De doutor para doutor, medicina quer DR sobre drogas com juízes e promotores

Uma série de quatro vídeos para distribuição por celular, com 5 a 6 minutos cada, estreia nesta sexta-feira (17) para semear o diálogo entre medicina e Justiça sobre a Lei de Drogas (11.343/2006). Um convite a que juízes e promotores ouçam a ciência da maconha e dos psicodélicos, reflitam sobre o encarceramento em massa e tomem decisões para promover a saúde, antes de mais nada.

O lançamento da série DR.DR. ocorre às 10h com o debate “Uma Conversa entre a Saúde e a Justiça”. O evento contará com o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e Ela Wiecko de Castilho, subprocuradora-geral da República.

Participam ainda a magistrada Clara Mota, pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais), e Débora Medeiros, psiquiatra que apresenta as peças de divulgação. Além delas, falarão representantes das organizações produtoras da DR.DR., Justa e Iree (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa).

“Aprendi que, pela teoria do direito, o bem jurídico que essa lei [11.343] protege é a saúde pública”, diz Medeiros no primeiro vídeo. Com voz pausada, entre maternal e professoral, a médica desfia argumentos racionais baseados em evidências de pesquisas para questionar os pressupostos da Guerra às Drogas que contaminam o debate desde a década de 1970.

A ênfase na saúde, não no crime, tem pautado reformas de legislações sobre drogas por toda parte, de Portugal ao Uruguai, de estados norte-americanos a Israel. Não no Brasil, onde até o consagrado uso medicinal de compostos da maconha ainda enfrenta restrições e o Supremo Tribunal Federal posterga desde 2015 decisão sobre descriminalizar a posse da erva para consumo pessoal.

Nem mesmo o sucesso da ciência psicodélica no país foi capaz de abrir brechas na doutrina repressiva. Medeiros cita no quarto vídeo a nova era farmacológica que se abre para a psiquiatria, com descobertas “até chocantes para médicos” sobre o potencial terapêutico de compostos proibidos como psilocibina, LSD e MDMA.

Poucos juízes e promotores sabem que MDMA, base da droga da noite ecstasy, está na reta final de aprovação pela FDA (a Anvisa dos EUA) para psicoterapia em pacientes com transtorno de estresse pós-traumático. Ou que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte já fez teste clínico do chá psicoativo ayahuasca contra depressão, com bons resultados.

Some-se a isso a tendência ao alarmismo, entre conservadores, no que se refere a drogas, e ao negacionismo, no tocante à pandemia, em favor de fraudes como a cloroquina. Para Luciana Zaffalon, diretora da Justa, “o terraplanismo na medicina é a mesma coisa na política de drogas”.

“A política de drogas é negacionista. Nega a ciência sobre a maconha e os psicodélicos”, concorre o advogado Cristiano Maronna, seu colega na direção da Justa. Para ele, é imprescindível um debate sobre “como a medicina se apropriou da questão das drogas para dizer o que é dependência e como se cura a dependência”.

A Covid-19 oferece oportunidade única para abalar esses alicerces, na medida em que espalha e amplifica o sofrimento das pessoas –mais depressão, ansiedade e estresse causados por luto, desemprego, doença, até fome.

Como resultado, subiu 22% o consumo de ansiolíticos como Rivotril (clonazepam) e 17% o de antidepressivos, enquanto o abuso de álcool saltou 35%, segundo a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde).

Nos Estados Unidos, aumenta o consumo de psicodélicos. O levantamento “Monitorando o Futuro”, da Universidade de Michigan, aponta que o uso de LSD e psilocibina (“cogumelos mágicos”) mais que dobrou entre estudantes universitários, saindo de 4,1% antes da pandemia para 8,6%.

Em busca de alívio, os mais afetados pela pandemia vão buscar também drogas proibidas, e outros adotarão o comércio ilegal como alternativa de renda, tornando-se ambos alvos da polícia. De acordo com a publicação “World Drug Report 2021”, citada no primeiro DR.DR., a população vulnerável a drogas aumentou 43% em países de baixa renda e 10% nos de renda média.

O mundo jurídico brasileiro (mas não o dos EUA), na visão dos produtores da série, estaria preso a uma perspectiva reducionista forjada por médicos conservadores como o deputado Osmar Terra (MDB-RS), figura bolsonarista de proa nos dois debates (Covid e drogas). Ela se baseia na negação da complexidade do fenômeno da dependência, atribuindo-a exclusivamente às substâncias.

“Crack não, rivotril sim; maconha não, álcool sim”, resume Medeiros no vídeo. Essas distinções se fundam na noção equivocada de que alguns compostos teriam o poder de, por si sós, desencadear a dependência. Fora de foco ficam os fatores individuais (como traumas antigos) e situacionais (exclusão, estresse).

Muitos juristas desconhecem que essa maneira de ver a dependência carece de base na ciência e nos dados. Cerca de 80% dos que usam crack não se tornam dependentes, assim como 91% dos adeptos da maconha. E psicodélicos clássicos não só demonstram benefícios terapêuticos como têm bom perfil de segurança farmacológica, com baixa toxicidade e risco mínimo de causar dependência.

O encarceramento não só não resolve como agrava o problema. A população prisional no Brasil avançou de 90 mil detentos em 1990 para 753 mil em 2020 sem que a questão do tráfico se resolvesse. Ao contrário, nas penitenciárias a droga corre solta.

Na chamada cracolândia paulistana, por volta de 70% dos frequentadores já estiveram presos. Outra consequência das prisões em massa são núcleos familiares sem um dos genitores: há 30 milhões deles no país, um crescimento de 100% em 15 anos.

Cena da chamada cracolândia, no centro de São Paulo (Foto: Bruno Santos/ Folhapress)

É com esses dados que a série DR.DR. pretende acrescentar um grão de sal às noções predominantes entre juízes e promotores. O próximo passo é firmar parcerias com associações como a Ajufe, para distribuir o conteúdo entre profissionais do setor.

A série lança mão do prestígio social de juízes, promotores e médicos, todos chamados de “doutor” no cotidiano, para uma conversa de igual para igual. Todo dia eles tomam decisões que podem melhorar ou acabar com a vida de cidadãos, e a organização Justa quer contribuir para que elas promovam mais saúde pública e não tantas prisões contraproducentes, no caso das drogas.

“Usar o audiovisual para iniciar um diálogo sobre temas delicados”, explica Zaffalon. “Não apontar o dedo para a Justiça, mas convidar a pensar.”

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