Virada Psicodélica https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental Wed, 01 Dec 2021 01:26:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Brasileiros reforçam pesquisa com o psicodélico ibogaína para dependência https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/08/23/brasileiros-reforcam-pesquisa-com-o-psicodelico-ibogaina-para-dependencia/#respond Mon, 23 Aug 2021 22:03:32 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/OXIemRioBrancoDanielMarencoFolhapress2011-300x200.jpg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=579 “Chega uma hora que a gente cansa de usar, muitas vezes ficava com o cachimbo [de crack] na mão, chorando e pensando: ‘Não tô querendo, mas tô usando’. Nossa, é uma tristeza, um sofrimento mesmo.”

Os depoimentos de dependentes de crack, como este de Luan (nome fictício), são sempre doloridos e penosos de ouvir. Não foi recolhido pelo blog, mas pelo psicólogo Bruno Ramos Gomes, para a tese de doutorado defendida em maio na Unicamp (houve breve referência ao trabalho aqui no blog, em post anterior, “Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida”.

Título da tese: “O Uso da Ibogaína no Manejo da Dependência de Drogas no Brasil: Um Estudo Qualitativo de Seguimento por Um Ano” (ainda não está disponível em biblioteca digital, mas o link será incluído aqui assim que aparecer). Eis uma contribuição importante para saber em que contextos o Brasil se tornou o país com talvez a maior experiência na aplicação do composto de origem africana para tratar abuso de substâncias.

Gomes faz parte de uma das equipes que preparam testes clínicos controlados com ibogaína em terapia para dependentes brasileiros, com epicentro no Instituto de Psiquiatria da USP em São Paulo e capitaneada pelo psiquiatra André Brooking Negrão. O outro grupo tem Rafael Guimarães dos Santos e Jaime Hallak à frente, na USP de Ribeirão Preto.

Santos e Hallak acabam de lançar no periódico Psychopharmacology, com colaboradores da Espanha, uma revisão internacional de 18 estudos publicados entre 2015 e 2020 sobre efeitos adversos da ibogaína. O levantamento agrega um caso novo de morte aos 33 arrolados em revisões anteriores (há outro óbito ocorrido no Brasil, não publicado).

O estudo dá detalhes dos problemas cardíacos, convulsões e sintomas menores (zumbido, vômito, diarreia) que podem acompanhar a viagem onírica com extratos da planta Tabernanthe iboga. Arritmias ocorrem em casos raros, mas são controláveis se o paciente estiver monitorado por pessoal médico. O artigo conclui pela necessidade de testes clínicos de fase 1 para refinar o conhecimento sobre uso seguro da ibogaína.

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Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Esse é um dos problemas da popularização de terapias para dependentes com iboga no Brasil, como relata Gomes: nem todo atendimento se dá em condições favoráveis.

É provável que boa parte deles tenha sido tratado com segurança pelo médico Bruno Rasmussen Chaves, com internação por 24 horas e monitoramento cardíaco contínuo. Esse foi o primeiro dos contextos documentados na tese de doutorado da Unicamp orientada pelo psiquiatra Luís Fernando Tófoli.

Chaves já tratou mais de 2.000 pessoas em um quarto de século de experiência com terapia psicodélica em Santa Cruz do Rio Pardo e depois Ourinhos, no interior paulista. Ele segue à risca normas da Anvisa para importar a droga com alto grau de pureza, processo burocrático específico para cada paciente. Nunca teve um caso fatal.

A segunda situação de pacientes entrevistados por Gomes na tese é parecida, mas com diferenças importantes. O autor não nomeia a instituição, mas meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora) indica que se trata do Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), de Paulínia, outra cidade paulista, que alega o dobro de atendimentos de Chaves e registrou em 2016 uma morte horas após aplicação de ibogaína.

Menos controlado se mostra o uso do composto nos outros contextos exemplificados na tese, indivíduos e grupos que o utilizam como recurso contra dependência química numa zona cinzenta entre terapias e cerimônias religiosas com a ayahuasca. O perigo aumenta, e não se descarta que outras mortes tenham acontecido nesse circuito paralelo da ibogaína, não documentadas.

Gomes conclui que “alguns dos problemas enfrentados pelos participantes mostram riscos que devem ser levados em conta no uso da ibogaína e também em futuras regulamentações do seu uso, principalmente em relação a triagem e preparo do paciente, administração e dosagem da ibogaína e suporte durante o efeito agudo”.

O forte da tese, para interessados no aspecto subjetivo (“fenomenológico”, no jargão da ciência psicodélica), são os cinco relatos de dependentes que o psicólogo acompanhou por um ano, com entrevistas trimestrais. Um dos mitos que se desfaz com a leitura é o da ibogaína como panaceia ou bala de prata para exterminar a dependência.

Os pacientes saem melhores da experiência e descrevem como passaram por uma renovação da própria vida, mas não se livram do crack num passe de mágica. Chico (nome fictício), por exemplo, chegou a crer que encontrara a cura, como descreveu na primeira entrevista três meses de acompanhamento:

“Eu falei que me vi no uso [de crack], no dia da dose alta [de ibogaína]. Fiquei com dó de mim mesmo… Me vi desde pequenininho. Como me tornei isso?” –relatou a Gomes. “Venho de 12 internações, 20 anos de uso de crack. Eu às vezes lembro, mas não dá um trisco de vontade, nada! A memória não vem muito também. É como se eu nunca tivesse usado.”

Depois disso Chico teve recaídas esparsas, tomou ibogaína mais algumas vezes, porém com menos efeito. Procurou ajuda também na ayahuasca. Nas conversas subsequentes, já não dizia acreditar estar curado da dependência, mas sim amadurecido:

“Me tornei uma pessoa melhor, mais regrada. Nunca fui desonesto, nunca fui de mexer nas coisas do outro, mas agora tô até meio chato nessa parte. Fiquei até meio velho… Acho que amadureci. Pude me sentir uma pessoa que se resolveu com ela mesma. Ficava esperando felicidade e perguntando de onde ela ia vir… E ela tá aqui comigo. Consegui ficar feliz com o que eu já tinha.”

É de mais histórias e relatos como esse, tocantes e lúcidos, que a ciência psicodélica nacional precisa. Além, claro, de resultados sólidos da pesquisa rigorosa que pôs o Brasil na terceira posição entre os que produzem mais artigos científicos de alto impacto.

Só assim será possível vencer o preconceito que joga os psicodélicos na vala comum das drogas “demoníacas” e impede o avanço que alguns de nosso melhores cientistas perseguem, em favor da saúde mental, não sem risco para a própria carreira e reputação.

PARA SABER MAIS

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(Reprodução)
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Hunter Biden usou veneno de sapo e ibogaína contra dependência de crack https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/05/27/hunter-biden-usou-veneno-de-sapo-e-ibogaina-contra-dependencia-de-crack/#respond Thu, 27 May 2021 21:35:26 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/HunterBidenTomBrennerReuters-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=490 Não li a autobiografia de Hunter Biden, filho de Joe Biden, intitulada “Beautiful Things” (coisas bonitas); satisfiz-me com a descrição de Lúcia Guimarães na Folha. Aí topei com a notícia resumida no título acima e vi que precisaria escrever sobre ela (a notícia, não a autobiografia).

Não era desconhecido que Hunter atravessou 51 anos de vida com problemas de álcool e cocaína. No livro, ele aprofunda a questão para revelar que, na busca para interromper a dependência, recorreu a terapias psicodélicas, como narra David Carpenter no site Lucid News (em inglês).

Atente o leitor para o significado disso: o filho do presidente dos Estados Unidos e pivô do escândalo que Donald Trump tentou armar em torno do oponente era não só usuário de drogas como recorreu a duas outras substâncias proscritas em seu país, 5-MeO-DMT e ibogaína, para tentar livrar-se do abuso que ameaçava destruir sua vida.

Que Hunter se sinta à vontade para admitir isso por escrito é um sinal claro de que os psicodélicos deixaram de ser tabu. Se o fez no best seller, é porque a neurociência e outro livro muito vendido, “Como Mudar sua Mente”, de Michael Pollan, tinham aberto o caminho para tornar público a renascimento psicodélico.

Caso tivesse sido detido nos EUA com uma das substâncias, Hunter poderia ser condenado a 5 ou 10 anos de prisão. Mas ele não correu tal risco por ter procurado tratamento numa clínica do México, onde a droga 5-MeO-DMT não é regulamentada.

A primeira terapia foi com ibogaína, composto obtido da casca da raiz de uma planta africana, a Tabernanthe iboga. Sob o efeito onírico da droga, que pode durar várias horas, Hunter viu sua vida passar como se fosse uma apresentação de slides.

Depois, como parte do processo de cura que lhe propiciou mais de um ano de abstinência, o filho do presidente fumou 5-MeO-DMT, obtida da secreção das glândulas do sapo-do-deserto-de-sonora (Bufo alvarius, ou Incilius alvarius). A viagem dura 10 ou 15 minutos, mas já foi descrita por Pollan como decolar atado ao lado de fora de um foguete.

Sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius ou Incilius alvarius), do qual se obtém o psicodélico 5-MeO-DMT (Holger Krisp/Creative Commons)

“Sei que soa maluco”, escreve Hunter na autobiografia. “No entanto, o que quer que [a droga] tenha feito ou não, a experiência destravou sentimentos e feridas que eu tinha enterrado fundo por tempo demais. Serviu como um bálsamo.”

“Foi uma experiência profunda. [O veneno do sapo] me conectou, de modo vívido e renovado, a todas as pessoas em minha vida, vivas ou mortas. Senti como se estivesse vendo toda a existência de uma vez –e como algo único.”

Não terá sido a primeira vez em que se alcança sobriedade após uma vivência transformadora que muitos descrevem como mística. A sensação de participar da unidade do cosmo é elemento recorrente em relatos de viagens psicodélicas intensas, também chamada de dissolução do ego por quem prefere evitar os subtons espiritualistas.

O elo do misticismo psicodélico com a superação da dependência química remonta às origens da própria organização Alcoólicos Anônimos, como anota Carpenter. O fundador da AA Bill Wilson chegou a experimentar LSD, em 1956, e a recomendá-lo para frequentadores por seu poder de desencadear transformações espirituais favorecedoras da abstinência.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

A informação se encontra numa carta que Bill W. remeteu, em 1961, a ninguém menos que o psicólogo suíço Carl Jung. É o que conta Don Lattin (autor do ótimo livro “The Harvard Psychedelic Club”) em outra matéria de Lucid News: “Alguns de meus amigos da AA e eu tomamos o material [LSD] frequentemente e com muito proveito”, escreveu Wilson a Jung. Relatou que a droga deflagrava “grande alargamento e aprofundamento e elevação da consciência”.

O LSD teve farta distribuição como medicamento pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960, sob o nome Delysid. O ácido lisérgico foi usado contra alcoolismo e como apoio para psicoterapia, inclusive no Brasil.

Só acabou proibido nos EUA, e em seguida no mundo, depois de cair nas graças dos hippies e contestadores reunidos no vagalhão da contracultura. O renascimento dos psicodélicos para a ciência e a psiquiatria demorou quatro décadas para acontecer, e a confissão de Hunter Biden oferece indício eloquente de que parece ter voltado para ficar.

SAIBA MAIS

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USP testa psicodélico ibogaína contra dependência de crack e álcool https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/usp-testa-psicodelico-ibogaina-contra-dependencia-de-crack-e-alcool/ https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/usp-testa-psicodelico-ibogaina-contra-dependencia-de-crack-e-alcool/#respond Thu, 29 Apr 2021 21:00:14 +0000 https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/CRACKZANONEFRAISSAT2021-300x200.jpeg https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/?p=433 A posição de destaque do Brasil em ciência psicodélica fica mais evidente com estudos da USP para combater dependência de crack/cocaína e álcool: há somente quatro ensaios clínicos duplo-cego registrados no mundo para novos testes da droga ibogaína, e dois deles acontecem aqui.

O composto originário da planta africana Tabernanthe iboga, é usado desde os anos 1960 para tratar crises de abstinência e interromper o uso compulsivo. Antes, era empregado em rituais da etnia bwiti, no Gabão e Camarões, e vendido como o antidepressivo Lambaréné na França, de 1939 a 1970, mas terminou abandonado quando se verificou o risco de arritmias cardíacas.

Tradicionalmente, a substância era obtida da raiz do vegetal. Hoje se utiliza a versão sintética purificada, cloridrato de ibogaína, nos estudos experimentais, em clínicas e grupos alternativos de tratamento.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta africana da qual se extrai a ibogaína (Marco Schmidt/Creative Commons)

A ibogaína é proibida em vários países. No Brasil ela não aparece na lista de substâncias controladas nem está regulamentada para uso terapêutico. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só permite importação individual, com indicação médica, embora não haja estudos conclusivos sobre sua eficácia.

Duas unidades da USP decidiram enfrentar o desafio para suprir essa deficiência na literatura científica, diante do acúmulo de indícios de sucesso no tratamento de dependência. Duas clínicas no interior paulista, por exemplo, reúnem casuística contendo milhares de pacientes e alegam taxas de sucesso da ordem de 60-70%.

André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, lidera o estudo mais ambicioso. Em sua mira estão crack e cocaína, que levam dezenas de pessoas todos os meses a buscar socorro no ambulatório do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA).

“O dia a dia de quem cuida de [dependentes de] crack e coca é muito infeliz”, diz Negrão, referindo-se às altas taxas de reincidência. “Resolvi fazer isso [pesquisa com psicodélicos] o resto da minha vida”, diz o psiquiatra de São Paulo, frustrado com a ausência de medicamentos comprovadamente eficazes para pacientes que desejam reduzir ou abandonar o consumo.

O teste de fase 2b, para verificar eficácia e segurança, envolverá 80 dependentes de crack ou cocaína (40 homens e 40 mulheres). Eles serão internados por dez dias, os sete primeiros para assegurar abstinência, o que será confirmado por exames toxicológicos.

Todos passarão por oito sessões de psicoterapia, quatro de preparação e quatro de integração (discussão dos conteúdos psíquicos aflorados durante a experiência com ibogaína), com participação de familiares. Esse é o protocolo usual de pesquisa com psicodélicos para transtornos psíquicos como depressão e estresse pós-traumático, os mais adiantados.

Como os psicodélicos clássicos LSD, psilocibina (“cogumelos mágicos”) e DMT da ayahuasca, a ibogaína atua sobre receptores do neurotransmissor serotonina, importante na regulação de humor, libido e outras funções. A viagem pode durar muito, até mais de 24 horas, e lança a pessoa num estado de sonho lúcido.

Alguns pesquisadores preferem qualificar a substância como oniroide, onirofrênica ou onirogênica. São frequentes relatos de quem revive sob seu efeito situações difíceis, como overdoses, e sensações de morte e renascimento. Também se manifesta intensa empatia com sofrimento alheio e o próprio, não raro acompanhada de remorso por perceber-se como fonte de ambos.

A descoberta de que a ibogaína também suprime efeitos dolorosos da abstinência se atribui a Howard Lotsof. Em 1962, o americano dependente de heroína experimentou a droga africana com a promessa de dois dias de viagem; quando voltou do transe, surpreendeu-se sem os sintomas físicos da síndrome de abstinência.

Lotsof tornou-se a partir daí um apóstolo da ibogaína. Em 1994, o gastroenterologista Bruno Rasmussen Chaves almoçou com ele no refeitório da Universidade de Miami, durante um estágio, e tomou conhecimento da droga, que passou a empregar para tratar dependentes três anos depois, primeiro em Santa Cruz do Rio Pardo e depois em Ourinhos, ambas cidades paulistas.

O médico interna pacientes na Santa Casa, onde os monitora durante toda a viagem, para intervenção imediata em caso de arritmia cardíaca. Nunca teve um caso fatal, informa. Centenas de tratamentos depois, Chaves é hoje um dos colaboradores de Negrão no teste clínico.

“A administração do cloridrato de ibogaína no Brasil tem sido feita com base em protocolos inconsistentes quanto às doses terapêuticas, ao grau de pureza da ibogaína administrada e à adequação do suporte médico”, adverte Negrão a respeito de centros de tratamento alternativo.

“Há relatos na literatura de mortes associadas com o uso concomitante de ibogaína e outras substâncias psicoativas, além de um possível risco intrínseco da substância sobre a condução cardíaca.”

O pesquisador Geoffrey Noller, da Nova Zelândia, encontrou relatos de 19 mortes ocorridas entre 1990 e 2008 no prazo de três dias após ingestão de ibogaína. A maioria vitimou pessoas com problemas cardíacos prévios ou em decorrência de interação farmacológica com outras drogas cujo abuso não fora interrompido.

Em 2016 um grupo neozelandês liderado por Paul Glue publicou ensaio com 27 voluntários dependentes de opioides tratados com um composto aparentado, noribogaína, metabólito ativo no corpo de quem ingere ibogaína. O estudo teve a colaboração das empresas americanas DemeRx e iCardiac.

A comparação com o grupo de controle na USP, metade das mulheres e dos homens a serem recrutados que não receberá ibogaína, só psicoterapia, permitirá afirmar com segurança estatística se o psicodélico de fato surte efeito sobre a dependência. Afinal, melhoras espontâneas acontecem, oriundas de expectativa (efeito placebo) ou da determinação da pessoa para abandonar a droga.

Os pacientes e seus familiares serão acompanhados por três meses no ambulatório. Depois disso, por um ano, serão monitorados remotamente.

O estudo estava pronto para começar, com aprovação de comitês de ética, em maio do ano passado. A pandemia de Covid-19 inviabilizou o uso dos leitos oferecidos pelo Instituto de Psiquiatria e restringiu o fornecimento de ibogaína proveniente da Índia. Negrão afirma que o recrutamento será rápido assim que as vagas ficarem disponíveis novamente e a importação for retomada.

Garrafas de cerveja em depósito para reciclagem (Foto: Rogério Assis/Folhapress)

A eclosão da pandemia também atrapalhou o início do outro ensaio clínico da USP, aprovado e registrado ainda em 2017,  neste caso pelo grupo de neurociência e ciências do comportamento liderado por Jaime Hallak na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. O investigador principal do experimento é Rafael Guimarães dos Santos.

O estudo de Ribeirão não tem relação com o de São Paulo. Testará a tolerabilidade da ibogaína, com um grupo de apenas 12 pessoas, para outro tipo de dependência, alcoolismo. Segundo Santos, o álcool foi escolhido por causa da alta prevalência do abuso dessa substância legal no Brasil, que afeta cerca de 10% da população.

O desenho do experimento é bem diferente. Voluntários ficarão internados por 20 dias, e os primeiros três pacientes receberão três doses sucessivas e crescentes de ibogaína; não havendo efeitos adversos, os outros nove receberão a droga ou placebo, por sorteio.

O consumo de álcool pelos participantes será então acompanhado a cada semana no primeiro mês. Depois disso, nos 3º, 6º e 12º meses.

O primeiro estudo controlado do mundo com ibogaína estava planejado para acontecer na Espanha, onde Santos fez seu doutorado de 2006 a 2012 com o conhecido estudioso de psicodélicos Jordi Riba (morto em agosto de 2020). Outra morte, de Manel Barbanoj, que conduziria o ensaio com José Carlos Bouso, adiou os planos.

Assíduos colaboradores de Bouso, Hallak e Santos combinaram com ele efetuar o teste clínico no Brasil. Em paralelo, os brasileiros colaborarão com o pesquisador espanhol na realização de ensaio parecido, mas no tratamento da dependência de metadona, droga utilizada para redução de danos com dependentes do opioide heroína.

O quarto estudo clínico com ibogaína em preparação no mundo ocorrerá no Reino Unido. As empresas DemeRx e Atai Life Sciences tiveram sinal verde da agência reguladora britânica MHRA para testar a droga no tratamento justamente de dependentes de opioides.

O plano dos empresários britânicos é recrutar 110 voluntários, no total: primeiro 30 saudáveis (usuários recreativos de drogas), para estabelecer a segurança do composto, e 80 adictos numa segunda etapa, já com vistas à desintoxicação.

O fato de metade dos testes clínicos com ibogaína se realizarem no Brasil não é de todo surpreendente. O país tem tradição de pesquisa com psicodélicos, em especial DMT e outras substâncias da ayahuasca, facilitada pela legalização de seu uso em religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV).

Na voga atual de trabalhos científicos após meio século da fracassada Guerra às Drogas liderada pelos EUA (1971), o chamado renascimento psicodélico, brasileiros têm se destacado. Num levantamento de artigos maior impacto (número de citações), o Brasil ficou em terceiro lugar, após EUA e Reino Unido.

O composto mais estudado fora daqui é a psilocibina dos cogumelos Psilocybe, além de LSD e MDMA, para uma série de condições, como depressão (fase 2) e estresse pós-traumático (fase3). A ayahuasca motivou o primeiro teste clínico controlado por placebo de um psicodélico para depressão após o renascimento, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicado em 2018.

A ibogaína tem sido menos pesquisada, apesar do volume de relatos observacionais de sucesso no tratamento de dependência, por causa dos riscos cardíacos e das mortes, ainda que raras. Mas seu uso com acompanhamento médico, como em Ourinhos, tem demonstrado segurança suficiente para uma instituição como a USP se lançar na pesquisa.

A logística, entretanto, encarece o ensaio clínico, pela necessidade de internação e garantia de que os voluntários não tenham no organismo drogas que possam interagir com a ibogaína e afetar o coração. Só com os leitos para o estudo com usuários de crack Negrão orçou despesa de R$ 336 mil, já autorizada pelo Instituto de Psiquiatria (e adiada pela pandemia).

Um dos fatores para o interesse brasileiro pela ibogaína, cita Negrão, esteve em estudo retrospectivo (não controlado) publicado por Bruno Chaves e Eduardo Schenberg em 2014. “Houve um boom de clínicas fazendo iboga no Brasil”, diz.

O artigo descreve levantamento com 75 dependentes de álcool, maconha, cocaína e crack. Cinco meses após tratamento com ibogaína, 61% ainda estavam em abstinência.

Para Rafael dos Santos, da USP em Ribeirão Preto, o interesse do grupo de Jaime Hallak está em expandir as linhas de pesquisa. “A experiência acumulada com estudos de ayahuasca nos últimos quase 20 anos, aqui, nos trouxe o conhecimento para desenvolver pesquisas com esse tipo de substâncias que modificam profundamente a consciência.”

Santos enxerga como vantagem comparativa do Brasil a experiência com ayahuasca e ibogaína, que enfrentam mais restrições legais noutros países. “Por outro lado, temos mais dificuldades para realizar estudos com psilocibina e LSD.”

Os líderes dos testes clínicos reconhecem preconceito na academia com ciência psicodélica, mas não a ponto de dificultar a aprovação dos ensaios por comitês de ética. A liderança nacional nessa área efervescente da pesquisa mundial, entretanto, pode ainda sofrer com o clima político e ideológico no país polarizado.

A ibogaína entrou no radar do governo Jair Bolsonaro. Em reação ao emprego de ibogaína em comunidades terapêuticas para dependentes, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, baixou em agosto a nota técnica nº 64 ameaçando-as com descredenciamento e suspensão de contratos de prestação de serviços com o governo federal.

“Felizmente, as pesquisas com alucinógenos psicodélicos são vistas como pesquisas, sem tanto teor ideológico. Isso se deve em grande parte à seriedade dos grupos de pesquisa”, afirma Rafael dos Santos. “Somente com seriedade e rigor vamos avançar nessa área.”

Os dois estudos da USP serão apresentados ao público internacional na próxima edição do Maps Bulletin (no prelo), publicação quadrimestral da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos dos EUA. Trata-se da ONG responsável pelo teste clínico mais adiantado (fase 3) do mundo com terapia psicodélica para transtorno psiquiátrico (no caso, MDMA e estresse pós-traumático).

Curso “História das drogas psicodélicas para uso medicinal e sua demonização”, no site Bora Saber.

 

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