Brasileiros reforçam pesquisa com o psicodélico ibogaína para dependência

“Chega uma hora que a gente cansa de usar, muitas vezes ficava com o cachimbo [de crack] na mão, chorando e pensando: ‘Não tô querendo, mas tô usando’. Nossa, é uma tristeza, um sofrimento mesmo.”

Os depoimentos de dependentes de crack, como este de Luan (nome fictício), são sempre doloridos e penosos de ouvir. Não foi recolhido pelo blog, mas pelo psicólogo Bruno Ramos Gomes, para a tese de doutorado defendida em maio na Unicamp (houve breve referência ao trabalho aqui no blog, em post anterior, “Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida”.

Título da tese: “O Uso da Ibogaína no Manejo da Dependência de Drogas no Brasil: Um Estudo Qualitativo de Seguimento por Um Ano” (ainda não está disponível em biblioteca digital, mas o link será incluído aqui assim que aparecer). Eis uma contribuição importante para saber em que contextos o Brasil se tornou o país com talvez a maior experiência na aplicação do composto de origem africana para tratar abuso de substâncias.

Gomes faz parte de uma das equipes que preparam testes clínicos controlados com ibogaína em terapia para dependentes brasileiros, com epicentro no Instituto de Psiquiatria da USP em São Paulo e capitaneada pelo psiquiatra André Brooking Negrão. O outro grupo tem Rafael Guimarães dos Santos e Jaime Hallak à frente, na USP de Ribeirão Preto.

Santos e Hallak acabam de lançar no periódico Psychopharmacology, com colaboradores da Espanha, uma revisão internacional de 18 estudos publicados entre 2015 e 2020 sobre efeitos adversos da ibogaína. O levantamento agrega um caso novo de morte aos 33 arrolados em revisões anteriores (há outro óbito ocorrido no Brasil, não publicado).

O estudo dá detalhes dos problemas cardíacos, convulsões e sintomas menores (zumbido, vômito, diarreia) que podem acompanhar a viagem onírica com extratos da planta Tabernanthe iboga. Arritmias ocorrem em casos raros, mas são controláveis se o paciente estiver monitorado por pessoal médico. O artigo conclui pela necessidade de testes clínicos de fase 1 para refinar o conhecimento sobre uso seguro da ibogaína.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Esse é um dos problemas da popularização de terapias para dependentes com iboga no Brasil, como relata Gomes: nem todo atendimento se dá em condições favoráveis.

É provável que boa parte deles tenha sido tratado com segurança pelo médico Bruno Rasmussen Chaves, com internação por 24 horas e monitoramento cardíaco contínuo. Esse foi o primeiro dos contextos documentados na tese de doutorado da Unicamp orientada pelo psiquiatra Luís Fernando Tófoli.

Chaves já tratou mais de 2.000 pessoas em um quarto de século de experiência com terapia psicodélica em Santa Cruz do Rio Pardo e depois Ourinhos, no interior paulista. Ele segue à risca normas da Anvisa para importar a droga com alto grau de pureza, processo burocrático específico para cada paciente. Nunca teve um caso fatal.

A segunda situação de pacientes entrevistados por Gomes na tese é parecida, mas com diferenças importantes. O autor não nomeia a instituição, mas meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora) indica que se trata do Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), de Paulínia, outra cidade paulista, que alega o dobro de atendimentos de Chaves e registrou em 2016 uma morte horas após aplicação de ibogaína.

Menos controlado se mostra o uso do composto nos outros contextos exemplificados na tese, indivíduos e grupos que o utilizam como recurso contra dependência química numa zona cinzenta entre terapias e cerimônias religiosas com a ayahuasca. O perigo aumenta, e não se descarta que outras mortes tenham acontecido nesse circuito paralelo da ibogaína, não documentadas.

Gomes conclui que “alguns dos problemas enfrentados pelos participantes mostram riscos que devem ser levados em conta no uso da ibogaína e também em futuras regulamentações do seu uso, principalmente em relação a triagem e preparo do paciente, administração e dosagem da ibogaína e suporte durante o efeito agudo”.

O forte da tese, para interessados no aspecto subjetivo (“fenomenológico”, no jargão da ciência psicodélica), são os cinco relatos de dependentes que o psicólogo acompanhou por um ano, com entrevistas trimestrais. Um dos mitos que se desfaz com a leitura é o da ibogaína como panaceia ou bala de prata para exterminar a dependência.

Os pacientes saem melhores da experiência e descrevem como passaram por uma renovação da própria vida, mas não se livram do crack num passe de mágica. Chico (nome fictício), por exemplo, chegou a crer que encontrara a cura, como descreveu na primeira entrevista três meses de acompanhamento:

“Eu falei que me vi no uso [de crack], no dia da dose alta [de ibogaína]. Fiquei com dó de mim mesmo… Me vi desde pequenininho. Como me tornei isso?” –relatou a Gomes. “Venho de 12 internações, 20 anos de uso de crack. Eu às vezes lembro, mas não dá um trisco de vontade, nada! A memória não vem muito também. É como se eu nunca tivesse usado.”

Depois disso Chico teve recaídas esparsas, tomou ibogaína mais algumas vezes, porém com menos efeito. Procurou ajuda também na ayahuasca. Nas conversas subsequentes, já não dizia acreditar estar curado da dependência, mas sim amadurecido:

“Me tornei uma pessoa melhor, mais regrada. Nunca fui desonesto, nunca fui de mexer nas coisas do outro, mas agora tô até meio chato nessa parte. Fiquei até meio velho… Acho que amadureci. Pude me sentir uma pessoa que se resolveu com ela mesma. Ficava esperando felicidade e perguntando de onde ela ia vir… E ela tá aqui comigo. Consegui ficar feliz com o que eu já tinha.”

É de mais histórias e relatos como esse, tocantes e lúcidos, que a ciência psicodélica nacional precisa. Além, claro, de resultados sólidos da pesquisa rigorosa que pôs o Brasil na terceira posição entre os que produzem mais artigos científicos de alto impacto.

Só assim será possível vencer o preconceito que joga os psicodélicos na vala comum das drogas “demoníacas” e impede o avanço que alguns de nosso melhores cientistas perseguem, em favor da saúde mental, não sem risco para a própria carreira e reputação.

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