Psicodélico contra dependência química corre risco com superexploração
Toda inovação vem ao mundo sob o espectro dos efeitos não pretendidos, e com a ibogaína não seria diferente. A procura pelo composto psicodélico, hoje a maior promessa de tratamento eficaz contra dependência química, arrisca criar uma ameaça para a planta da qual é extraída, com prejuízo para ritos africanos que a legaram ao mundo e até para doentes que poderia recuperar.
O alerta está no relatório “Charting a Path Forward for Iboga” (traçando um caminho de avanço para iboga, minha tradução), publicado pelo Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico (Iceers, em inglês).
A organização sediada em Barcelona chama atenção para os riscos à sobrevivência do arbusto Tabernanthe iboga nas florestas da África e para a falta de reconhecimento à religião Bwiti, que a emprega em seus ritos de passagem. Além disso, destaca a falta de segurança na disseminação desregrada de tratamentos em clínicas alternativas.
O documento de 38 páginas se baseia em entrevistas com 55 pessoas em 12 países –praticantes, terapeutas, antropólogos, cientistas naturais, líderes religiosos etc.– e outras 228 em 34 nações que participaram respondendo questionários. Entre eles estava o médico brasileiro Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), que tem larga experiência em aplicação de ibogaína em dependentes químicos.
A ibogaína é usada legalmente para fins médicos em três países: África do Sul, Brasil e Nova Zelândia, onde se admite uso compassivo em situações excepcionais. Embora a droga seja conhecida desde o século 19 e tenha sido usada como remédio para fadiga e depressão na França, acabou proibida na maioria dos países na década de 1970, ao lado de psicodélicos como LSD e psilocibina (cogumelos).
O centro de gravidade do levantamento foi o Gabão, país centro-africano no epicentro da religião Bwiti e da ocorrência natural do arbusto iboga (encontrado também em Camarões, na Costa do Marfim e no Congo). Com a demanda pelo extrato da planta e a proibição de exportação pelo governo gabonês em 2019, estima-se que a maior parte da ibogaína usada terapeuticamente no mundo tenha origem ilegal.
As raízes de que se obtém a droga são colhidas cladestinamente no Gabão, levadas para Camarõea e chegam ao mercado como se fossem procedentes de lavouras camaronesas. A coleta assume escala predatória, e a lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) classifica a situação da planta como preocupante, ainda não em risco.
“Esta situação leva o grupo de clínicas que trabalham com iboga ou ibogaína, assim como indivíduos e comunidades que adquirem iboga por razões psico-espirituais ou psicoterapêuticas, a recorrer ao mercado ilegal de iboga”, constata o relatório. “Conscientemente ou não, tornam-se colaboradores na progressiva depredação da planta sagrada.”
Pode-se sintetizar a substância a partir de extratos de outro vegetal, Voacanga africana. Mas só 20% da ibogaína usada em clínicas vem dessa fonte mais sustentável, estimou o levantamento, e uma das razões é o preço: um grama de hidrocloreto de ibogaína, a forma solúvel, pode custar US$ 165; no Brasil, uma dose de 15 miligramas por quilo de peso do paciente custa em torno de R$ 5.000.
A organização não governamental Blessings of the Forest (bênçãos da floresta) recebeu autorização em 2020 do governo gabonês para iniciar plantações de T. iboga com vistas a exportação de matéria-prima certificada, com compensação para comunidades tradicionais. Mais de 3.000 pés de iboga foram plantados em três áreas; o plano prevê 10 mil em 2021 e 100 mil até 2023.
Alguns laboratórios e grupos de pesquisa trabalham para patentear métodos de extração ou síntese do composto, alerta o relatório. E há também corrida para desenvolver moléculas análogas para uso terapêutico que não desencadeiem a perturbadora viagem da ibogaína, que pode ultrapassar 24 horas, dependendo da dose, e que os Bwiti consideram dar acesso ao mundo dos espíritos.
Ambas as estratégias causam preocupação em povos tradicionais e defensores da repartição de benefícios, como detectou o grupo do relatório em visita de várias semanas ao Gabão, quando 56 pessoas em 12 comunidades Bwiti foram entrevistadas. A controvérsia sobre propriedade intelectual de psicodélicos presentes na natureza, de resto, já pega fogo no caso da psilocibina de cogumelos do gênero Psilocybe, sintetizada desde os anos 1960.
Por fim, o relatório destaca a necessidade de articulação entre todos que trabalham com ibogaína, sobretudo nas clínicas para dependentes químicos, para criar protocolos de segurança. A substância pode provocar arritmias cardíacas potencialmente fatais, se não houver pronto atendimento médico.
Um estudo de 2018 identificou 33 casos de morte documentados em periódicos científicos, vários deles associados com doenças preexistentes ou consumo concomitante de outras drogas (cocaína, heroína, álcool, benzodiazepínicos etc.). Por essa razão algumas clínicas não administram o tratamento sem antes submeter dependentes a exames do coração e testes toxicológicos e monitoram a pessoa durante toda a sessão onírica.
Para o médico Bruno Rasmussen Chaves, “o modelo médico é o mais seguro e o que vai permitir maior acesso às pessoas que precisam, pois é uma substância que requer um pouco mais de cuidados ao ser usada do que os outros psicodélicos”.
“A Voacanga africana é uma ótima fonte de ibogaína, preserva o meio ambiente, é sustentável, respeita o Protocolo de Nagoya, além de que seu cultivo e coleta são fonte de renda para comunidades de Camarões. E ajuda a preservar a Tabernanthe iboga. Acho que o futuro está aí. E, claro, a molécula extraída da Voacanga é a mesma extraída da T. iboga, o efeito é o mesmo.”
O relatório publicado pelo Iceers recomenda articulação de todos os interessados no emprego da ibogaína para trocar informações, criar protocolos de uso e influenciar a regulamentação que, acredita-se, acabará por vir na esteira do renascimento psicodélico.
“Apesar da ausência de regulamentos específicos, tem havido diversas colaborações respeitosas e exemplares entre cientistas, companhias e comunidades nativas a partir das quais se desenvolveram conjuntos de produtos e conhecimento”, afirma o texto, indicando que a repartição de benefícios da comercialização com as comunidades, nesses casos, fica entre 10% e 20% dos lucros.
André Brooking Negrão, coordenador do teste clínico com ibogaína para dependentes de crack e cocaína em vias de ser iniciado no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, diz que a questão do reconhecimento ao saber tradicional está no rol de preocupações para seus protocolos de pesquisa: “Qualquer estudo nessa área de enteógenos e etnobotânica tem de levar isso em consideração, o respeito devido pela universidade à produção e ao conhecimento locais”.
“Uma vez que o mercado é ilegal, [precisa haver] não só certificação de procedência, mas de pureza, por respeito à segurança de pessoas para quem a droga vai ser administrada”, diz o líder do ensaio clínico, no qual se utilizará a droga fornecida pela empresa Phytostan, que trabalha com preparados a partir da Voacanga.
O documento do Iceers alerta, por fim, para a questão do acesso: “Se o desenvolvimento da ibogaína seguir os modelos ocidentais típicos de desenvolvimento farmacológico, em que o lucro vem antes do bem comum, o acesso a benefícios terapêuticos continuará a ser limitado somente para aqueles que podem pagar por eles”.
SAIBA MAIS