Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Sai publicado 1º teste clínico de fase 3 com tratamento psicodélico https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/sai-publicado-1o-teste-clinico-de-fase-3-com-tratamento-psicodelico/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/sai-publicado-1o-teste-clinico-de-fase-3-com-tratamento-psicodelico/#respond Mon, 10 May 2021 21:52:00 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/NatMedMDMA-230x215.png https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=464 Esta segunda-feira (10) entrará para a história do renascimento psicodélico como data marcante: o periódico científico Nature Medicine publicou artigo pioneiro registrando resultados do primeiro ensaio clínico de fase 3 de uma substância alteradora de consciência (MDMA) para tratar uma condição mental grave, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

É o último passo das pesquisas acadêmicas para aprovar o novo tratamento. Só falta agora a análise dos dados de outros experimentos semelhantes por agências reguladoras, que já se encontra em curso.

Até aqui, só haviam sido concluídos e publicados estudos de fase 1 e 2, como os realizados sobre depressão tratada com ayahuasca, no Brasil, ou psilocibina de cogumelos ditos “mágicos” do gênero Psilocybe, no exterior.

O trabalho na Nature Medicine teve liderança da pesquisadora Jennifer Mitchell, da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF). É um dos braços do estudo multicêntrico capitaneado pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), do incansável Rick Doblin.

Rick Doblin, fundador da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Divulgação/Maps)

Como já apareceu mais de uma vez neste blog e em reportagens da Folha, esse estudo da Maps é o que se encontra mais perto de reentronizar os psicodélicos no rol de medicamentos para a psiquiatria e a psicoterapia. A agência americana de fármacos FDA abriu-lhe uma via rápida de licenciamento, por seu potencial para curar ou pelo menos melhorar a vida de quem sofre com TEPT, tormento muito comum entre veteranos de guerra americanos e vítimas de abuso sexual.

Esses compostos já frequentaram o campo terapêutico, especialmente LSD, psilocibina e MDMA, nas décadas de 1950 e 1960. Mas foram banidos da academia nos anos 1970-80 pela reação conservadora nos EUA contra a contracultura e movimentos sociais associados, como o de direitos civis ou contra a Guerra do Vietnã.

O MDMA, base da droga recreativa conhecida como ecstasy, Michael Douglas, molly ou balinha, não é a rigor um psicodélico clássico como mescalina e LSD, por não desencadear efeitos visuais (mirações, alucinações). Mas é um poderoso empatógeno, ou seja, estimula a empatia com terceiros e com o próprio sujeito, o que favorece elaborar psiquicamente os traumas num processo terapêutico.

Participaram do ensaio clínico da UCSF 90 voluntários, metade dos quais foi sorteada para tomar placebo (no esquema conhecido como teste randomizado duplo-cego controlado). No instrumento mais usado para diagnosticar e mensurar sintomas de TEPT, Caps-5, o grupo que tomou MDMA, após dois meses de acompanhamento, teve redução mediana de 24,4 pontos na escala de 80, contra 11,9 de quem tomou placebo –diferença estatisticamente significativa.

Não se trata de uma pílula que se toma regularmente, como antidepressivos convencionais. Tratamentos psicodélicos experimentais envolvem processos de psicoterapia com várias sessões, além daquelas em que a pessoa toma a droga e é acompanhado por várias horas de “viagem” por uma dupla de terapeutas especialmente treinados. No caso do experimento da UCSF, foram ao todo 12 sessões.

“Em resumo, a terapia assistida por MDMA induz ocorrência rápida de eficácia de tratamento, mesmo para aqueles com TEPT grave”, concluem os autores do teste clínico. “Comparada com as atuais terapias de primeira linha, farmacológicas e comportamentais, a terapia assistida por MDMA tem potencial para transformar dramaticamente o tratamento de TEPT e deveria ser avaliada aceleradamente para uso clínico.”

Quem está habituado com literatura biomédica sabe que conclusões assim contundentes são raras nesse tipo de prosa, sempre cheia de dedos. Tanto o emprego desse palavreado quanto sua aceitação pelos editores da Nature Medicine dão indicação da confiança dos pesquisadores na aprovação pela FDA.

Espera-se que a estrela do renascimento psicodélico termine autorizada pela agência em 2022 ou 2023. Virá em boa hora, se vier, para minorar a epidemia de tristeza e luto na esteira da Covid-19.

SAIBA MAIS

Livro

(Reprodução)

Curso

]]>
0
‘Ibogaína’ não alucinógena mantém potencial contra dependência química https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/ibogaina-nao-alucinogena-mantem-potencial-contra-dependencia-quimica/#respond Mon, 14 Dec 2020 14:39:46 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=169 Pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram a façanha de criar uma versão do psicodélico ibogaína que não causa alucinações, aparentemente, nem importa risco para o coração. Se conseguirem comprovar eficácia em seres humanos, seria uma grande promessa para o tratamento de dependência química.

Ibogaína é uma substância psicoativa derivada do arbusto Tabernanthe iboga, usado ritualmente pela etnia Bwiti, em países africanos como o Gabão e Camarões.  Ela lança a pessoa num estado onírico que pode durar um dia inteiro, ou mais.

Nos anos 1960, descobriu-se nos EUA sua capacidade de diminuir sintomas agudos da crise de abstinência em dependentes de heroína e de conter a urgência imperiosa de consumir a droga (“fissura”). Apesar de proibida, alguns países –como o Brasil– admitem o uso excepcional da ibogaína como tratamento para dependência química, com taxas de sucesso que chegam a superar 60%.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

O médico Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), administrou o composto a centenas de pacientes, assim como o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínia (SP). É mais que recomendável contar com acompanhamento médico durante a viagem da ibogaína, porque a droga afeta o ritmo do coração e pode ser fatal, cuidado nem sempre disponível em clínicas clandestinas.

Na literatura médica há registro de 22 mortes após uso da substância entre 1990 e 2015. Uma revisão de 19 casos de óbito após ibogaína indicou em 2012 que 12 dos 14 deles para os quais havia prontuários médicos detalhados envolviam distúrbios cardíacos prévios ou consumo concomitante de outras drogas, como cocaína.

O laboratório de David Olson na Universidade da Califórnia descreveu na revista Nature da semana passada como foi capaz de modificar a molécula de ibogaína e chegar à síntese de um análogo da substância que os autores afirmam não ser alucinógeno. Chamaram o composto de tabernanthólogo (TBG) e sustentam que a variante não altera perigosamente batimentos cardíacos, tampouco.

“É um trabalho revolucionário”, diz o neurocientista Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa efeitos terapêuticos da ayahuasca. “Abre a possibilidade única de investigar melhor quanto do efeito terapêutico nasce da bioquímica e quanto da experiência subjetiva em si [referindo-se ao estado onírico].”

A equipe de Olson, no entanto, testou o novo composto apenas com roedores. Outras substâncias psicodélicas que também atuam sobre o receptor 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, como LSD e psilocibina, provocam nos bichos um movimento característico da cabeça aceito por pesquisadores como correlato de alucinações.

Os experimentos mostraram que o TBG promove neuroplasticidade, ou seja, a formação de novas conexões entre neurônios que se acredita estar na origem dos benefícios terapêuticos de psicodélicos. Além disso, testes padronizados provaram que o TBG também reduz nos animais o consumo compulsivo de álcool e heroína, além de produzir efeitos análogos a antidepressivos.

Crescimento de espículas em dendritos de neurônios (setas azuis) indica neuroplasticidade após ibogaína (esq.) e TBG (dir.) (Reprodução da Nature)

O artigo indica ainda que obter TBG é mais simples que produzir ibogaína, pois a síntese química envolve apenas um passo, contra 9 a 16 para o composto original, e rende mais. Em resumo, projetaram uma droga que parece ter a mesma capacidade da ibogaína de tratar dependência química, mas desprovida do que chamam de “inaceitável perfil de segurança” –só falta comprovar isso em seres humanos.

“Ratos não têm experiências místicas”, brinca Araújo, da UFRN, para indicar que o trabalho de Olson e colegas toca num ponto nevrálgico do renascimento dos psicodélicos como drogas alternativas promissoras para tratar transtornos mentais: pressupõe-se que os conteúdos psíquicos produzidos ou aflorados durante as viagens sejam imprescindíveis para o progresso terapêutico.

Um estudo sobre ibogaína de Thomas Brown, Geoff Noller e Julie Denenberg no periódico Journal of Psychoactive Drugs defende que o efeito onirogênico da droga é decisivo para quebrar a dependência, ou pelo menos tão importante (pelas memórias e traumas que permite aflorar e que ficam disponíveis para elaboração psíquica das raízes da dependência) quanto o efeito farmacológico (neuroplasticidade).

A pergunta que Olson suscita é se, ao supostamente deletar o impacto alucinógeno, a TBG também não arriscaria cortar pela metade o potencial terapêutico antidependência. Restando apenas a modulação bioquímica, centrada no receptor serotoninérgico 5HT2A, o sonho de livrar-se da dependência talvez não se materialize em pessoas.

Araújo conta que, no caso do estudo de seu grupo que mostrou efeito antidepressivo rápido e duradouro da ayahuasca contra depressão, ambos os ingredientes –farmacologia e vivência subjetiva– parecem contribuir para o resultado terapêutico. Além disso, o efeito psicodélico não se resume ao alvo 5HT2A, e substâncias psicoativas atuam sobre vários outros receptores e sistemas, cada uma com um perfil peculiar.

O neurocientista brasileiro aponta, para reforçar seu raciocínio sobre a complexidade dos efeitos, que há mais serotonina espalhada pelo organismo do que no cérebro. No entanto, psicodélicos agem mais sobre a mente do que no restante do corpo.

Nicole Galvão-Coelho, coautora de Araújo na pesquisa sobre depressão, já demonstrou a capacidade da ayahuasca de modular tanto a neuroplasticidade quanto níveis de cortisol (hormônio do estresse) e um efeito anti-inflamatório.

O LSD, por seu lado, tem forte influência sobre a dopamina. Cetamina e escetamina, sobre o glutamato. MDMA, sobre a noradrenalina.

“Efeitos psicodélicos não estão necessariamente associados só com o receptor 5HT2A, é uma simplificação. Existem vários antidepressivos que atuam sobre a serotonina e não provocam experiências visuais”, ressalva Araújo. “Há outras danças por trás dos psicodélicos.”

Argumento parecido apareceu numa série de tuítes do psicólogo Matthew Johnson, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins: “Há um pouco de debate sobre o alvo errado. [Olson] não defende que efeitos subjetivos não possam ser terapêuticos. Provavelmente há múltiplos mecanismos subjacentes à eficácia da terapia psicodélica, e formas de neuroplasticidade podem ser uma delas”.

“Precisamos nos afastar de falsos debates entre experiência/psicologia e biologia, e pensar de maneiras mais nuançadas. A experiência, afinal de contas, tem uma biologia também.”

A antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna na Califórnia, se incomoda com abordagens muito reducionistas da questão: “A ciência procura separar os efeitos e chegar na suposta ‘essência’ da ‘cura’. A busca por uma droga ‘clean’, sem efeitos alucinógenos, deve ser entendida dentro de um cenário maior”, defende.

“Por um lado, uma tentativa moral de eliminar os supostos aspectos alucinógenos da experiência, que são vistos com ‘negativos’ ou ‘errados’. E, por outro, em função de interesses econômicos, isto é, patentear certos achados.”

Labate esteve em 2001 em Camarões para conhecer em profundidade os rituais da iboga. Do ponto de vista das populações tradicionais, de onde essas substâncias provêm, a cura é holística, explica.

“As concepções de enfermidade envolvem não só aspectos físicos, mas a relação dos humanos entre si, e entre humanos e não humanos. A cura advém da comunhão de plantas, que contêm múltiplos alcaloides, e da experiência mística e coletiva.”

 

]]>
0