Esquenta debate sobre a bagagem mística da ciência psicodélica
Um ateu não militante, que respeita quem acredita e não tenta convencer ninguém do contrário, com frequência enfrentará dificuldade diante dos ecos do misticismo que reverberam no pavilhão do renascimento psicodélico. Sempre que ciência e metafísica se misturam, a primeira sai perdendo.
Foi uma satisfação, assim, topar com o artigo “Indo além do Misticismo na Ciência Psicodélica”, de James Sanders e Josjan Zijlmans, na ACS Pharmacology & Translational Science. Poucas vezes um resumo (abstract) desencadeou premonição tão forte de comunhão intelectual:
“A moldura do misticismo é usada para descrever experiências psicodélicas e explicar os efeitos de terapias psicodélicas. Discutimos riscos e dificuldades provenientes do uso científico de uma moldura associada com sistemas de crenças sobrenaturais ou não empíricas e encorajamos pesquisadores a mitigar esses riscos com um modelo desmistificado do estado psicodélico”.
Quem acompanha este blog sabe o quanto incomoda esse enquadramento místico, posto em questão aqui e aqui. Naqueles dois posts ficou claro que a associação também inquieta alguns especialistas do campo que se reabilita após décadas no limbo imposto pela Guerra às Drogas iniciada nos anos 1970.
No centro do debate retomado por Sanders e Zijlmans há mais que esoterismo hippie e abertura das portas da percepção para realidades alternativas à estreiteza do American Way of Life que a indústria cultural espalhava pelo mundo –daí a contracultura. Nada há de errado nesse anseio por transcendência, mas o pressuposto de que drogas psicodélicas como o LSD de fato a propiciem oferece uma base pouco sólida para sua recondução à farmacopeia autorizada na saúde mental.
“Há um elefante na sala da moderna ciência psicodélica”, alerta o artigo: “Em periódicos científicos e pelos salões de toda conferência psicodélica, pesquisadores e terapeutas ensinam a importância das experiências místicas para a eficácia de terapias psicodélicas”.
Com efeito, quem já usou psicodélicos percebe bem como é tentador resvalar no vocabulário religioso, ou quase, quando se tenta descrever o estado intermediado por eles. A percepção de que algo importante está para acontecer, de estar na iminência de compreender significados elusivos, paz, tranquilidade, empatia, sensação de unidade com a natureza ou o cosmo, perda de referência no tempo e no espaço podem ser facilmente interpretadas como acesso a uma realidade última, superior, contato com o divino, com o domínio sagrado, e assim por diante.
Os problemas começam quando pesquisadores presumem ser possível medir, mais que descrever, essas vivências subjetivas e correlacionar sua intensidade mística com mudanças positivas de atitude e comportamento, como fez Roland Griffiths em 2006 num artigo famoso. Desenvolveu-se um questionário de experiência mística (MEQ, na abreviação em inglês), muito usado em estudos psicodélicos, inclusive no Brasil.
Ao aplicar o MEQ, o pesquisador pede que o participante indique seu grau de concordância ou discordância com frases como “tive uma experiência em que algo maior que eu parecia absorver-me” ou “nunca tive uma experiência na qual me sentisse como se todas as coisas estivessem vivas”. Na parte que avalia a qualidade religiosa da experiência, o vocabulário é explícito: “sagrado”, “divino”, “santo” etc.
Para Sanders e Zijlmans, isso faz pouco sentido quando se trata de medir fenômenos psicobiológicos, tal como se espera de cientistas naturais. Pior, o próprio instrumento enviesa as respostas ao fornecer para participantes a moldura conceitual e a terminologia para descrever vivências que lhes parecem quase impossíveis de pôr em palavras.
“O problema é exacerbado quando fenômenos de experiência mística são aglomerados com crenças místicas sobre o que experiências psicodélicas significam”, escrevem os pesquisadores da Universidade de Amsterdã. “Vemos evidência disso no ambiente cultural psicodélico do presente: serviços de retiro psicodélico e páginas de orientação psicodélica populares na rede estão usando a pesquisa científica para educar usuários iniciantes de psicodélicos sobre o poder terapêutico de experiências místicas.”
Sanders e Zijlmans argumentam que a integração de misticismo na pesquisa e na prática clínica arrisca criar expectativas e associações irrealistas e potencialmente problemáticas quando apresentada para leigos, incluindo grupos vulneráveis em busca de psicodélicos para problemas sérios de saúde mental.
Seu desafio aos pesquisadores da área indica a necessidade de criar um modelo descritivo, baseado na neurociência cognitiva, que prescinda da terminologia mística ou religiosa e permita medir aspectos da experiência psicodélica que possam ser correlacionados com ganhos terapêuticos, ou até mesmo explicá-los. Um dos caminhos seria a teoria do cérebro entrópico proposta por Robin Carhart-Harris, de quem se podem ouvir explicações em linguagem comum neste podcast (em inglês).
Não vai ser fácil, mas a ciência existe precisamente para isso –dar conta do que não está imediatamente acessível aos nossos sentidos, conceitos e palavras. Com respeito às últimas, confesso que não foi nada trivial escrever sobre minhas próprias viagens, no livro “Psiconautas”, em termos desprovidos de bagagem mística, como convém a um ateu. É praticamente inescapável falar em “inefabilidade”.
Não sendo militante da descrença, respeitei, e talvez até tenha invejado, a rapidez com que entrevistados tomavam outro rumo. Há algo de profundamente poético em seu esforço de atribuir os mistérios da mente a poderes superiores, e a devida apreciação estética está na raiz de todas as formas de reverência. Mas há grandeza também na contemplação metódica de fatos, fenômenos e mensurações, como prescreve a ciência.
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