USP testa psicodélico ibogaína contra dependência de crack e álcool
A posição de destaque do Brasil em ciência psicodélica fica mais evidente com estudos da USP para combater dependência de crack/cocaína e álcool: há somente quatro ensaios clínicos duplo-cego registrados no mundo para novos testes da droga ibogaína, e dois deles acontecem aqui.
O composto originário da planta africana Tabernanthe iboga, é usado desde os anos 1960 para tratar crises de abstinência e interromper o uso compulsivo. Antes, era empregado em rituais da etnia bwiti, no Gabão e Camarões, e vendido como o antidepressivo Lambaréné na França, de 1939 a 1970, mas terminou abandonado quando se verificou o risco de arritmias cardíacas.
Tradicionalmente, a substância era obtida da raiz do vegetal. Hoje se utiliza a versão sintética purificada, cloridrato de ibogaína, nos estudos experimentais, em clínicas e grupos alternativos de tratamento.
A ibogaína é proibida em vários países. No Brasil ela não aparece na lista de substâncias controladas nem está regulamentada para uso terapêutico. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só permite importação individual, com indicação médica, embora não haja estudos conclusivos sobre sua eficácia.
Duas unidades da USP decidiram enfrentar o desafio para suprir essa deficiência na literatura científica, diante do acúmulo de indícios de sucesso no tratamento de dependência. Duas clínicas no interior paulista, por exemplo, reúnem casuística contendo milhares de pacientes e alegam taxas de sucesso da ordem de 60-70%.
André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, lidera o estudo mais ambicioso. Em sua mira estão crack e cocaína, que levam dezenas de pessoas todos os meses a buscar socorro no ambulatório do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA).
“O dia a dia de quem cuida de [dependentes de] crack e coca é muito infeliz”, diz Negrão, referindo-se às altas taxas de reincidência. “Resolvi fazer isso [pesquisa com psicodélicos] o resto da minha vida”, diz o psiquiatra de São Paulo, frustrado com a ausência de medicamentos comprovadamente eficazes para pacientes que desejam reduzir ou abandonar o consumo.
O teste de fase 2b, para verificar eficácia e segurança, envolverá 80 dependentes de crack ou cocaína (40 homens e 40 mulheres). Eles serão internados por dez dias, os sete primeiros para assegurar abstinência, o que será confirmado por exames toxicológicos.
Todos passarão por oito sessões de psicoterapia, quatro de preparação e quatro de integração (discussão dos conteúdos psíquicos aflorados durante a experiência com ibogaína), com participação de familiares. Esse é o protocolo usual de pesquisa com psicodélicos para transtornos psíquicos como depressão e estresse pós-traumático, os mais adiantados.
Como os psicodélicos clássicos LSD, psilocibina (“cogumelos mágicos”) e DMT da ayahuasca, a ibogaína atua sobre receptores do neurotransmissor serotonina, importante na regulação de humor, libido e outras funções. A viagem pode durar muito, até mais de 24 horas, e lança a pessoa num estado de sonho lúcido.
Alguns pesquisadores preferem qualificar a substância como oniroide, onirofrênica ou onirogênica. São frequentes relatos de quem revive sob seu efeito situações difíceis, como overdoses, e sensações de morte e renascimento. Também se manifesta intensa empatia com sofrimento alheio e o próprio, não raro acompanhada de remorso por perceber-se como fonte de ambos.
A descoberta de que a ibogaína também suprime efeitos dolorosos da abstinência se atribui a Howard Lotsof. Em 1962, o americano dependente de heroína experimentou a droga africana com a promessa de dois dias de viagem; quando voltou do transe, surpreendeu-se sem os sintomas físicos da síndrome de abstinência.
Lotsof tornou-se a partir daí um apóstolo da ibogaína. Em 1994, o gastroenterologista Bruno Rasmussen Chaves almoçou com ele no refeitório da Universidade de Miami, durante um estágio, e tomou conhecimento da droga, que passou a empregar para tratar dependentes três anos depois, primeiro em Santa Cruz do Rio Pardo e depois em Ourinhos, ambas cidades paulistas.
O médico interna pacientes na Santa Casa, onde os monitora durante toda a viagem, para intervenção imediata em caso de arritmia cardíaca. Nunca teve um caso fatal, informa. Centenas de tratamentos depois, Chaves é hoje um dos colaboradores de Negrão no teste clínico.
“A administração do cloridrato de ibogaína no Brasil tem sido feita com base em protocolos inconsistentes quanto às doses terapêuticas, ao grau de pureza da ibogaína administrada e à adequação do suporte médico”, adverte Negrão a respeito de centros de tratamento alternativo.
“Há relatos na literatura de mortes associadas com o uso concomitante de ibogaína e outras substâncias psicoativas, além de um possível risco intrínseco da substância sobre a condução cardíaca.”
O pesquisador Geoffrey Noller, da Nova Zelândia, encontrou relatos de 19 mortes ocorridas entre 1990 e 2008 no prazo de três dias após ingestão de ibogaína. A maioria vitimou pessoas com problemas cardíacos prévios ou em decorrência de interação farmacológica com outras drogas cujo abuso não fora interrompido.
Em 2016 um grupo neozelandês liderado por Paul Glue publicou ensaio com 27 voluntários dependentes de opioides tratados com um composto aparentado, noribogaína, metabólito ativo no corpo de quem ingere ibogaína. O estudo teve a colaboração das empresas americanas DemeRx e iCardiac.
A comparação com o grupo de controle na USP, metade das mulheres e dos homens a serem recrutados que não receberá ibogaína, só psicoterapia, permitirá afirmar com segurança estatística se o psicodélico de fato surte efeito sobre a dependência. Afinal, melhoras espontâneas acontecem, oriundas de expectativa (efeito placebo) ou da determinação da pessoa para abandonar a droga.
Os pacientes e seus familiares serão acompanhados por três meses no ambulatório. Depois disso, por um ano, serão monitorados remotamente.
O estudo estava pronto para começar, com aprovação de comitês de ética, em maio do ano passado. A pandemia de Covid-19 inviabilizou o uso dos leitos oferecidos pelo Instituto de Psiquiatria e restringiu o fornecimento de ibogaína proveniente da Índia. Negrão afirma que o recrutamento será rápido assim que as vagas ficarem disponíveis novamente e a importação for retomada.
A eclosão da pandemia também atrapalhou o início do outro ensaio clínico da USP, aprovado e registrado ainda em 2017, neste caso pelo grupo de neurociência e ciências do comportamento liderado por Jaime Hallak na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. O investigador principal do experimento é Rafael Guimarães dos Santos.
O estudo de Ribeirão não tem relação com o de São Paulo. Testará a tolerabilidade da ibogaína, com um grupo de apenas 12 pessoas, para outro tipo de dependência, alcoolismo. Segundo Santos, o álcool foi escolhido por causa da alta prevalência do abuso dessa substância legal no Brasil, que afeta cerca de 10% da população.
O desenho do experimento é bem diferente. Voluntários ficarão internados por 20 dias, e os primeiros três pacientes receberão três doses sucessivas e crescentes de ibogaína; não havendo efeitos adversos, os outros nove receberão a droga ou placebo, por sorteio.
O consumo de álcool pelos participantes será então acompanhado a cada semana no primeiro mês. Depois disso, nos 3º, 6º e 12º meses.
O primeiro estudo controlado do mundo com ibogaína estava planejado para acontecer na Espanha, onde Santos fez seu doutorado de 2006 a 2012 com o conhecido estudioso de psicodélicos Jordi Riba (morto em agosto de 2020). Outra morte, de Manel Barbanoj, que conduziria o ensaio com José Carlos Bouso, adiou os planos.
Assíduos colaboradores de Bouso, Hallak e Santos combinaram com ele efetuar o teste clínico no Brasil. Em paralelo, os brasileiros colaborarão com o pesquisador espanhol na realização de ensaio parecido, mas no tratamento da dependência de metadona, droga utilizada para redução de danos com dependentes do opioide heroína.
O quarto estudo clínico com ibogaína em preparação no mundo ocorrerá no Reino Unido. As empresas DemeRx e Atai Life Sciences tiveram sinal verde da agência reguladora britânica MHRA para testar a droga no tratamento justamente de dependentes de opioides.
O plano dos empresários britânicos é recrutar 110 voluntários, no total: primeiro 30 saudáveis (usuários recreativos de drogas), para estabelecer a segurança do composto, e 80 adictos numa segunda etapa, já com vistas à desintoxicação.
O fato de metade dos testes clínicos com ibogaína se realizarem no Brasil não é de todo surpreendente. O país tem tradição de pesquisa com psicodélicos, em especial DMT e outras substâncias da ayahuasca, facilitada pela legalização de seu uso em religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV).
Na voga atual de trabalhos científicos após meio século da fracassada Guerra às Drogas liderada pelos EUA (1971), o chamado renascimento psicodélico, brasileiros têm se destacado. Num levantamento de artigos maior impacto (número de citações), o Brasil ficou em terceiro lugar, após EUA e Reino Unido.
O composto mais estudado fora daqui é a psilocibina dos cogumelos Psilocybe, além de LSD e MDMA, para uma série de condições, como depressão (fase 2) e estresse pós-traumático (fase3). A ayahuasca motivou o primeiro teste clínico controlado por placebo de um psicodélico para depressão após o renascimento, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicado em 2018.
A ibogaína tem sido menos pesquisada, apesar do volume de relatos observacionais de sucesso no tratamento de dependência, por causa dos riscos cardíacos e das mortes, ainda que raras. Mas seu uso com acompanhamento médico, como em Ourinhos, tem demonstrado segurança suficiente para uma instituição como a USP se lançar na pesquisa.
A logística, entretanto, encarece o ensaio clínico, pela necessidade de internação e garantia de que os voluntários não tenham no organismo drogas que possam interagir com a ibogaína e afetar o coração. Só com os leitos para o estudo com usuários de crack Negrão orçou despesa de R$ 336 mil, já autorizada pelo Instituto de Psiquiatria (e adiada pela pandemia).
Um dos fatores para o interesse brasileiro pela ibogaína, cita Negrão, esteve em estudo retrospectivo (não controlado) publicado por Bruno Chaves e Eduardo Schenberg em 2014. “Houve um boom de clínicas fazendo iboga no Brasil”, diz.
O artigo descreve levantamento com 75 dependentes de álcool, maconha, cocaína e crack. Cinco meses após tratamento com ibogaína, 61% ainda estavam em abstinência.
Para Rafael dos Santos, da USP em Ribeirão Preto, o interesse do grupo de Jaime Hallak está em expandir as linhas de pesquisa. “A experiência acumulada com estudos de ayahuasca nos últimos quase 20 anos, aqui, nos trouxe o conhecimento para desenvolver pesquisas com esse tipo de substâncias que modificam profundamente a consciência.”
Santos enxerga como vantagem comparativa do Brasil a experiência com ayahuasca e ibogaína, que enfrentam mais restrições legais noutros países. “Por outro lado, temos mais dificuldades para realizar estudos com psilocibina e LSD.”
Os líderes dos testes clínicos reconhecem preconceito na academia com ciência psicodélica, mas não a ponto de dificultar a aprovação dos ensaios por comitês de ética. A liderança nacional nessa área efervescente da pesquisa mundial, entretanto, pode ainda sofrer com o clima político e ideológico no país polarizado.
A ibogaína entrou no radar do governo Jair Bolsonaro. Em reação ao emprego de ibogaína em comunidades terapêuticas para dependentes, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, baixou em agosto a nota técnica nº 64 ameaçando-as com descredenciamento e suspensão de contratos de prestação de serviços com o governo federal.
“Felizmente, as pesquisas com alucinógenos psicodélicos são vistas como pesquisas, sem tanto teor ideológico. Isso se deve em grande parte à seriedade dos grupos de pesquisa”, afirma Rafael dos Santos. “Somente com seriedade e rigor vamos avançar nessa área.”
Os dois estudos da USP serão apresentados ao público internacional na próxima edição do Maps Bulletin (no prelo), publicação quadrimestral da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos dos EUA. Trata-se da ONG responsável pelo teste clínico mais adiantado (fase 3) do mundo com terapia psicodélica para transtorno psiquiátrico (no caso, MDMA e estresse pós-traumático).
Curso “História das drogas psicodélicas para uso medicinal e sua demonização”, no site Bora Saber.