Califórnia adia projeto de lei para descriminalizar sete psicodélicos

Marcelo Leite

Psilocibina, psilocina, dimetiltriptamina (DMT), ibogaína, mescalina, dietilamida do ácido lisérgico (LSD) e metilenodioximetanfetamina (MDMA): sete substâncias psicodélicas estão na mira de legisladores californianos para descriminalização, mas eles decidiram ir devagar com o andor. A tramitação do projeto de lei 519 foi suspensa por um ano.

O adiamento pode ajudar na sobrevivência política do governador democrata Gavin Newson, em voto de recall marcado para o próximo dia 14. Autor do projeto de lei 519, o senador estadual por São Francisco Scott Wiener, também do Partido Democrata, justificou suspender o debate até a legislatura seguinte para angariar mais apoio à proposta na Assembleia californiana, à qual cabe o voto decisivo.

Psicodélicos passam por um renascimento para a ciência e a psiquiatria, após cinco décadas de proibicionismo que sufocou a pesquisa terapêutica com eles. Antes da Guerra às Drogas de Richard Nixon (1971), havia aplicação e estudos clínicos de LSD em psicoterapia e para tratar alcoolismo, por exemplo –inclusive no Brasil.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Hoje estão em voga testes clínicos para depressão e drogadição, entre outras condições. O MDMA deve ser o primeiro psicodélico aprovado como medicamento de apoio a psicoterapia, neste caso para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático, autorização da FDA (a Anvisa dos EUA) esperada para 2023.

O assunto é polêmico, e interessa agora ao governador Newson e aos democratas pôr a descriminalização em banho-maria. Mas parece um processo irreversível no progressista estado americano, onde duas cidades, Oakland e Santa Cruz, já deram passos nessa direção (além de Ann Arbor, em Michigan, e Denver, no Colorado). Até conservadores libertários são favoráveis, em parte porque psicodélicos trazem esperança para melhorar a condição psíquica de veteranos das guerras do Afeganistão e do Iraque.

O caminho diverge do trilhado em outros estados, como Oregon e Washington, DC, em que a despenalização de psicodélicos como psilocibina se deu por referendos populares. Ao adotar a via parlamentar, reformistas californianos se veem na contingência de ter de negociar com políticos conservadores para ter o projeto aprovado.

Assim foi que o PL 519 recebeu emendas criticadas por alguns militantes psicodélicos. Excluiu-se da proposta a cetamina, sob pretexto de que já é um medicamento licenciado (como anestésico, porém com uso off-label crescente como antidepressivo) e que o afrouxamento pode favorecer o emprego da droga dissociativa em tentativas de estupro.

Na versão anterior, o projeto proibia o comércio dessas substâncias, permitindo só a cobrança de honorários por terapeutas e guias espirituais em atividades comunitárias. Era um ponto importante num estado com muitas comunidades psicodélicas e círculos de usuários de ayahuasca (que contém DMT) e peiote (mescalina).

“Parece haver alguma incompreensão sobre a linguagem de limite quantitativo. A linguagem proposta pretende acomodar certos ‘usos em grupo’, por exemplo grupos de cura e outros usos coletivos”, defendeu a antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna, de São Francisco, uma das iniciativas militantes pela descriminalização, ao site Truffle Report (veio de Bia a sugestão para esta nota).

“Essa linguagem parte do reconhecimento da realidade do uso de drogas, com frequência coletivo, sem ser necessariamente ‘comercial’. Como tal, parece ser um acréscimo inovador e bem-vindo à estrita noção anterior de ‘limites por pessoa’ ”, elogiava então a antropóloga.

Isso acabou modificado no texto, pois alguns parlamentares consideraram que abriria uma brecha para comercialização ampla, a exemplo do que ocorreu com maconha medicinal e, em seguida, com uso adulto (ou “recreativo”). Na versão atual, a norma em exame permitiria dar (mas não vender) psicodélico para outras pessoas, desde que a quantidade fique dentro de volumes admitidos.

O limite quantitativo enfrenta questionamento de defensores dos psicodélicos. Considera-se que ele possa estigmatizar como criminoso quem for eventualmente pego com estoques maiores, por exemplo após uma colheita de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe (que contêm psilocibina), o que mais uma vez prejudicaria desproporcionalmente negros e latinos, suspeitos de sempre na repressão a drogas.

O peso autorizado para caracterizar posse de uso pessoal parece razoável. No caso da psilocibina, 4 onças de cogumelos (113 gramas, que podem render 30-40 viagens intensas). As outras quantidades que se tornariam legais em caso de aprovação da 519, daqui a um ano:

  • LSD – 0,01 grama (ou 40 x 250 microgramas, uma dose cheia)
  • DMT – 2 gramas
  • Ibogaína – 15 gramas
  • MDMA – 4 gramas
  • Mescalina – 4 gramas
Pílulas de ecstasy (MDMA) usadas em baladas (Divulgação/DEA)

Outro ponto contencioso diz respeito ao cancelamento automático de registros criminais de pessoas condenadas anteriormente pela posse de psicodélicos e revisão de penas para quem ainda estivesse preso. A provisão foi retirada da proposta, por temor de que acarretasse ônus para o poder público na forma de reparações.

Um dispositivo curioso da legislação em estudo na Califórnia mantém proibido o peiote, fonte da mescalina tradicional, enquanto libera a posse de cogumelos psicoativos e plantas como a chacrona, usada no chá ayahuasca. Ficaria descriminalizada só a mescalina de fonte sintética, sob a justificativa de conter a coleta insustentável do cacto, que arrisca extinguir a espécie na natureza.

O estágio atual do debate legislativo sobre psicodélicos na Califórnia será objeto de um debate nesta quarta-feira organizado pelo Instituto Chacruna.

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