Parapsicodélicos pretendem alavancar bilhões no mercado de saúde mental
O renascimento psicodélico está à beira de um cisma: a ultrapassada dicotomia entre química e experiência subjetiva se reencarna, agora, na oposição entre investidores recém-chegados obcecados com a neuroquímica e tradicionalistas que cultuam a alteração da consciência e a dissolução do ego como fundações do tratamento de transtornos mentais, como a depressão.
Não se trata apenas de crenças filosóficas ou modelos explicativos concorrentes para o potencial de cura dos psicodélicos, mas sim de abordagens díspares sobre como a nascente terapia alternativa será incorporada no mercado de serviços de saúde. Ou, se quiserem, um embate dos parapsicodélicos contra os psicodélicos como os conhecemos.
De um lado, os esteios são patentes, startups, regulamentação por autoridades sanitárias e cobertura dos novos protocolos de tratamento por seguradoras de saúde. Neste caso, a rentabilidade cresceria muito se eles empregassem drogas de efeito curto, de preferência sem risco de ocasionar viagens psicodélicas complicadas ou até mesmo sem envolver psicoterapia prolongada.
Na outra vertente, herdeiros de uma longa tradição de práticas xamânicas e clínicas alternativas subterrâneas trabalham por preservar, em parceria com a renascida ciência psicodélica, a ênfase no cuidado e na elaboração psíquica legados pelo uso tradicional de substâncias psicodélicas.
No campo aqui apelidado de parapsicodélico se esboçam três modelos de negócio para explorar no mercado o potencial para tratar condições que vão de depressão resistente a medicamentos até enxaqueca, passando por estresse pós-traumático, dependência química, ansiedade, TOC, anorexia e, talvez, Alzheimer.
O primeiro modelo ainda se encaminha para manter no tratamento o componente psicoterápico, restrito porém a uma dúzia de encontros com facilitadores. O processo começaria com reuniões para preparo do paciente sobre o que esperar da experiência com psicodélicos, depois sessões de dosagem e, em seguida, de integração (conversas para interpretar conteúdos emergentes e obter pistas úteis para conduta na vida cotidiana).
Empresas como a Compass Pathways planejam cercar com patentes o pacote todo, de sua variedade purificada da psilocibina de cogumelos “mágicos”, alcunhada COMP360, ao protocolo de atendimento. A propriedade intelectual sobre substâncias e práticas milenares, entretanto, vem sofrendo intensa resistência.
Mesmo essa modalidade enfrentaria alguns obstáculos no contexto usual de serviços de atendimento, pela longa duração do efeito da psilocibina, MDMA, LSD e ayahuasca e outros compostos psicodélicos em estudo (de 4 a 12 horas). O ideal seria contar com drogas de efeito curto como a cetamina (ou ketamina), substância dissociativa com ação diversa de psicodélicos clássicos como LSD e psilocibina.
A cetamina vem sendo usada com algum sucesso no tratamento rápido de depressão. Ela tem as vantagens de ser manejável em consultas de 1 a 2 horas e de estar legalizada, inclusive com a recente autorização para psiquiatras ministrarem a variante escetamina na forma de spray antidepressivo patenteado.
Nessa busca por psicodélicos de duração curta se engajou Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), agraciado com US$ 27 milhões (R$ 150 milhões) da agência americana Darpa (Projetos em Pesquisa Avançada de Defesa). Ele vai liderar um grupo de laboratórios no esforço de projetar medicamentos eficazes contra depressão, ansiedade e abuso de substâncias “sem efeitos adversos graves”.
Por força dessa limitação temporal emerge uma segunda estratégia, ainda como proposta experimental, para encaixar terapias psicodélicas no mercado: desenvolver moléculas com efeito psicodélico cujo efeito não ultrapasse duas horas. Essa é uma das linhas em estudo pelos acionistas da Atai Life Sciences, que é também uma grande investidora na Compass, e pela Field Trip Health, do Canadá, segundo reportagem de Will Yacowicz na Forbes.
A terceira via para exploração de psicodélicos em saúde mental vai além e pretende livrar-se completamente do que se chama de viagem, o efeito dissociativo e alucinógeno desses compostos. Esse é o plano por exemplo de David Olson, da Universidade da Ca;ifórnia em Davis.
Olson já publicou estudo sobre uma droga análoga à ibogaína que desenvolveu com a finalidade de oferecer uma alternativa a esse derivado de uma planta africana para tratar dependentes químicos, mas desprovido do prolongado e intenso efeito onírico desencadeado pela substância originária do Gabão. Ele é um dos fundadores da empresa Delix Therapeutics, de Boston, que também tem depressão e demência na mira.
Ninguém está ainda ganhando dinheiro com um desses três modelos tecnocientíficos de negócio, mas eles já permitiram levantar quantidades consideráveis de capital. A eles se contrapõem pelo menos outras três estratégias para fazer o potencial terapêutico dos psicodélicos chegar ao público hoje desassistido pela farmacopeia psiquiátrica.
As três se caracterizam por não terem fins lucrativos, por reivindicar-se como herdeiras da tradição de cura e autoconhecimento dos tempos da contracultura e por não se ancorar na propriedade intelectual para se sustentar, embora não a excluam. O trio alternativo já foi mais de uma vez apresentado neste blog, por isso não seria o caso de estender-se sobre elas:
- O modelo de corporação sem fins lucrativos seguido pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) em seu esforço de décadas para regulamentar o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático com psicoterapia assistida por MDMA, o que pode acontecer em 2023;
- A estratégia de ciência aberta capitaneada pelo Instituto Usona na competição com a Compass em ensaios clínicos da psilocibina para depressão, inclusive com o patrocínio de um repositório de estudos e saber tradicional sobre cogumelos “mágicos” e outros psicodélicos de uso ritual, Porta Sophia, para questionamento de patentes pela existência de conhecimento prévio;
- A inovadora experiência em curso no estado americano de Oregon para licenciamento de terapias com psilocibina, certificação e controle de procedência da composto e formação de terapeutas especializados, em paralelo com a progressiva descriminalização do uso adulto de várias drogas ditas “enteogênicas” (termo alternativo, menos estigmatizado, para designar psicodélicos).
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