Documentário enquadra mistério da consciência em moldura quase mística

Marcelo Leite

Dentro de duas semanas psiconautas fluentes em inglês terão a chance de assistir a mais um filme sobre psicodélicos: “Aware – Glimpses of Consciousness” (em tradução livre, “Ciente – Vislumbres da Consciência”), de Frauke Sandig e Eric Black. O documentário só está em cartaz na Alemanha e nos EUA, mas “Aware” terá estreia no streaming em 10 de novembro (um trailer pode ser visto aqui).

O filme teuto-americano não trata exatamente de modificadores da consciência, mas da consciência em geral. Só que não: a psilocibina dos cogumelos “mágicos” entra como coadjuvante que acaba roubando a cena.

Repare no trecho do cartaz reproduzido acima. O rosto que aparece marcado pela cruz de luz laser vermelha é de Justine, voluntária em uma das mais de 600 sessões com psilocibina organizadas na Universidade Johns Hopkins pelo neurocientista Roland Griffiths, pioneiro da ciência psicodélica e talvez o maior responsável por manter vivo seu elo com a aura mística dos tempos do movimento hippie.

A moça conta no filme que, mesmo dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional para mapear sua atividade cerebral, a psilocibina a levou a conectar-se com pessoas queridas que já morreram. Disse que a experiência reforçou sua crença na vida além-túmulo e funcionou como um aprendizado para o futuro, dando-lhe segurança diante da morte.

Não será a primeira vez que este blog põe em dúvida a necessidade e a pertinência de preservar essa associação incômoda da ciência com misticismo. O filme não chega a embarcar na canoa esotérica, mas está lá no ancoradouro para dar boas-vindas a uma penca de pesquisadores e convertidos que têm um ou os dois pés nela.

Detalhe de “Celacanto Provoca Maremoto”, de Adriana Varejão, no Inhotim (Foto: Marcelo Leite)

Na entrevista para o documentário, Griffiths fala com desenvoltura sobre ensinamentos do budismo (“você não é o self”). Em sua interpretação, a psilocibina fornece uma via rápida para relaxar a chamada rede de modo padrão (ou DMN, default mode network em inglês), padrão de conexão cerebral da introspecção que se acredita estar na base do ego.

“Algo maior emerge”, diz o neurocientista no filme. “Uma abertura maior, para além das respostas habituais”, que estaria diretamente associada com o potencial terapêutico dos psicodélicos. Um estudo seu, aliás, mostrou forte correlação da intensidade da experiência mística vivida sob efeito da psilocibina com a melhora de sintomas de depressão.

Outros cientistas entrevistados vão mais longe. A mais desconcertante é Monica Gagliano, da Universidade de Sydney, que defende ampliar a noção de consciência difundindo-a pelo tecido da natureza –não só para incluir esboços da faculdade em primatas, cães, golfinhos e pássaros, como indicam alguns estudos, mas até as plantas.

Para Gagliano, vegetais são sencientes, ou seja, têm sentidos e sopesam informações do ambiente para aprender –meio caminho andado para a consciência. Seus experimentos indicam que brotos de ervilhas acham o caminho para fonte de água guiadas só pelo som gravado do líquido e que é possível reproduzir com plantas o condicionamento que Pavlov infligiu a cães (no caso vegetal, caules que se inclinam em busca de luz mesmo na ausência dela, após associar o som de uma ventoinha com a luz que se acende).

O documentário traz ainda um professor de filosofia, Richard Boothby (Universidade Loyola, Maryland, EUA), um agnóstico que deixa de sê-lo após ingerir cogumelos e se reconciliar como suicídio do filho. Dez anos depois de voluntariar-se para experimento com psilocibina, descreve a vivência como a mais significativa de sua vida, algo como sentir “o batimento cardíaco da realidade ela própria”.

A “aceitação amorosa” que lhe permitiu superar o luto revoltado seria a essência da vida, e não o medo ou defesas humanas. “A consciência não é nada mais que essa abertura”, diz. “Deus não é o destino, mas a jornada (…). Se Deus nos deu liberdade, ele não sabe o resultado. Nós somos os veículos [proxies] da própria vida de Deus.”

Previsivelmente, há também no filme um monge budista com doutorado em genética, Matthieu Ricard, e uma sacerdotisa maia, Josefa Kirvin Kulix. Nenhum deles economiza figuras expansivas para falar da consciência, que veem disseminada entre todos os seres e coisas –“como o vento, que não se pode aprisionar”, diz Josefa.

Mais surpreendente é ouvir Christof Koch, estrela da pesquisa sobre consciência no Instituto Allen criado pelo sócio de Bill Gates na origem da Microsoft, Paul G. Allen (1953-2018), quase exasperado com a impotência científica diante do desafio de capturar a natureza da consciência. “Só consigo ver mecanismos”, lamenta: “Como é que fazemos as águas do cérebro se transformarem no vinho da consciência?”.

Para Koch, a consciência é um traço fundamental do universo, como um mar que nos envolve. “Será que os peixes sabem que estão na água?” –pergunta. A julgar pelo título de seu livro de 2019, “A Sensação da Própria Vida – Por que a Consciência Está Disseminada, mas Não Pode Ser Computada” (The MIT Press), ele parece ter concluído pela impossibilidade de conhecer a consciência como um objeto exterior.

Com ele concorda o filósofo Boothby: a vivência psicodélica não é engendrada pela droga, mas vem de algo maior fora dela e do indivíduo. A psilocibina se limitaria a abrir o obturador da percepção, permitindo uma exposição radical do sujeito à própria vida, como o mecanismo da câmera fotográfica que propicia a entra da mais luz.

Se conclusão houvesse no documentário “Aware”, seria esta: a consciência permanece um mistério. Sua opacidade resiste até aqui a todas as ferramentas manejadas pela ciência para desvendá-la. O recurso frequente de pesquisadores a vocabulário e conceitos holistas, esotéricos ou místicos, como documenta o filme, é mais um sintoma de descolamento de nossa retina cognitiva, que nos condena a apenas tatear o objeto descomunal na penumbra psicodélica.

Interessante notar algum paralelo entre essas ideias sobre a consciência –não seria uma prerrogativa humana; substâncias psicoativas permitem vislumbrar suas manifestações em outros planos– e elementos do que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo ameríndio. Pajés e xamãs, afinal, usam psicodélicos ou quejandos para trocar de pele e transitar entre domínios em que todos os seres são humanos, por assim dizer, e vivem em sociedade.

“Aware”, o filme, é um bom exemplo do reconhecimento de que a consciência talvez só possa ser apreendida com ajuda de metáforas e poesia. Como o vento.

Leia mais sobre psicodélicos no livro:

(Reprodução)