo-do-rio-colorado, Bufo alvarius ou Incilius alvarius. Aspirar o vapor da droga, que é ilegal na maioria dos países, produz uma curta e radical viagem, muitas vezes descrita como uma sensação de morte. Após a experiência com 5-MeO-DMT, decaem indicadores de depressão, ansiedade e estresse, resultado que se mantém quatro semanas depois, de acordo com estudo recente.

Cosmo é filho de Amanda Feilding, criadora da Beckley Foundation, uma espécie de ONG que há 22 anos incentiva e financia projetos de ciência psicodélica e de reforma de políticas públicas sobre drogas. A condessa aparece como coautora de vários estudos que patrocinou no chamado renascimento psicodélico, mas agora decidiu que precisa de lucros para a empreitada de transformar esses compostos em remédios convencionais licenciados.

Cosmo Feildiong Mellen e Amanda Feilding, nos jardins de Beckley Park, nos arredores de Oxford, Reino Unido (Divulgação Beckley PsyTech)

“Minha mãe criou a Beckley Foundation em 1998. Sempre estive pesadamente envolvido com o tema da ciência psicodélica, cercado por esse tema, essa paixão”, conta Cosmo. “Tive a felicidade de crescer na companhia de figuras como Sasha Shulgin e Rick Doblin. Fui voluntário em vários testes no Imperial College, por exemplo para tomada de imagens do cérebro sob psilocibina.”

Alexander “Sasha” Shulgin é figura lendária no panteão psicodélico. Autor de livros como “Pihkal – Uma história de amor químico” e “Tihkal – A Continuação”, ambos com a mulher Ann, Shulgin sintetizou e experimentou com amigos dezenas de compostos psicodélicos, tema das duas obras. O farmacologista, apontado como redescobridor do ecstasy (MDMA), morreu em 2014.

Rick Doblin está à frente da iniciativa mais avançada para sacramentar um psicodélico como medicamento, o próprio MDMA de Shulgin. O ex-hippie e objetor de consciência que temia ser convocado para a guerra do Vietnã escolheu para o teste de fogo um composto que não engendra visões (razão pela qual o ecstasy não é considerado um psicodélico clássico) e uma condição típica de veteranos militares, o transtorno de estresse pós-traumático, numa estratégia esperta para vencer as resistências a psicodélicos.

Cinco anos atrás, com o crescimento do interesse de investidores na indústria de cânabis medicinal e psicodélicos, Amanda e Cosmo se lançaram a criar um braço da Beckley com fins lucrativos para continuar o trabalho da família, a fim de aumentar a escala e a ambição do que Amanda tentava fazer há cinco décadas.

“Basicamente, [queremos] aproveitar a oportunidade de nos tornarmos um farol, uma empresa ética fazendo coisas realmente boas”, afirma o CEO da PsyTech. “O objetivo é desenvolver psicodélicos como uma nova classe de medicamentos neuropsiquiátricos e tratar dessa necessidade de saúde [transtornos mentais como depressão] que rapidamente está se tornando o maior peso sobre o mundo.”

Mãe e filho não brincam em serviço. Buscaram na Johnson & Johnson duas pessoas experimentadas no desenvolvimento e autorização de fármacos: Steve Wooding (diretor científico da nova companhia) e Fiona Dunbar (assessora-chefe de medicina).

Como consultores, Cosmo e Amanda alistaram duas celebridades da nova neurociência: Robin Carhart-Harris, do Imperial College, e Matt Johnson, da Universidade Johns Hopkins. Não por acaso, as duas instituições acadêmicas foram pioneiras na abertura de centros de pesquisa psicodélica, elas mesmas envolvidas em ensaios clínicos com a psilocibina dos “cogumelos mágicos” para tratar vários transtornos mentais.

Segundo Cosmo, esse time analisou várias possibilidades de inovação, diante do que outros grupos estão investigando, e se fixou na 5-MeO-DMT como candidata a antidepressivo. A principal vantagem do composto batráquio é induzir uma alteração da consciência que dura uma hora ou menos, o que diminuiria de modo acentuado os custos da psicoterapia assistida por psicodélicos como LSD e psilocibina, que na configuração atual exigem acompanhamento de uma dupla de terapeutas por longos períodos.

“Dois terapeutas sentados com o paciente por 6-8 horas é uma alocação de recursos enorme para o paciente, vai ser difícil de disseminar e sairá caro, também”, pondera Cosmo. “O que sabemos sobre 5-MeO-DMT é que induz confiavelmente o tipo de experiência de dissolução do ego sabidamente correlacionada com resultados positivos de tratamento, mas com duração do efeito da droga abaixo de uma hora.”

O CEO não cogita patentear 5-MeO-DMT. A propriedade intelectual faz parte de seu modelo de negócios, mas essas drogas são substâncias conhecidas, algumas usadas há milhares de anos e sobre as quais muitas pessoas já escreveram –não são patenteáveis.

“Não é o mesmo que um desenvolvimento farmacêutico clássico. Haverá propriedade intelectual na criação de novos e inventivos passos de tratamento médico, na formulação, na aplicação, no modelo terapêutico.”

Cosmo não prevê, entretanto, compensação para povos tradicionais que preservaram o conhecimento sobre essas substâncias, uma das preocupações entre estudiosos do fenômeno cultural psicodélico. A PsyTech dedica uma parte da receita para a parceira estratégica Beckley Foundation, que não tem fins lucrativos: “Eles estão envolvidos em muitas atividades filantrópicas, de pesquisa a políticas públicas. É aí que focalizamos nossa responsabilidade social”, justifica.

O sigilo comercial impede no momento divulgar quais equipes conduzirão os testes clínicos de fase 1 e 2 (segurança, dosagem e evidência inicial de eficácia) com o veneno de sapo. A empresa só confirma que os ensaios serão realizados no Reino Unido tanto por parceiros acadêmicos quanto empresariais.

A Beckley Foundation lista pesquisadores brasileiros entre seus colaboradores, como os que atuam no Instituto do Cérebro da UFRN, no Institudo D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), na UFRJ e na Unicamp. Cosmo, que também tem alguma ligação com o Brasil –foi o diretor da versão para língua inglesa do documentário de Fernando Grostein Andrade “Quebrando o Tabu” (2012), sobre política de drogas– diz que a empresa Beckley PsyTech não tem planos concretos de parcerias por aqui.

Cosmo Feilding-Mellen, CEO da empresa Beckley PsyTech (Divulgação Beckley PsyTech)

Além do veneno de sapo, a empresa investe num programa de desenvolvimento de fármacos, novas entidades químicas baseadas no que se sabe sobre os psicodélicos existentes. A proposta é alterar as moléculas de maneira a melhorar os resultados clínicos ou a segurança.

Pergunto se a ideia seria retirar delas o efeito psicodélico propriamente dito, o que se chama de dissolução do ego ou experiência mística. Cosmo: “Não. Certamente não apenas nessa direção, de todo modo. Eu acredito que a experiência subjetiva é uma parte importante da eficácia do tratamento. Mas será interessante ver o que virá da ciência, de outras escolas de pensamento”.

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Psiconautas temem explosão de interesse do mercado por drogas ilícitas https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/11/01/psiconautas-temem-explosao-de-interesse-do-mercado-por-drogas-ilicitas/#respond Sun, 01 Nov 2020 18:19:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/CidadePsicodelicaGordonJo0hnson-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=61  

As drogas psicodélicas –LSD, ecstasy, cogumelos “mágicos”– caíram em desgraça com a voga proibicionista dos anos 1970/80, quando conservadores reagiram em pânico diante da contracultura. Agora são os herdeiros dos hippies a temer, em face da voracidade capitalista que ameaça neutralizar seu apelo libertário.

“Herdeiros dos hippies” pode soar pejorativo para os que se dedicam ao assunto intelectualmente; melhor falar em “psiconautas”. A área de estudos ficou pelo menos duas décadas submersa, mas vive um renascimento com a proliferação de estudos clínicos sobre benefícios para a saúde mental –que já atraem a atenção de investidores.

Quatro psiconautas renascentistas do Brasil participaram de um debate sobre o tema na quinta-feira (29): a antropóloga Bia Labate, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli e os psicólogos Bruno Gomes e Fernando Beserra. Promovida pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd), a discussão ofereceu boa amostra das preocupações que afligem quem não caiu de paraquedas nesse campo.

Bia fala de um ponto de vista privilegiado, desde a Califórnia, onde lidera o Instituto Chacruna, especializado em plantas medicinais como as que entram no chá ayahuasca. Ela disse no encontro virtual que o último ano assistiu a uma explosão em torno dos psicodélicos, nos EUA, na esteira da legalização da maconha medicinal e recreativa em vários estados.

Ela apontou duas vertentes para o que chamou de “verdadeiro Eldorado”. Primeiro, o avanço de testes clínicos com MDMA (ecstasy) para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e com a psilocibina dos cogumelos Psilocybe para depressão. Ambas as substâncias estão em via acelerada para obter autorização da FDA, agência americana de fármacos, o que a antropóloga previu para 2022 ou 2023.

A outra vertente se manifestou na descriminalização da psilocibina em quatro cidades americanas vanguardistas (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor). O movimento se encorpa agora com plebiscitos que vão na mesma direção, na próxima terça-feira (3), em Oregon e Washington DC (além de cinco outros estados que podem somar-se aos 30 em que o uso medicinal ou recreativo da maconha se tornou legal).

Multiplicam-se as conferências virtuais, documentários, manifestações de celebridades, lançamentos de empresas, cursos de capacitação, organizações não governamentais, assinalou Bia.

“Uma espiral sufocante. Os pesquisadores vão também precisar fazer tratamento para ansiedade”, brincou. E emendou, a sério: “É outro mundo, não o dos hippies. O cara que fez fortuna com cânabis medicinal agora vai investir em psilocibina para depressão”.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Em setembro a empresa londrina Compass Pathways, fundada há apenas quatro anos, abriu oferta de capital na bolsa de Nova York e viu seu valor de mercado saltar US$ 544 milhões. Dona de controvertida patente para uma versão sintética cristalizada da psilocibina, COMP360, lidera um dos estudos para seu uso como adjuvante de psicoterapia para depressão.

Tófoli, da Unicamp, concordou com a ideia de uma “invasão do capitalismo predatório”, segundo sua descrição, mas alertou que ainda não há comprovação completa do efeito terapêutico dos psicodélicos. Falta cumprir a etapa científica dos ensaios clínicos de fase 3 e vencer os obstáculos regulatórios para, aí sim, tentar derrubar os preconceitos que ainda sobrevivem na classe médica.

O psiquiatra antecipa que empresários possam ter dificuldade com o componente alterador da consciência dos psicodélicos, fonte do revide reacionário de décadas atrás, e que na sua opinião faz parte do pacote terapêutico. Nos EUA e no Brasil, a atmosfera não ajuda: “É romântico pensar que substâncias proscritas possam curar pessoas neste mundo doente.”

Tome-se o caso da microdosagem, que ganhou fama não como cura, mas capacitação, melhoramento. No Vale do Silício ou em Wall Street, recorre-se a doses subclínicas periódicas de psilocibina ou LSD (ou seja, incapazes de produzir efeito psicodélico) em busca de maior produtividade e criatividade. Fazer dinheiro, não viagens.

O psicólogo Fernando Beserra, um dos fundadores da Associação Psicodélica do Brasil, há cinco anos, reivindicou no debate que se retome a tradição política dessas substâncias, que corre o risco de diluir-se no seu enquadramento médico e comercial. “Será que a microdosagem tem de ser só produtivista, ou há um potencial transformador, [na linha] da contracultura?”

Beserra se preocupa com o futuro acesso a essas drogas, se e quando ficar provado seu sucesso clínico, diante das patentes e da investida empresarial. “Como vai chegar no Terceiro Mundo, no Brasil, ainda mais sob Bolsonaro? O debate político é para hoje, para agora, para poder sonhar um dia com outros cenários, outros caminhos.”

Nessa altura da discussão virtual, transcorrida quase uma hora, havia 84 pessoas assistindo. Uma delas escreveu na área de comentários: #PsicodélicosNoSUS.

O psicólogo Bruno Gomes, que mediava o debate, falou de outra explosão, a das culturas da ayahuasca no Brasil, que não se encontra mais restrita às religiões organizadas como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ocorreu uma popularização, uma capilarização, disse ele, com vários grupos a se multiplicar, religiosos ou não.

Mencionou também uma subcultura da ibogaína, composto psicodélico extraído de uma planta africana (Tabernanthe iboga). Apesar do risco de disfunção cardíaca, tem sido usada como terapia alternativa para dependência química. “Um mercado está se formando.”

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Nem sob efeito de psicodélicos é fácil imaginar que um dia eles cheguem ao SUS, num momento em que até seu exemplar Programa Nacional de Imunização enfrenta a ameaça da polarização ideológica –bem no meio de uma pandemia, e por causa de vacinas que ainda nem existem. Mas os cisnes negros existem, como prova o que acontece com a MDMA (base do ecstasy) e o TEPT nos Estados Unidos.

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês) está perto de conquistar a regulamentação do emprego da MDMA em psicoterapia para estresse pós-traumático, e conta para isso com a simpatia de militares e policiais (veja abaixo vídeo com depoimento do veterano Nick Blackston sobre sua recuperação, em inglês). Eles formam provavelmente o maior contingente dos 11,6 milhões de americanos que padecem desse transtorno.

A Maps publicou em 14 de outubro na revista científica PLoS One artigo animador sobre a economia que essa terapia para veteranos poderia trazer, na comparação com as opções terapêuticas disponíveis hoje (ineficazes para cerca de metade dos portadores). Só com hospitalizações por TEPT os EUA despendem a cada ano estimados US$ 4,4 bilhões.

O tratamento de um americano com o transtorno pode chegar a US$ 20 mil anuais. Recorrendo à psicoterapia com MDMA, gastam-se US$ 7.500 (90% disso para remunerar os terapeutas).

Tomando por base a melhora obtida por 74 participantes em seis estudos clínicos controlados randomizados de fase 2 realizados nos últimos anos, a Maps calculou que cada grupo de mil pacientes assim tratados permitiria a economia de US$ 103 milhões –em valores de hoje, já descontados– ao longo de 30 anos.

Essa linguagem os capitalistas dos planos de saúde entenderiam, assim como, talvez, os bons administradores remanescentes no Sistema Único de Saúde. E não faltam portadores de estresse pós-traumático no Brasil, com suas taxas vergonhosas de homicídios e letalidade policial, os cadáveres da fracassada guerra às drogas; se for a mesma proporção dos EUA, 3,5% da população, seriam mais de 7 milhões de brasileiros.

Louco, mesmo, talvez se mostre NÃO pensar em #PsicodélicosNoSUS.

 

 

 

 

 

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