Sete erros e sete acertos com psicodélicos na série de TV ‘Nove Desconhecidos’
“Só os psicodélicos (se) salvam” seria um resumo apropriado, ainda que enigmático, para a série da Hulu “Nove Desconhecidos”, em cartaz na plataforma Amazon Prime Video. Até Nicole Kidman, no papel de Masha, sai chamuscada da narrativa canhestra sobre a renascença dessas drogas para a medicina.
Os nove desconhecidos são clientes que chegam para dez dias de “transformação” no spa Tranquillum, comandado pela guru russa com apenas três auxiliares (Yao, Delilah e Glory). Zero faxineiros, cozinheiros e camareiros, mas pululam os erros, dos quais se destacarão os sete mais gritantes.
Antes, um pouco de contexto. Existem, sim, spas psicodélicos, por exemplo na Jamaica e na Costa Rica, assim como clínicas sérias no Brasil e turismo xamânico no Peru.
Não é por causa dessa indústria marginal, porém, que se ouve falar tanto das substâncias. E, sim, porque a ciência está a ponto de ressuscitá-las para tratar transtornos mentais, como se pôde acompanhar aqui ao longo dos últimos 12 meses.
É muito provável que em 2023 o MDMA (ecstasy, bala, Michael Douglas) termine autorizado nos EUA para psicoterapia para estresse pós-traumático. Depois deverá ser a vez da psilocibina dos cogumelos ditos “mágicos” (gênero Psilocybe), em investigação para condições como depressão, ansiedade, TOC, anorexia e outros transtornos.
Agora, os sete erros (se quiser evitar spoilers, pare por aqui):
- Ausência de consentimento – Masha dá psilocibina misturada aos smoothies servidos ao longo do di sem o conhecimento dos hóspedes. Até o mais maluco dos gurus psicodélicos evitaria esse abuso, pois em qualquer país daria cadeia mesmo que não se tratasse de drogas psicoativas. A série não deixa claro nem se a personagem de Kidman está qualificada para ser terapeuta.
- Participante desequilibrado – O estafe de Tranquillum pesquisou e escolheu a dedo os nove clientes, o que torna incompreensível incluir Carmel, uma mulher transtornada, com passado violento e biografia cruzada com Masha. Em testes clínicos de psicodélicos, qualquer tendência ou histórico de psicose da pessoa ou na família próxima serve como critério de exclusão. Como se pode ver na TV, a mancada quase sai caro para a guru.
- Dosagens seguidas – O pessoal do spa fala várias vezes num protocolo nunca detalhado, mas fica evidente que as doses estão sendo ministradas todos os dias, ou quase. Ninguém desperdiçaria psilocibina assim, pois, como os psicodélicos clássicos LSD e mescalina, a repetição implicaria perda de efeito pela rápida tolerância que desencadeiam.
- Mistura de psicodélicos – Em certa altura Masha, Yao e Delilah discutem a antecipação do protocolo com inclusão de LSD no coquetel. Por mais que alguns adeptos gostem de misturar compostos psicoativos ao mesmo tempo (já vi gente usando ayahuasca, rapé, maconha e sananga na mesma noite, como narro no livro “Psiconautas”), nenhum terapeuta responsável seguiria por aí. Os efeitos podem se compor de maneira imprevisível e fazer mais mal do que bem (sem falar na tolerância cruzada de LSD e cogumelos, que agem sobre os mesmos receptores de serotonina).
- Alucinação coletiva – É a parte mais dura de engolir no drama da Hulu. A família composta por Napoleon Marconi, sua mulher Heather e a filha Zoe quer livrar-se do trauma pelo suicídio de Zach, gêmeo de Zoe, e Masha os convence de que uma dose alta de LSD (ou psilocibina, não fica de todo claro) trará o rapaz de volta. Já seria fantasioso além da conta, mas os três acabam tendo a mesma alucinação, participando de diálogo a quatro com o defunto.
É verdade que muito da cultura psicodélica bordeja com o misticismo e que alguns rituais tradicionais são descritos como acesso ao mundo dos mortos. O enredo parece atribuir a Zoe um poder mediúnico amplificado pelo ácido, o bastante para invocar a aparição também para os pais, mas o abraço simultâneo dos três com o suicida resulta numa das cenas menos convincentes e mais constrangedoras.
- Envolvimento da terapeuta – Para piorar as coisas, Masha resolve tomar a droga junto com os Marconis. Supostamente, no esforço de convencê-los da segurança do composto (mas ela esconde que seu objetivo é conjurar outro morto). Qualquer manual sobre uso seguro de psicodélicos contraindicaria essa prática, mesmo que não se tratasse de um terapeuta.
Sempre se recomenda haver uma pessoa sóbria por perto, para eventuais emergências como viagens ruins, surtos e mal-estares. Delilah fugiu para chamar a polícia, pois acha que Masha passou dos limites. Yao está ocupado com Carmel. Glory se dedica a tourear o restante do grupo revoltado. Não sobrou nenhum adulto na sala.
- Experiência artificial de quase-morte – Por orientação de Masha, que já se encontra para lá de Marrakech, Glory tranca os hóspedes remanescentes num salão preparado para simular um incêndio e levá-los a acreditar que vão morrer. A ideia tresloucada é que a proximidade do desfecho final os force a considerar o que de fato importa na vida, blá-blá-blá.
Ninguém duvida de que uma vivência terminal possa ser transformadora para muita gente. Mas, de novo, soa despropositado que o efeito seja alcançado ao mesmo tempo e na mesma situação fortuita, coletivamente, por meia dúzia de pessoas. Além disso, se a série se baseia no poder dos psicodélicos, por que o artifício de recorrer a um recinto para suscitar a experiência? Faria mais sentido utilizar de forma controlada a 5-MeO-DMT, substância de forte e curto impacto comumente descrito como completa dissolução do ego.
Masha até menciona de passagem os termos técnicos “set” e “setting”, aludindo às disposições mentais do psiconauta e as condições do ambiente consideradas fundamentais para uma boa viagem, mas não passa de mesura inconsequente à melhor ciência psicodélica. Não há preparação digna do nome para os participantes sobre o que os espera, muito menos integração dos conteúdos psíquicos e emocionais que vão aflorando. Não espanta que tudo se encaminhe para um caos alarmante.
No oitavo e último capítulo, contudo, como em qualquer novela mequetrefe de TV, tudo se resolve. É pena que o passe de mágica obscureça tudo de verdadeiro que a série captou de fiel sobre a experiência psicodélica. Seria possível escrever uma apreciação inteira com, digamos, sete acertos de “Nove Desconhecidos”, por exemplo:
Sim, com psicodélicos é comum a pessoa aceitar melhor a própria mortalidade. Idem com traumas de infância, perda de pessoas próximas, desilusões amorosas. Como diz Zach, tudo que se vê sob efeito dessas drogas é irreal, está só na cabeça de quem toma e não no mundo exterior.
A empatia cresce de modo notável. Viagens ruins acontecem, mas são raras e podem ter rendimento terapêutico. Casais se tornam mais próximos, o sexo melhora. O psiconauta fica propenso a relevar defeitos, remorsos e más ações, em si e nos outros.
Essas sete coisas corretas estão lá no drama televisivo, o que lhe confere certo aspecto positivo. Também seria possível enxergar a série como uma espécie de denúncia dos riscos inerentes à esfera meio clandestina de curadores, pseudoterapeutas e xamãs improvisados que receitam psicodélicos como se fossem água benta. Não são.
Essa leitura benevolente de “Nove Desconhecidos” se esboroa no capítulo final. O caos não se consuma por força de suposto poder superior dos psicodélicos, que prevalece mesmo após a chegada da polícia. Até Masha se safa, misteriosamente, dos crimes patentes que cometeu em nome da força dessas substâncias.
Só os psicodélicos (se) salvam da série problemática. E com ela só se reforça o excesso de expectativas com eles, como se fossem a panaceia final, a salvação da humanidade, a bala de prata contra o sofrimento do mundo pós-pandemia –e não substâncias de trabalho, úteis para psicoterapia e autoconhecimento, mas que não trazem nada para quem está só em busca de soluções fáceis.
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