O dia em que Drauzio Varella recusou LSD e o dia em que aceitou ayahuasca

Quarta-feira passada (2) foi dia de um encontro divertido –como sempre– com Drauzio Varella. Há muito não conversava com ele, e foi uma alegria encontrá-lo, ainda que numa sala virtual, para falar do livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.

O encontro, aliás, era uma transmissão ao vivo da Livraria Travessa em parceria com a Fósforo Editora para marcar o lançamento do volume. Quem perdeu, como os amigos e interessados no tema dos psicodélicos que ficaram divididos entre essa live e outra de que se falará a seguir, podem assistir aqui a pouco mais de uma hora de conversa, mediada pela colega de Folha Fernanda Mena.

Além da surpresa de descobrir que ele se chama Antonio Drauzio, como apareceu na tela, ficamos sabendo também que o médico foi aluno e depois amigo de Clovis Martins, citado no livro. Psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da USP, Martins realizou entre 1958 e 1963 pesquisas com LSD no venerando Instituto de Psiquiatria (IPq-USP), quando o ácido era medicamento legalizado e distribuído no mundo todo pelo laboratório suíço Sandoz, sob o nome Delysid.

O medicamento Delysid (LSD) era comercializado pelo laboratório suíço Sandoz nos anos 1950 e 1960

Drauzio contou que Martins chegou a ser entrevistado no programa Silvio Santos sobre estudos com LSD aplicado a pacientes do IPq-USP, objeto de sua tese de livre docência. Isso anos antes de a dietilamida do ácido lisérgico ser proibida e amaldiçoado como droga perigosíssima (o que de fato não é: não causa overdose nem dependência química, como álcool e tabaco, ambos legalizados).

O oncologista contou mais. Um paciente com linfoma grave aos 27 anos, submetido a tratamento agressivo, aparentemente enfrentou a provação com ajuda de LSD. Numa consulta, disse que daria ao médico um presente que transformaria sua vida, um papel de seda com um pingo de ácido. Drauzio, profissional e polidamente, recusou:

“Não vou ter coragem de tomar isso. Você comprou de um traficante”, ponderou o médico, como contou na live, alegando não ter meios de saber o que de fato estava de fato contido no presente. “Preferi não arriscar. Hoje me arrependo.” Houve outra chance psicodélica para Drauzio, porém, ali pelos 60 anos de idade.

Numa viagem à bacia do rio Purus, no Acre, ele tomou ayahuasca oferecida numa aldeia indígena. Viu uma estrela cadente cair bem devagar, e as estrelas do céu em movimento (a distorção da percepção do tempo é uma das características mais comuns do efeito psicodélico, um dos pontos investigados por Clóvis Martins).

Drauzio criticou na live o círculo vicioso em que se encontra presa a emergente ciência psicodélica: faltam estudos para lhe dar maior credibilidade, mas a pesquisa termina muito prejudicada pelas dificuldades impostas pelo preconceito, pelo que chamou de visão enviesada da sociedade quanto a drogas psicoativas.

Mencionou que a depressão é apontada pela OMS como maior causa de absenteísmo no trabalho. “É uma doença grave, muitos morrem de depressão”, disse, e os antidepressivos disponíveis são muito limitados.

Psicodélicos podem revelar-se uma alternativa promissora, inclusive porque não teriam provavelmente uso contínuo, como os antidepressivos atuais. Não seria nada mau romper com esse modelo das grandes empresas farmacêuticas e, talvez, contribuir para desfazer o mito de que o bem-estar pode ser encontrado numa cápsula para tomar todos os dias.

“As pessoas querem uma pílula para emagrecer, uma pílula para ser feliz. É enorme a quantidade de pessoas que tomam antidepressivos, um absurdo. Ginecologistas e ortopedistas receitam”, alertou Drauzio. “Quase todo mundo toma remédio para dormir. Não sabemos quais serão as consequências a longo prazo. Distúrbios de memória? Alzheimer?”

No mesmo horário da live, por uma dessas coincidências indesejáveis, acontecia um dos Encontros Psicodélicos que o site Ciência Psicodélica realiza todas as primeiras quartas-feiras do mês. E o assunto foi logo depressão, objeto de um teste clínico com ayahuasca no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, e não do Rio de Janeiro, como se disse na primeira live, um lapso; eu também afirmei que o cacto peiote é um cogumelo, e vários que assistiam logo me corrigiram, felizmente).

Os convidados da segunda live foram Fernanda Palhano-Fontes, engenheira que coordenou o teste clínico liderado pelo físico Dráulio Barros de Araújo no ICe-UFRN, e Dimitri Daldegan-Bueno, biólogo atualmente na Universidade de Auckland, Nova Zelândia. Neste caso, uma bate-papo muito mais informado, porém superdidático, com especialistas mergulhados até o pescoço em ciência psicodélica.

Fernanda contou em detalhes a história que aparece resumida no livro “Psiconautas”, sobre o experimento que tomou dois anos e meio em Natal (RN) e foi objeto de seu doutorado. Começou com a palestra de Dráulio (não confundir com Drauzio) a que assistiu na época em que se formava em engenharia elétrica e começava a lidar com análise de imagens do cérebro por técnicas como ressonância magnética funcional.

Fernanda Palhano-Fontes, Lucas Maia e Dimitri Daldegan-Bueno

A entrevista para o mestrado com Dráulio foi a primeira vez em que ela ouviu falar de ayahuasca, mas a candidata a pesquisadora não se intimidou e abraçou a chance de se tornar uma neurocientista. “Foi fácil se envolver, o assunto é fascinante.” Na parede atrás da jovem de aparência doce e delicada, um cartaz com uma frase em inglês dizia: “Apoie a mulher enraivecida do local” (ou, em tradução mais solta, “mulher-pistola”, “your local angry woman”).

Dimitri, seu interlocutor sob a mediação de Lucas Maia, é um psicólogo que trabalhou com modelos animais de depressão, roedores no caso. Ele e Fernanda deram verdadeira aula sobre como se estudam psicodélicos para transtornos mentais, desde a fase pré-clínica até as fases 3 e 4, quando novos medicamentos ou terapias são aprovadas para uso geral. Ótima introdução.

Não é o caso ainda das drogas que protagonizam hoje o chamado renascimento psicodélico, como ayahuasca, LSD, psilocibina e ibogaína. Mas o MDMA (base do ecstasy, que muitos preferem chamar de empatógeno e não de psicodélico) está perto disso nos EUA, onde deve tornar-se tratamento autorizado para transtorno de estresse pós-traumático em 2022 ou 2023.

SAIBA MAIS

Livro “Psiconautas” (Fósforo Editora)

(Reprodução)