Como a ibogaína está ajudando uma jornalista a retomar controle da vida

Aos 37 anos, a catarinense Giselle Camargo não tem do que reclamar, ao menos em aparência: jornalista bem-sucedida fora do eixo SP-RJ-DF, diretora e apresentadora do podcast pioneiro Anticast (criado em 2011, está na origem da série de TV “Caso Evandro”), mãe de um menino de cinco anos morando numa das capitais com melhor qualidade de vida (Curitiba).

Em 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro, angustiada com a situação política e fantasmas próprios, passou a beber, entornando mais de uma garrafa de vinho por dia. Sentia esvair-se o controle da própria vida, do peso, do sono, da depressão. Tomou a decisão de reagir, e buscou na ibogaína ajuda para tirar o pé do lodo existencial em que chafurda o país: “Estamos todos doentes no Brasil”.

Cresceu numa família adventista de São Francisco do Sul (SC), onde o pai era sindicalista. Drogas não faltavam na cidade portuária. Conviveu com mais de um parente dependente químico.

Aos 23 anos partiu sozinha para São Paulo, onde teve contato com maconha, ecstasy e cocaína, sem apegar-se a nenhuma delas. “Tomei um quarto de LSD e foi horrível, muito medo.” Remédios para emagrecer eram uma constante desde os 14 anos. Em 2009 começou a tomar antidepressivos.

Com o casamento e a gravidez, a jovem de 1m72 engordou e chegou aos 127 kg. Uma cirurgia bariátrica a devolveu para 69 kg, mas ela começou a beber, algo não incomum em quem faz a cirurgia de redução do estômago. O ponteiro da balança voltou a subir: 72, 74, 78 kg.

Na pior fase, estava bebendo já de manhã, mesmo de ressaca. Seguia trabalhando normalmente e decidiu que ia mudar a vida de “alcoolista funcional”, como se define. Não se animou com tratamentos convencionais, pouco eficazes. Aí se lembrou da recomendação de um psiquiatra a um parente, anos antes, de terapia com ibogaína para dependência química.

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta africana de cuja raiz se extrai a ibogaína(Marco Schmidt/Creative Commons)

“Estou velha, no sentido de mais madura. Fui atrás. Já deu. Não tem como não dar [certo]”, contou Giselle ao blog no final de maio. Essa primeira conversa ocorreu quatro dias antes de sua sessão com ibogaína em Ourinhos (SP), aos cuidados do médico Bruno Rasmussen Chaves e do psicólogo Bruno Ramos Gomes, aos quais chegou depois de muita pesquisa, como convém a uma jornalista.

O primeiro passo foram consultas remotas de preparação, com Gomes. Falou de seu medo de morrer e deixar o filho sozinho, caso algo acontecesse com ela e o marido em trânsito para o interior paulista.

Recebeu esclarecimentos sobre o baixo risco do procedimento, que Chaves compara com o de uma pequena cirurgia, e preferiu deixar uma carta para o menino explicando o propósito da viagem. No dia 1º de junho tornou-se uma entre mais de 2.000 pacientes tratados com ibogaína pelo médico.

Chaves, um gastroenterologista, começou a ministrar o composto da planta africana Tabernanthe iboga em 1994. Travou contato com o potencial terapêutico do extrato em encontro casual com Howard Lotsof, ex-dependente que abandonou a heroína e se tornou apóstolo da ibogaína nos Estados Unidos, onde ela permanece proibida (no Brasil se veda o comércio, mas a Anvisa admite importação, caso a caso, da droga não regulamentada).

Um pouco dessa história vai contada no quarto capítulo do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo Editora), em que falo também do uso da iboga no culto Bwiti do Gabão. Nos próximos dias a newsletter MAPS Bulletin  publicará artigo sobre iniciativas pioneiras de pesquisadores brasileiros com ibogaína para drogadição.

O leitor também pode informar-se diretamente com Chaves, Gomes e o psiquiatra André Brooking Negrão, colaboradores num ensaio clínico da USP sobre dependência de crack e cocaína que participaram em 15 de julho de uma conversa sobre ibogaína organizada por Chacruna Latinoamérica.

Giselle tomou às 8h30 uma dose moderada de hidrocloreto de ibogaína (12 mg por quilo de peso), na versão semissintética com 99% de pureza da empresa Phytostan utilizada por Chaves, que mantém seus pacientes em observação por 24 horas na Santa Casa de Ourinhos. Em ambiente hospitalar, com monitoramento contínuo, fica mais fácil intervir no caso de raras arritmias cardíacas, que podem ser fatais.

Há registro de 33 mortes no mundo após ingestão de ibogaína, em geral associadas com doenças cardíacas preexistentes ou uso concomitante de outras drogas, como heroína e cocaína. Chaves nunca teve um caso de complicação grave assim.

A jornalista passou então pelas três fases características do efeito do alcaloide. Após uma hora, começou a sentir uma vibração intensa e, em seguida, tontura e zunido no ouvido, recebendo a recomendação de permanecer deitada.

Precisou de ajuda de uma enfermeira para caminhar até o banheiro. Batimentos cardíacos subiram para 89 por minuto, quando seu normal é 65-70, mas achou que era muito mais. “Aí eu caí, uma sensação no estômago, caindo no escuro, como num filme do Tim Burton.”

Era a segunda etapa, comumente descrita como inundação de pensamentos. “Eu chamaria de loucura, loucura, loucura”, conta Giselle. As primeiras imagens a passar na tela dos olhos fechados foi do marido, depois irmã, mãe e, apesar de poucas imagens da infância relatadas por outros psiconautas, uma senhora negra centenária de quando era criança, dona Alaíde.

“Pessoas para quem tenho de pedir perdão”, diz. “Chorei muito, muito. Estava sofrendo de olhos fechados. Experiências premonitórias muito doloridas.” Mas Giselle se sentia no comando da própria viagem, que lhe rendeu lampejos felizes: “Tive a sorte de ter uma mãe que gargalha”.

A bebida não apareceu em primeiro plano. Como diz Gomes, que defendeu em maio uma tese de doutorado na Unicamp sobre 12 pacientes tratados com ibogaína, ela não traz o que a pessoa quer, mas sim o que a pessoa precisa.

Giselle entrou na terceira etapa, de reflexão, que se estendeu por pelo menos 72 horas, com duas convicções. Uma: “Sou uma pessoa muito boa, apesar de ter magoado muita gente. Antes era muito crítica, achava ruim tudo que fazia”. Outra: “O que passou, passou; não vou conseguir voltar no tempo”.

Ela não encontra palavras para descrever o pico do efeito. “É inefável, não consigo dizer. Surreal. Pesado. Difícil”, afirma. “Espero nunca mais fazer isso de novo. É foda, foda, foda. Se não estiver muito preparada, é de endoidecer. Já saltei de paraquedas, e é mais difícil, é se jogar no desconhecido.”

Dois meses e meio depois da sessão, o blog faz novo contato com Giselle. Como está? “Sigo firme e forte nos propósitos que tinha ao tomar a ibogaína.” E a bebida? “Não voltei a beber e quase nunca penso nisso. Já o cigarro é mais traiçoeiro. Não tem um dia desde então em que não pense em fumar. Sonho que estou fumando.”

Um de seus receios, agora, antecipa o dia em que a Covid passar –se passar: “Quanto ao álcool, tenho medo de que a retomada da vida social, algo que ainda está em suspenso por causa da pandemia, torne a decisão de parar mais difícil. De batismo a velório, temos rituais que envolvem a bebida alcoólica”.

Um dia desses Giselle abriu um vinho branco para fazer risoto. A garrafa segue aberta na geladeira.“Não chego nem a olhar.” O porém: “Tem essa coisa de tira a droga, no meu caso álcool, e resolve o problema. Não, né? O problema só muda de lugar.”

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