Sexo, drogas e revertério ameaçam reputação de psicodélicos

Psicodélicos têm uma longa história com sexualidade, a começar pelo amor livre dos hippies que, corrosivo como seu pacifismo, antecedeu a proibição do LSD e outras substâncias alteradoras da consciência. Há também um lado perverso e antigo nessa relação, como a recusa da homossexualidade e os abusos sexuais, um calcanhar-de-aquiles para o renascimento psicodélico.

A imagem positiva ressuscitada pela neurociência, agora como tratamentos promissores para transtornos psíquicos da gravidade da depressão, não combina com a ideia de que possam ser usadas em terapias de conversão, a chamada “cura” gay. Como relata Clancy Cavnar, nos anos 1960/70 o LSD chegou a ser usado com a finalidade suposta de tratar homossexuais, inclusive por terapeutas cultuados até hoje como Stanislav Grof (ainda que somente com pacientes atormentados por sua condição sexual).

“Os terapeutas que usavam psicodélicos para mudar orientação sexual nos anos 1960 e 1970 eram pioneiros que, baseados na compreensão limitada da homossexualidade na época, estavam experimentando, embora isso estivesse sem dúvida prejudicando os pacientes, não eram movidos por fervor religioso ou negação da ciência, esclarecida desde então”, diz a terapeuta da Califórnia, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco.

“Duvido que os poucos provedores remanescentes da terapia de conversão, que já foi denunciada amplamente como prejudicial e ineficaz, estejam bem informados sobre psicodélicos ou vejam algum potencial neles, pois são em geral programas baseados em religião.”

Cavnar, que dirige o Chacruna ao lado da antropóloga brasileira Bia Labate, dedicou sua tese de doutorado em psicologia aos “Efeitos da Participação em Rituais de Ayhuasca sobre Autopercepção de Gays e Lésbicas”, de 2011. Ela cita no texto um documento interno da religião ayahuasqueira União do Vegetal (UDV), de 2008, no qual os dirigentes afirmam: “… jamais podemos concordar com a prática do homossexualismo visto que contraria a origem natural da existência humana, ou seja, o relacionamento entre o homem e a mulher, dando início à geração”.

Procurada para esclarecer se mantém a doutrina condenatória da homossexualidade, a UDV limitou-se a reiterar nota enviada ao jornalista Carlos Minuano no ano passado para a reportagem “ ‘Psicodelia de Direita’: polarização se acirra entre usuários de ayahuasca”.

Na nota, sem repudiar a “posição religiosa” de 2008, a entidade diz que “seu objetivo é trabalhar pelo ser humano no sentido do desenvolvimento de suas virtudes morais, intelectuais e espirituais, sem distinção de cor, sexo, ideologia política, credo religioso ou nacionalidade”. E ainda: “A UDV aceita todos que a procuram, sem nenhum tipo de preconceito, prejulgamento ou discriminação.”

“Há uma ênfase em ideais como o ‘equilibro cósmico’, a ‘sagrada família’, a ‘divina união do masculino e feminino’, a ‘união dos opostos’ etc., que acaba servindo como base para um discurso heteronormativo, patriarcal e machista”, diz a antropóloga Bia Labate. “Nesse sentido a ‘cura dos gays’ passa a ser um projeto e uma missão. Infelizmente, isto é muito comum.”

Em contexto clínico profissional, não religioso, essa “conversão” parece hoje impensável, em particular depois que a homossexualidade deixou de ser considerada patologia, ainda nos anos 1970. No entanto, como há pelo menos um líder da UDV (Luís Felipe Belmonte) e até médicos e psicólogos na esfera bolsonarista, não seria de todo surpresa se essa gente recorrer à dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, ou outro psicodélico, para reconduzir ovelhas desgarradas ao que consideram caminho natural da virtude.

“Usar a ayahuasca para ‘converter gays’, eufemismo para ‘evolução’ ou ‘transformação espiritual’, é inaceitável”, afirma Labate. “Sabemos que muitas pessoas dentro da UDV são contra o manifesto antigay. Essas vozes precisam ser apoiadas.”

Esse abuso potencial, que decerto viria prejudicar a reabilitação progressiva dos psicodélicos para a medicina, contrasta com outro, este sim um perigo real, antigo e presente: assédio. Abusos sexuais cometidos por terapeutas profissionais e curandeiros são tão velhos quanto a noção de que esses compostos forneçam panaceias para tudo.

Obra sem título de Edgard de Souza no Inhotim (Foto Marcelo Leite)

O enredo, que não precisa envolver substâncias psicoativas, é arquiconhecido de escândalos como o de João de Deus, Roger Abdelmassih ou Prem Baba: uma figura de autoridade, supostamente investida com o poder de curar ou iluminar, se aproveita da fragilidade do paciente ou discípulo para ter relações sexuais ou, simplesmente, estuprar.

No caso de psicodélicos, a situação usual de risco vai potencializada por pelo menos três fatores específicos. Primeiro, sua associação com a liberdade sexual conquistada pelo movimento da contracultura, uma revolução que não se fez sem vítimas.

Muitos provedores de terapias psicodélicas, antes e depois da proibição, são eles próprios adeptos dessas substâncias e de noções não convencionais sobre sexo. No submundo clínico a que essas práticas foram relegadas pela criminalização, a ausência de controle por associações profissionais e o segredo inerente dificultam o surgimento e a propagação de denúncias.

Em segundo lugar, a depender da substância, o psiconauta pode ficar muitas horas física e mentalmente incapacitado para reagir, além de sugestionável, o que aumenta sua vulnerabilidade. Por fim, psicodélicos podem ter algum efeito afrodisíaco, predispondo a pessoa em busca de cura ou bem-estar a investir seu desejo na pessoa do curador.

“Ouvimos muito falar de abuso sexual só por estarmos na comunidade de medicina vegetal por tanto tempo”, diz Cavnar, referindo-se à parceria com Labate. “Há sempre sussurros sobre algum escândalo, mas muita hesitação em expor os praticantes, por causa de implicações legais para todos os envolvidos e sentimentos de proteção para com a própria prática, evitando que seja vista como prática abusiva envolvendo mau comportamento sexual e drogas”.

Cavnar relata conhecer alguns casos de mulheres que buscam aventuras sexuais com xamãs ou encaram o sexo como forma de aprendizado para obter poderes espirituais. “Algumas nunca se arrependem dessas aventuras, algumas se casam com o xamã ou se tornam ‘nativas’ e, talvez, algumas vêm a se arrepender, mas essas não são as histórias com que as pessoas recorrem ao Chacruna”, diz. “Com mais frequência é o caso de uma mulher intoxicada que não entende o que está acontecendo, numa terra estranha, numa cultura estranha, idolatrando um curador misterioso da selva, que não sabe o que fazer ou quem procurar depois de uma violação.”

Nada disso isenta o terapeuta ou xamã de responsabilidade, que em realidade aumenta. Mesmo que um participante intoxicado manifeste julgamento equivocado em estado vulnerável, ainda assim compete ao facilitador ou xamã entender essa vulnerabilidade e proteger o participante contra escolhas erradas, ressalva a psicoterapeuta.

Não que casos de abuso sejam coisa só de clínicas clandestinas e rituais obscuros, como apontou Will Hall num ensaio que correu a comunidade psicodélica em setembro, “Interrompendo o Silêncio sobre Abuso na Terapia Psicodélica”. Hall remonta uma história acabrunhante de denúncias de abuso, como as levantadas contra os terapeutas Rick Ingrasci (1989), que teria estuprado três pacientes após dar-lhes MDMA, e Francesco DiLeo, seu amigo.

O próprio autor do ensaio narra um traumático envolvimento sexual com o casal de terapeutas Aharon Grossbard e Françoise Bourzat, nos anos 1990, em São Francisco. E recupera o caso de abuso denunciado pela canadense Meaghan Buisson, ocorrido em 2015, quando participou como voluntária de estudo clínico com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) dirigido por Richard Yensen.

Este último episódio é particularmente preocupante porque se deu no contexto da pesquisa mais avançada para consagrar um psicodélico (MDMA) como tratamento para um transtorno psiquiátrico (TEPT). O ensaio de 2015 era de fase 2, mas os estudos patrocinados pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps) avançaram desde então para a fase 3, e se espera que psicoterapia assistida por MDMA para TEPT receba aprovação da agência FDA em 2023.

(Reprodução)

A Maps reagiu ao texto de Hall com esta nota. No protocolo de tratamento estipulado pela associação, as sessões em que o paciente fica sob efeito de MDMA tem acompanhamento contínuo de um casal de terapeutas, na pressuposição de que a presença de dois gêneros iniba iniciativas de cunho sexual.

Hall critica o fato de formulários de consentimento informado usados nesses estudos em geral não incluírem entre os riscos do MDMA seus conhecidos efeitos sobre o apetite sexual. Além disso, aponta reportagens sobre psicodélicos e obras de divulgação, a exemplo do best seller “Como Mudar sua Mente” de Michael Pollan, como veículos de uma visão edulcorada de psicodélicos, repaginados no atual renascimento como “tratamentos”, não mais tratados como as drogas poderosas que são.

A interdição de relacionamento sexual com pacientes antes, durante e depois do tratamento constitui regra básica de qualquer código de conduta para psicoterapeutas, como explicita a própria Maps. Dadas as especificidades da terapia assistida por psicodélicos, contudo, seria prudente dar mais ênfase aos riscos inerentes a essa modalidade, sob pena de ver escândalos contaminarem o noticiário até aqui positivo sobre o renascimento psicodélico.

O Instituto Chacruna, por exemplo, publicou em várias línguas um “Guia da Comunidade Ayahuasqueira para Conscientização sobre Abuso Sexual”. E o próprio Pollan, num evento do instituto com Labate na quinta-feira (18), apontou escândalos sobre abuso sexual como um flanco aberto para o revertério midiático que, na sua opinião, sempre sobrevém nos Estados Unidos com todo assunto que se torna popular.

Coincidência ou não, o sexo terá destaque especial na próxima Global Drug Survey, um influente levantamento de usos e práticas com drogas realizado por internet em vários países, incluindo o Brasil.

Pela descrição dos objetivos, o GDS 2022 parece mais interessado nos efeitos positivos de psicodélicos sobre a sexualidade. Talvez algo menos orientado para o prazer aflore nas questões dirigidas para “aqueles que tenham experimentado algum tipo de trauma sexual”, a fim de saber se “acharam que o uso de psicodélicos teve algum impacto nisso”.

Para evitar o viés edulcorante criticado por Hall, no entanto, haveria que incluir na pesquisa perguntas diretas sobre abuso sexual sofrido sob efeito de psicodélicos em contexto clínico, ritual ou recreativo. Por raro que seja esse tipo de abuso, conhecer sua dimensão e aperfeiçoar a prevenção são a maneira segura de impedir que predadores turvem as águas que mal começam a fluir desimpedidas.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)