Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Estudo na Unicamp indica janela psicoterapêutica aberta pelo LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/estudo-na-unicamp-indica-janela-psicoterapeutica-aberta-pelo-lsd/#respond Mon, 01 Nov 2021 21:50:56 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/LuciaKochInhotim-287x215.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=727 Nova pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas pôs mais uma pedra no edifício em reconstrução da ciência psicodélica: se o LSD for usado como adjuvante de psicoterapia, o momento propício para a chamada terapia psicolítica provavelmente recairia quatro horas após a ingestão da substância.

“Baixa Dose de LSD e Corrente do Pensamento: Descontinuidade Aumentada da Mente, Pensamento Profundo e Fluxo Abstrato”, diz o título do segundo artigo publicado pelo grupo de Luís Fernando Tófoli. O trabalho saiu no periódico Psychopharmacology, tendo como primeira autora a alemã Isabel Wießner, orientanda de doutorado de Tófoli, e colaboradores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

O primeiro estudo dos autores havia sido publicado em julho, como noticiou o blog. Ambos os trabalhos tomam por base observações com 24 voluntários saudáveis que participaram de duas sessões experimentais.

Num dos encontros, a pessoa tomava 50 microgramas de LSD, e, no outro, um placebo, mas sem saber em qual deles tomava o quê. Wießner e o psiquiatra Marcelo Falchi, presentes na sala com os participantes por cerca de dez horas, tampouco sabiam.

Durante esse tempo, os voluntários respondiam a perguntas verbais, marcavam em escalas a intensidade das alterações mentais experimentadas e realizam testes num computador. Neste segundo artigo, a equipe deu destaque para alterações no fluxo de pensamento ao longo do tempo, algo ainda pouco conhecido no efeito lisérgico.

É bom mencionar que o LSD só foi proibido para usos não científicos na década de 1970. Antes disso, distribuído pelo laboratório suíço Sandoz com a marca Delysid, teve largo emprego em consultórios e estudos para tratar transtornos mentais e dependência de álcool, mas não com as metodologias e os controles rigorosos hoje usuais em pesquisa biomédica. Com a proibição e a demonização, o psicodélico quase desapareceu da pesquisa científica.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

No desenho da investigação liderada pela Unicamp, o controle residiu na comparação entre os efeitos medidos nos dias de ácido com os do dia de placebo. É o método conhecido como “cross-over”.

Num dos testes, o voluntário tinha de encadear a cada duas horas uma lista de palavras que lhe viessem à cabeça sob estímulo de um vocábulo-semente de três tipos (animais, objetos e palavras abstratas). Posteriormente, o time usou medidas de distância semântica para caracterizar o fluxo de pensamento –por exemplo, a separação entre “gado” e “vaca” é menor do que entre “gado” e “jornada”.

Para mensurar a divagação mental (“mind wandering”), empregou-se o Questionário Amsterdã de Estado de Repouso (ARSQ, na sigla em inglês). São 55 questões, por exemplo sobre descontinuidade da mente, planejamento, sonolência, conforto, percepção do corpo, preocupação com saúde e pensamento visual ou verbal que o participante tinha de responder no computador logo após passar cinco minutos de olhos fechados. Cada item solicitava que a pessoa indicasse seu grau de concordância/discordância numa escala de cinco pontos.

Resumindo muito a profusão de dados, o grupo constatou que o LSD, comparado com placebo,     acentuou aspectos caóticos, significativos e sensoriais do pensamento, como seria de esperar. Quanto ao fluxo da mente, curiosamente, as distâncias semânticas foram maiores quando as sementes eram palavras abstratas, mais que animais ou objetos.

Observaram-se também diferenças temporais. No pico inicial da experiência lisérgica, mesmo com a dose baixa de 50 mcg (1/5 a 1/4 de uma dose psicodélica plena), o caos dificultava até a comunicação e aumentava a arbitrariedade aparente das respostas aos testes.

 

Por volta das quatro horas de experimento, porém, a entropia mental causada pela LSD arrefecia e passava do polo caótico para um estado caracterizado por um fluxo mais livre nas associações, criativas e flexíveis. O oposto do fluxo disfuncional de pensamento caraterizado pela rigidez e fixação de certos transtornos mentais, como a ruminação presente em casos graves de depressão.

Eis o que os autores, tentativamente, apontaram como possível janela terapêutica. “A principal conclusão seria que vários elementos dos resultados (aumento de significado, fluxo abstrato) indicam que uma tal janela após quatro horas parece juntar vários efeitos interessantes com potencial terapêutico nessa dose relativamente baixa”, diz Wießner.

“Porém, nosso estudo avaliou participantes saudáveis, então outros estudos com pacientes serão necessários para dizer algo mais concreto em termos de benefícios terapêuticos durante essa janela.”

A pesquisadora se diz surpresa com o fluxo mais livre de pensamento estimulado por palavras abstratas. “Uma potencial interpretação é que palavras abstratas estimulam um pensamento amplo, em termos de distâncias semânticas, mais viagens mentais e na linguagem”, especula Wießner.

Uma interpretação alternativa seria que termos abstratos são mais difíceis de processar no cérebro, se comparados com animais e objetos, que evocariam processos mais automáticos. “Essa segunda interpretação iria na linha da redução de controle frontal: pode ser que o cérebro não consiga controlar suficientemente os processos cognitivos, e, assim, quando chegam estímulos mais difíceis, essa perda de controle se reflete num ‘caos’ de distâncias semânticas aumentadas na cadeia de palavras.”

A continuidade natural do estudo, propõe a pesquisadora alemã, seria investigar o potencial do LSD para quebrar esses padrões de fluxos de pensamento disfuncionais em pacientes ou demonstrar e ensinar outros fluxos possíveis, por exemplo mais orientados a coisas que ganharam um significado especial durante o estado lisérgico.

Isso, evidentemente, se um dia o LSD –que não causa overdose nem dependência– for um dia retirado da lista de substâncias proibidas em que foi parar como bode expiatório da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1970. Até lá, a janela terapêutica que ele e outros psicodélicos banidos podem abrir continuará fechada.

Tófoli, o autor sênior da pesquisa, chama a atenção para o fato de “o LSD ser proposto hoje em dia menos como molécula terapêutica e mais como ferramenta para caracterizar o efeito subjetivo”. Isso porque com outros psicodélicos, como a psilocibina (cogumelos) e a dimetiltriptamina (DMT), o efeito tem duração mais curta.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)

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Experimento brasileiro mapeia curas e loucuras na terra incógnita do LSD https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/07/12/experimento-brasileiro-mapeia-curas-e-loucuras-na-terra-incognita-do-lsd/#respond Tue, 13 Jul 2021 02:15:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/BISPOROSARIOfolhapressRicardoBorges-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Quem já tomou LSD conhece bem a mistura de clareza e perturbação mental induzida pela droga psicodélica. Graças a um grupo brasileiro de pesquisa com epicentro na Unicamp o mapa desse paradoxo ganha mais detalhes, contribuindo para esclarecer como uma experiência que tem algo de psicótica pode também ser terapêutica.

O trabalho, obtido com exclusividade pelo blog, sai publicado nesta terça-feira (13) no periódico Psychological Medicine sob o título “LSD, Loucura e Cura: Experiências Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutico”. É o primeiro estudo no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, quando se interromperam pesquisas feitas por exemplo na USP.

Participaram do experimento de Isabel Wießner, psicóloga alemã que faz doutorado na universidade paulista, 24 adultos com contato anterior com a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na abreviação original do alemão). O orientador de Isabel na Unicamp, psiquiatra Luís Fernando Tófoli, figura como autor sênior do artigo.

Cada pessoa tomou 50 microgramas da droga numa sessão e placebo na outra, separadas por 14 dias, sem saber em qual delas ingeriu o quê. Ao longo de oito horas, fazia testes e preenchia questionários na presença da psicóloga e de um psiquiatra, Marcelo Falchi, que também desconheciam qual substância o participante havia ingerido. No dia seguinte de cada sessão, mais uma bateria com duas horas de testes.

Os outros autores são Fernanda Palhano-Fontes e Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Amanda Feilding, da Fundação Beckley (Reino Unido), uma condessa britânica que ajudou a financiar o estudo.

A ferramenta para destrinchar o componente loucura do LSD foi um questionário que mede saliência aberrante, a tendência a destacar e emprestar sentido especial a objetos e pensamentos que normalmente não receberiam a mesma atenção. É o que psiquiatras chamam de atribuição patológica de significado, uma distorção cognitiva que a viagem psicodélica compartilha com estágios iniciais de psicose.

Mesmo trabalhando com uma dose baixa de LSD, chamada de “psicolítica” nos tempos pré-proibição (décadas de 1950/60) em que a droga era empregada em psicoterapia, o experimento confirmou aumento da saliência aberrante na comparação com o dia de placebo. O questionário se compõe de perguntas sobre a pessoa ter experimentado emoções agudas relacionadas com coisas ou ideias, ou a sensação de que algo importante está para acontecer, a iminência de compreender significados elusivos.

(Ilustração: Rodrigo Visca)

Outros testes também indicaram as alterações lisérgicas da percepção características do estado psicodélico, sobretudo visuais. Esta é uma diferença marcante com as alucinações de esquizofrênicos crônicos, em que predomina o sentido da audição (“ouvir vozes”) e a convicção de que se trata de manifestação real, engendrando o que se chama de ideia delirante.

“Os pesquisadores viram que, de fato, nos voluntários o LSD foi capaz de provocar uma diferença nas respostas, na escala de saliência aberrante, quando comparado ao placebo. Tal observação pode contribuir para explicar o mecanismo pelo qual pessoas com depressão ou sintomas de traumas passados mudaram suas crenças e atitudes após experiência pontuais ou repetidas de psicodélicos”, diz André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Negrão não participou do estudo, mas integrou a banca de qualificação de Isabel para o doutorado. Em sua avaliação, “o artigo é mais um atestado da produtividade e da sofisticação dos estudos feitos por pesquisadores dos dois centros, Unicamp e Natal.”

O componente terapêutico foi escrutinado no estudo por meio do conceito de sugestionabilidade. De olhos fechados, o participante era convidado a imaginar tão fielmente quanto conseguisse situações como o peso de livros empilhados sobre uma das mãos, ou o cheiro e sabor de uma fruta, e depois avaliava quão realista havia sido a sensação.

Como seria de esperar, as diferenças entre o estado alterado e o estado placebo foram estatisticamente significativas. Esse fenômeno pode ser útil em psicoterapia porque facilitaria a superação de barreiras, na medida em que o paciente se mostra mais inclinado a acatar sugestões para se aprofundar em cenas, pessoas ou temas marcantes ou dolorosos de sua biografia, por exemplo buscando imagens que possam representar os sentimentos associados.

“A sugestão é um processo fundamental na hipnoterapia, em que o paciente entra em estado de transe e consegue experimentar de modo mais fácil e vívido o que o terapeuta sugere, por exemplo visualizar uma relação difícil com a mãe, criar um símbolo para concretizar essa relação e trabalhar com esse símbolo”, exemplifica Isabel, que pesquisou hipnose para tratamento de dor em seu mestrado na Universidade de Jena.

Ela queria investigar outros estados alterados de consciência desencadeados por substâncias com potencial curativo, mas psicodélicos são proibidos na Alemanha. Depois de fazer um curso com Tófoli sobre ayahuasca, chá psicoativo legalizado no Brasil para uso religioso, decidiu-se por um doutorado na Unicamp.

A pesquisadora buscou também possíveis correlações entre a intensidade da experiência psicodélica (como distorções nos sentidos de tempo e espaço) e os resultados obtidos com as diferentes escalas empregadas no estudo, incluindo as que medem aspectos “místicos” (dissolução do ego, sentimento de unidade com uma totalidade maior que o indivíduo, ou o que algumas descrevem como participação no divino). Cabe aqui lembrar o óbvio: correlação não implica causalidade, mas pode ser uma pista.

Encontraram-se correlações fortes entre o grau relatado do estado psicodélico e saliência aberrante, mas não com sugestionabilidade. Ou seja, embora a capacidade de sugestionar-se tenha aumentado, assim como no caso da saliência (a medida mais associada com o caráter subjetivo “místico”), os dois incrementos não ocorreram necessária e proporcionalmente nos mesmos indivíduos, nem se detectou paralelismo estatístico significativo no grupo.

“O fato de experiências místicas terem importância em diversas áreas, da ‘loucura’ (experiências psicóticas) até a ‘cura’ (efeito terapêutico) indica que essas experiências possivelmente têm papel importante na saúde mental”, conjetura Isabel. Com efeito, a correlação entre o nível de qualidade “mística” na viagem psicodélica e o benefício terapêutico foi apresentada num trabalho célebre de Roland Griffiths em 2006.

“Um candidato ou candidata a terapeuta psicodélico deveria estar ciente de que os psicodélicos parecem ser capazes de induzir os dois lados (‘cura’ e ‘locura’) que parecem ter uma faceta de experiência mística em comum, estar preparado para ajudar o paciente a aceitar os dois lados e tentar promover e guiar a conexão entre esses dois aspectos para entender e melhorar a saúde mental.”

Para Tófoli, “a ideia não é criar uma ‘psicose artificial’ para estudar a esquizofrenia (que apresenta muitos outros sintomas além daqueles apresentados pelo LSD), e sim estudar um estado ‘caótico’, de aumento de entropia, que tem algumas semelhanças com a psicose”. Produzir uma psicose artificial em ambiente controlado  era o objetivo de pesquisadores como Clóvis Martins, cuja tese de livre docência na USP em 1964 se enquadrava no chamado paradigma “psicotomimético”.

“No nosso caso, estamos chamando a atenção da correlação da saliência aberrante com experiências que estão associadas com respostas a sintomas mentais, especificamente no caso das experiências místicas.”

O psiquiatra chama atenção para a necessidade de, no eventual uso do LSD para psicoterapia, dedicar atenção crucial para a dose, a cautela do terapeuta ao manejar a sugestionabilidade, a disposição mental do paciente (set) e as condições em que a sessão de dosagem acontecer (setting): ao invés de patologizar o que os psicodélicos provocam, propõe-se que o estado de entropia aumentado pode, desde que em set e setting adequados, desencadear experiências potencialmente positivas.

“Estar atento ao que se sugere em um futuro uso terapêutico de doses psicolíticas de LSD é muito importante, assim como acolher eventuais experiências místicas e de atribuição especial de significados –por vezes, inclusive, precisando ancorar alguma ‘viagem exagerada’ do paciente, principalmente em sessões de integração.”

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Tófoli lembra que uma das indicações do Delysid (nome comercial do LSD distribuído pelo laboratório suíço Sandoz até os anos 1960) era justamente indicá-lo para que psiquiatras e terapeutas o tomassem para entender melhor os estados psicóticos.

“Embora pouco discutida atualmente, eu considero essa indicação extremamente válida, desde que os profissionais em questão não estejam em grupos de risco, ou seja, não tenham tendências ou histórico de psicose. Pessoalmente, a experiência com psicodélicos certamente me abriu os olhos para entender melhor e desenvolver maior empatia pelo que passam os pacientes psicóticos.”

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Este blog está precisando de férias. Volta sem falta em agosto.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)

 

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Em busca de uma Clarice Lispector no vacilante renascimento do LSD no Brasil https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/em-busca-de-uma-clarice-lispector-no-vacilante-renascimento-do-lsd-no-brasil/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/em-busca-de-uma-clarice-lispector-no-vacilante-renascimento-do-lsd-no-brasil/#respond Mon, 25 Jan 2021 20:04:45 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/ClariceLispector-300x169.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=269 Clarice Lispector, Rita Lee, Maria Alice “Tapa na Pantera” Vergueiro. Paulo Mendes Campos, Fauzi Arap, Antonio Peticov, Luiz Carlos Maciel, Jorge Mautner… Talvez o leitor não saiba, mas há um denominador comum nesse grupo, além da fulguração nos anos 1960/70: LSD.

A dietilamida do ácido lisérgico, significado em alemão das três letras célebres, era fornecida pelo laboratório Sandoz a médicos e pesquisadores, até abril de 1965, quando interrompeu a fabricação do remédio Delysid, caído em desgraça. Um dos experimentadores mais ativos, no Brasil, foi o psiquiatra Murilo Pereira Gomes.

Gomes promovia sessões terapêuticas com a droga no consultório e em casa, das quais participavam alguns dos artistas que iluminaram aqueles anos escuros da ditadura militar. Os detalhes sobre as sessões experimentais de Gomes estão no minucioso trabalho de Júlio Delmanto, “História Social do LSD no Brasil — Os Primeiros Usos Medicinais e o Começo da Repressão”.

Agora disponível em livro (Editora Elefante), a tese de doutorado orientada por Henrique Soares Carneiro, que li para escrever meu “Psiconautas — Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (no prelo pela Editora Fósforo, com lançamento em maio), fala de um tempo em que o LSD não fora ainda demonizado pela histeria conservadora proibicionista. Ao contrário, era uma promessa da medicina, como agora volta a ser.

Cérebro em repouso sob efeito de placebo (esq.) e de LSD (dir.) (Reuters/Imperial College London/ Beckley Foundation)

O relato de Delmanto, apoiado em pesquisa admirável, mostra que o entusiasmo com o ácido precede em muito a consagração pela contracultura. Embora contemporâneo e combustível da geração beat nos EUA e logo no Brasil, lá e cá o LSD virou a cabeça dos psiquiatras.

Nos anos 1950, eles viam no composto criado pelo químico suíço Albert Hoffman duas décadas antes uma oportunidade de tornar a psiquiatria uma disciplina mais experimental, pois acreditavam que ela permitia deslanchar um transtorno psíquico artificial em quem a tomava. Antes de ser conhecida como droga “psicodélica” (reveladora da psique, alma ou mente, como queiram), ela era vista como “psicotomimética” (imitadora de psicose).

O primeiro a publicar algo sobre as virtudes do LSD, segundo levantamento de Delmanto, foi Eustachio Portella Nunes Filho, do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (depois UFRJ), em 1954. Em São Paulo, ainda nos anos 1950, Clóvis Martins administrou LSD a dezenas de pacientes do Instituto de Psiquiatria da USP, tema de sua tese de livre docência em 1964.

Mais ou menos na mesma época, o ácido caía nas graças de poetas e escritores como Roberto Piva, Claudio Willer e Raul Fiker, na esteira dos beatniks americanos Allen Ginsberg e Ken “Um Estranho no Ninho” Kesey. Foram os precursores da contracultura no Brasil, por assim dizer, popularizada de 1969 a 1972 pela coluna “Underground”, de Luiz Carlos Maciel, no saudoso jornal alternativo Pasquim.

Kesey e Ginsberg, ainda nos anos 1950, haviam sido apresentados ao LSD por um projeto da agência americana de espionagem americana CIA, batizado MK-Ultra, voltado a descobrir um “soro da verdade” ou meios de fazer “lavagens cerebrais”. Deu no que deu, inclusive numa morte trágica, como retratado na série da Netflix “Wormwood”. Semearam vento e colheram as tempestades beat e, em seguida, hippie.

Peter Sarsgaard em cena de “Wormwood”, de Errol Morris (Divulgação)

A vertente brasileira dessa revolução nos costumes e nas mentalidades, da qual somos todos herdeiros, está bem documentada em “História Social do LSD”. O livro de Delmanto também aborda a saga lisérgica americana, mas quem quiser se aprofundar deve ler “American Trip — Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana — Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20), de Ido Hartogsohn (MIT Press).

Já tratei dessa obra aqui, pois me impressionou a extensão, para toda a cultura, da ideia de que a disposição mental e o ambiente em que ocorre o uso de psicodélicos são determinantes para a qualidade e o significado da viagem.

O paradigma psicotomimético e projetos paranoicos como o MK-Ultra da Cia fazem muito mais sentido à luz –melhor dizendo, nas trevas– da Guerra Fria, do terror atômico e do vazio existencial do American Way of Life numa sociedade racista e belicista.

O enquadramento mais libertário e psicoterápico do LSD e de drogas rebatizadas psicodélicas, por outro lado, parece inseparável do impulso emancipador do movimento por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã, assim como da antipsiquiatria, do universo beat, do redescoberto potencial da ciência (a Lua!) e da pílula anticoncepcional. Timothy Leary foi seu maior guru.

No Brasil foi um pouco mais complicado. Enquanto a juventude de classe média afluente e majoritária nos EUA empurrava a sociedade para a frente, por aqui a ditadura militar e a pobreza generalizada num país ainda rural fizeram da contracultura um movimento restrito a guetos urbanos. E os “desbundados”, como se dizia, ainda tinham de competir com a esquerda que partiu para a luta armada, numa disputa pelos corações e mentes dos poucos jovens dispostos a se rebelar nos anos de chumbo.

Não sou sociólogo nem historiador social para arriscar muitas conclusões sobre essas diferenças da contracultura brasileira com a americana –ou europeia, de resto, porque às vezes parece que intelectuais brasileiros acabaram mais influenciados pelo Maio de 1968 na França do que pelas marchas em Washington e San Francisco. Se abro a questão aqui é porque gostaria de antever se o renascimento psicodélico iniciado na década de 2010 prenuncia um vetor de emancipação ou se, no atual contexto político-cultural acabrunhante, ele se encaminha para um revertério amargo como o dos anos 1970-80, ao estilo direitista do autointitulado xamã Lobo de Yellowstone.

Jake Angeli, o xamã psicodélico Lobo de Yellowstone que invadiu o capitólio (REUTERS/Stephanie Keith)

Se for para continuar pessimista, basta considerar o advento de Donald Trump, Jair Bolsonaro, redes sociais, fake news e o conservadorismo obscurantista terraplanista negacionista neopentecostalista criacionista antivacinista cloroquinista. A desigualdade nunca foi tão revoltante; a Covid detona a esperança de uma vida melhor, o convívio e a solidariedade; mudanças climáticas pressagiam um desastre planetário do porte da hecatombe nuclear.

A vitória eleitoral de Joe Biden parece ter interrompido o pesadelo trumpiano, a ver. Movimentos como Me-Too e BLM ecoam gritos libertários da década de 1960, apesar de algum pendor autoritário para cancelar e sinalizar virtude, e também sobra um impulso hippie mitigado no vegetarianismo que se alastra entre moços e moças.

Por outro lado, o renascimento psicodélico emerge sob o signo de nova medicalização, esterilizado pela razão científica. Diversa dos anos 1950 psicotomiméticos, sim, mas também expurgada da pulsão iconoclasta dos anos 1960. Testes clínicos controlados randomizados duplo cegos são ótimos para recompor o prestígio farmacológico de drogas como o LSD, mas não deixam de ser uma maneira de domesticá-las.

Nada contra a psicoterapia assistida por psicodélicos em ambientes controlados e sob supervisão de gente capacitada –desde que o modelo emergente não reforce o preconceito contra o uso dito “recreativo” (só quem já enfrentou peias de ayahuasca e psilocibina sabe como esse qualificativo é inadequado). Nada contra a modinha da microdosagem entre traders e nerds –desde que não expulse do arsenal a experiência psicodélica plena, com dissolução do ego e tudo a que temos direito.

Por aqui, além disso e de novo, persiste o temor de que tais ensaios de libertação fiquem restritos à esfera bem-pensante. Bolsonaro consegue, afinal, equilibrar-se apoiado no Centrão, de um lado, e no Evangelho de Resultados, de outro, com as Forças Armadas e o empresariado sociopata a reboque, no papel de massa atrasada.

Oremos, pois, pela conceição imaculada de um Joe Biden em Pindorama, pois da realidade brasileira nada comparável parece capaz de surgir. E sonhemos, por ora, com nossas futuras Clarices Lispectors.

*

Para quem não acredita em renascimento psicodélico: a revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a PNAS, publica hoje artigo de pesquisadores no Canadá detalhando as vias bioquímicas pelas quais o LSD promove a busca de novidade e o comportamento prossocial de camundongos. Resultados similares já foram colhidos com ratos por neurocientistas brasileiros, estudo sobre o qual a Folha publicou reportagem em 2019.

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Análise de fala psicodélica desfaz parentesco de LSD com esquizofrenia https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/analise-de-fala-psicodelica-desfaz-parentesco-de-lsd-com-esquizofrenia/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/analise-de-fala-psicodelica-desfaz-parentesco-de-lsd-com-esquizofrenia/#respond Fri, 18 Dec 2020 01:13:38 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/GloboDeNeveRobertCouseBaker-269x215.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=182 Uma velha discussão sobre a relação de viagens psicodélicas com psicoses ganhou novas luzes com a análise automatizada do que psiconautas falam depois de tomar LSD. A concepção “psicotomimética” dizia que o efeito da substância imitava sintomas psicóticos, mais especificamente da esquizofrenia, mas não foi bem isso que se encontrou.

Esse paradigma dos anos 1950-60, que associava psicodelia com patologia, está hoje ultrapassado. Uma das razões para isso está no fato de vários estudos realizados já neste século apontarem que psicodélicos clássicos (LSD, DMT, psilocibina), apesar das alucinações e dos visuais que desencadeiam, podem ter benefícios terapêuticos para vários transtornos mentais, como depressão e dependência química.

Hoje em dia se fala mais em aumento de entropia nas redes cerebrais, uma espécie de chacoalhão psicodélico aparentemente capaz de destravar e rearranjar pensamentos rígidos e ideias fixas, como se fossem as partículas de um globo de neve sacudido. O modelo teórico do “cérebro entrópico” é obra do britânico Robin Carhart-Harris, um dos autores do estudo publicado na revista Consciousness and Cognition.

O artigo reuniu pesquisadores da Argentina, Brasil e Reino Unido, sob a batuta do físico Enzo Tagliazucchi, da Universidade de Buenos Aires. Pelo Brasil entraram a psiquiatra Natália Mota e o neurocientista Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da UFRN, e o físico Mauro Copelli, da UFPE.

Os pesquisadores sul-americanos cooperaram, neste caso, com um dos grupos mais avançados no renascimento desse campo, o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres. Lá se realizou a parte experimental do estudo, no grupo de Carhart-Harris e seu mentor, David Nutt.

O título combina bem com o inusitado da experiência e das conclusões — “A Língua Entrópica: Desorganização da Linguagem Natural sob LSD”. Duas dezenas de psiconautas experimentados tomaram injeções intravenosas contendo 75 microgramas de LSD ou de soro fisiológico (placebo), em duas visitas ao centro separadas por duas semanas.

No momento que corresponderia ao auge da viagem para quem tomou LSD, 120 a 150 minutos depois da ingestão, ficaram por 60 minutos dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional para obter imagens da atividade cerebral. Passados 40 minutos, entraram noutra máquina, de magnetoencefalografia.

São verdadeiros heróis, pois ninguém merece viajar nesse confinamento. Logo que deixavam cada um dos aparelhos, pesquisadores os entrevistavam sobre o que estavam sentido. Não espanta que tenham gravado respostas deste teor:

“Foi engraçado, porque sem a música os… os… os sons do scanner apenas permitiam que você meio que derivasse com os… com os sons do scanner, mas, com a música e os… os sons do scanner, era quase que mais difícil.”

Mas esse foi só o ponto de partida para o estudo de Tagliazucchi & cia. O grupo se debruçou então sobre esses fragmentos de discurso e os retalhou ainda mais, para que pudessem ser tratados, analisados e quantificados de modo automático por computadores.

Conectivos foram deletados, assim como palavras com duas letras ou menos em inglês, por razões detalhadas no artigo original (tudo muito complicado para enumerar aqui). Resultaram séries de palavras como esta: “engraçado, sem, música, som, scanner, permitir, meio, derivar, sons, scanner, música, sons, scanner, quase, difícil”.

À esq., palavras mais usadas sob influência de LSD; à dir., as mais frequentes no caso de placebo (Reprodução)

Aplicaram-se dois tipos de análise formal sobre as muitas fieiras de vocábulos, semântica (o significado das palavras é relevante) e não semântica (só importam ordem, repetição e arranjo de palavras). A segunda modalidade é a que interessa aqui, porque coube ao trio de brasileiros.

Mota, Copelli e Ribeiro são pioneiros na análise por grafos. Reportagem minha na Folha sobre a aplicação dessa técnica a vários tipos de discursos  os descrevia assim: “Diagramas em que cada palavra de um enunciado vai representada com um círculo, os nós, e estes são interligados por setas, ou arestas, na ordem em que se sucedem no discurso. Quando uma palavra ou expressão aparece de novo, uma outra flecha a conecta com a primeira ocorrência do termo”.

Exemplo de grafo, diagrama que representa palavras encadeadas em trecho de fala (Reprodução)

Com base nesse recurso, em trabalhos anteriores o trio mostrou que consegue separar com 80-90% de precisão falas de psicóticos e de não psicóticos. Aplicado aos relatos de psiconautas de Londres, comparados com os da condição de placebo e com uma base de enunciados de doentes mentais, despontaram algumas observações interessantes.

A primeira constatação foi que psiconautas exibem um aumento verborrágico, tipo logorreia (já presenciei ocorrências extremas disso). Muitas palavras proferidas, mas curiosamente com vocabulário comparativamente reduzido (repetições de vocábulos –ainda que cobrindo uma gama maior de temas, informação vinda da análise semântica).

“Os achados dialogam com outro estudo recente de nosso grupo, que mostrou semelhança estrutural de textos da Idade do Bronze na Mesopotâmia e no Egito com o discurso de pessoas em estado psicótico”, comenta Sidarta Ribeiro, da UFRN. “Ainda que mais estudos precisem ser feitos para aprofundar essa questão, hoje é plausível considerar que as lideranças letradas da Antiguidade mais remota tivessem o ímpeto criativo de pessoas que hoje são diagnosticadas com o transtorno bipolar em fase maníaca”.

Dois grafos de falas do mesmo participante no estudo, sob efeito de LSD, à esq., e sob placebo, à dir. (Reprodução)

Tudo somado, os autores concluem da análise formal desses relatos durante efeito psicodélico que há, sim, algum parentesco com discursos psicóticos, mas não da variedade esquizofrênica, e sim com componentes maníacos, como no transtorno bipolar, mas também com os controles normais do experimento. Aumenta a entropia da fala (desorganização), é fato, mas não a ponto de dar sustentação ao paradigma psicotomimético

“Nossas análises ressaltam que simplesmente atribuir uma propriedade ‘psicotomimética’ a psicodélicos serotonérgicos carece de especificidade e que análises computacionais da linguagem natural apropriadamente aplicadas guardam o potencial para fornecer tal especificidade”, concluem Talgiazucchi & cia.

Gráfico compara nível de desorganização de discurso em casos de esquizofrenia, transtorno bipolar e ingestão de LSD (Reprodução)

“Grafos de fala caracterizam como a própria produção espontânea de discurso pode ser perturbada sob os efeitos de LSD, ou durante episódios de doença mental. Tais dados em tempo real possivelmente fornecem um reflexo mais válido e mais interessante da ação de uma droga sobre mecanismos da linguagem do que relatos retrospectivos –embora os últimos sejam mais fáceis de coletar.”

Ponto para a neurociência brasileira.

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