Liberação de terapia com psilocibina em Oregon enfrenta resistência empresarial
No estágio atual do renascimento psicodélico em psiquiatria e psicoterapia, fica cada vez mais claro que está longe de ser um movimento unificado a aproximar pesquisadores, investidores e psiconautas, todos marchando na mesma direção. Ele se parece mais e mais com pessoas convergindo a uma sorveteria após longos passeios separados num dia de verão, quando cada cliente está ansioso por escolher a guloseima com maior probabilidade de propiciar a melhor experiência ao paladar –no caso dos psicodélicos, os melhores benefícios para a saúde mental.
Há um senão: cada cliente deve pensar duas vezes antes de optar por uma cumbuca misturada. Alguns sabores simplesmente não combinam com outros e podem arruinar o dia agradável.
O sorvete de creme do empreendimento psicodélico se baseia no modelo da medicalização, com testes clínicos, aprovação por agências reguladoras, investidores capitalistas, patenteamento de moléculas e processos e todo o percurso burocrático voltado para reembolso por planos de saúde. Este é o sabor que faz barulho nos círculos e publicações empresariais, que costumam se entusiasmar com qualquer oportunidade de investimento num mercado de massa com potencial para alcançar centenas de bilhões de dólares em poucos anos.
A escolha pouco imaginativa tem por cobertura alguma controvérsia, também, causada por empresas como a Compass Pathways e suas patentes amplas demais em aplicações de psicoterapia com psilocibina sintética, o ingrediente psicoativo orginalmente obtido de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe, atualmente em testes clínicos para tratar depressão e várias outras condições.
Há também uma versão menos previsível do sabor popular, por assim dizer o sorvete de pistache da psicodelia. Iniciativas como a Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) acrescentam ingredientes incomuns à receita convencional ao abrir mão de lucros como objetivo primário e de direitos de propriedade intelectual (PI) sobre inovação por meio de patentes. De olho no benefício público, a Maps prefere privilegiar direitos exclusivos de comercialização de tratamento, menos restritivos, conferidos pela FDA (agência americana de fármacos) ao aprovar uma nova terapia. Com a diferença de que tal exclusividade sobre dados clínicos não impede que outros atores produzam seus próprios dados.
O Instituto Usona, de Wisconsin, segue trilha semelhante ao publicar todos os passos que desenvolveu para a síntese da psilocibina e tornar sua própria versão da droga disponível a outros pesquisadores interessados em testá-la.
Por fim, há o sabor açaí do acesso a psicodélicos, por sua excentricidade, aprovado em Oregon em novembro de 2020 com 56% dos votos: a Medida 109. Os eleitores desse estado do noroeste dos EUA ignoraram as opções creme e pistache e partiram direto para a novidade mais surpreendente, incluída no menu por Tom e Sheri Eckert, iniciadores e peticionadores principais da 109, que estabeleceu um programa estadual de psicoterapia com psilocibina, longe do alcance dos reguladores de Washington DC a da trilha batida das patentes.
Além disso, outra medida de Oregon, a 110 (Lei sobre Tratamento e Recuperação de Dependência de Drogas), foi aprovada com 58% dos votos. De acordo com um artigo de Ismail Ali na última edição do MAPS Builletin, trata-se possivelmente da mais promissora reforma de política de drogas até agora nos EUA, pois é a que chega mais perto de repudiar a mentalidade de criminalização consagrada na Guerra às Drogas e de substituí-la por outra baseada em saúde pública, compaixão e tratamento não-coercitivo.
“Particularmente, a Medida 110 foi o primeiro esforço bem-sucedido nos EUA para descriminalizar o uso pessoal de várias substâncias, inclusive MDMA, LSD, cetamina, metanfetamina e heroína, ao mesmo tempo em que adotava a pioneira descriminalização em nível estadual de plantas, cactos e fungos do Schedule 1 [lista de substâncias proibidas e controladas].”
Em outras palavras, um lance ainda mais radical, já que a Medida 110 vai muito além da 109 ao abranger todas as drogas e o assim chamado uso recreativo, não só a psilocibina para terapeutas licenciados.
A pergunta de centenas de bilhões de dólares que permanece, para retornar aos sorvetes salpicados com psilocibina: Há espaço para todos os sabores na mesma cumbuca psicodélica? Poderia o açaí se mostrar forte demais para os frequentadores costumeiros? Ou ainda, vice-versa, poderia a preferência de capitalistas pelo sabor creme das patentes e reembolsos submergir os esforços em Oregon para tornar a psilocibina mais acessível para os que dela precisam?
“Uma inspiração para a campanha [da 109] foi simplesmente terminar a proibição de 50 anos para a terapia psicodélica, o que já passava da hora, na minha opinião”, disse Tom Eckert em resposta por email. Sheri, Tom e seus companheiros estavam igualmente dedicados a refletir sobre a melhor maneira de integrar os psicodélicos de volta na cultura:
“Vimos a iniciativa de votação como ferramenta perfeita para cavar um espaço para a psicoterapia com psilocibina e erguê-la sobre uma fundação própria. Isso é importante porque os marcos de referência existentes, seja a medicalização movida pela indústria farmacêutica, seja a legalização ao estilo da cânabis, não pareciam ser bem o correto, ou, no caso da medicalização, pareciam incompletos em termos de acesso. Por isso queríamos entalhar uma moldura que desse conta da oferta.
Eckert integra a Comissão Consultiva para Psilobina formada pela Autoridade de Saúde de Oregon (OHA em inglês), como previsto na 109, com a tarefa de desenvolver as normas e regulamentos para disciplinar as aplicações e licenciá-las, assim como manufatura e rastreamento do composto, além do provimento de terapias. A comissão tem até junho de 2022 para fazer suas recomendações, e se espera que a OHA comece a aceitar pedidos de licenciamento de terapeutas e produtores em janeiro de 2023.
Esse cronograma é capaz de tornar a terapia assistida por psicodélicos disponível para o público de Oregon mais rápido que qualquer das iniciativas pela via da FDA. Os ensaios clínicos com psilocibina para depressão da empresa Compass e do Instituto Usona se encontram na fase 2, e mesmo a fase 3 da MAPS com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático não deve ganhar aprovação antes disso. Talvez seja essa a razão pela qual alguns entusiastas do sorvete de creme torcem o nariz para o açaí de Oregon.
Um dos primeiros a pôr a boca no trombone foi David Bronner, auto-intitulado Executivo de Engajamento Cósmico (CEO em inglês) da Dr. Bronner’s, empresa fornecedora dos sabonetes naturais mais vendidos nos EUA. Num artigo publicado no blog da companhia, All-One, sob o título “Sounding the Alarm on Compass’s Interference With Oregon’s Psilocybin Therapy Program” (soando o alarme contra a interferência da Compass no programa de terapia com psilocibina de Oregon), Bronner afirmou não só que as patentes da Compass sobre a síntese de psilocibina poderiam dificultar a produção do medicamento pelo Usona, mas também que o CEO da Compass, George Goldsmith, estaria tentando organizar oposição à 109 entre pesquisadores psicodélicos na Universidade de Saúde e Ciência de Oregon.
A Compass nega qualquer interferência. “Não estamos tentando mobilizar oposição à implementação da 109”, afirmou em mensagem de email a chefe de comunicação Tracy Cheung. “O povo de Oregon votou a favor da medida, refletindo a imensa necessidade não atendida em cuidados de saúde mental. Respeitamos e entendemos isso, e não é nossa intenção fazer coisa alguma para mudá-lo.” Após elogiar a 109 como abordagem radicalmente nova para acesso a terapia com psilocibina capaz de ajudar milhões de pessoas, Cheung afirmou que ela “também levanta desafios e questões sobre como será implementada para assegurar segurança e acesso equitativo para os necessitados”.
“Acreditamos que a via médica regulamentada é a melhor maneira de assegurar segurança, eficácia e qualidade para qualquer medicamento ou terapia. Para tanto, estamos desenvolvendo nossa terapia com psilocibina COMP360 por meio de testes clínicos”, ressalvou. “Evidência clínica e aprovação regulatória são também pré-requisitos para qualquer consideração de reembolso. Isso significa que acreditamos ser a via médica a forma mais segura e eficaz de introduzir terapia com psilocibina (se aprovada) no sistema de saúde, com reembolso e tornada disponível para todos que possam beneficiar-se dela.”
Eckert explicou ter conversado com Goldsmith durante a campanha da 109, mas não depois disso. “Foi informativo e cordial, apenas uma troca de perspectivas. Ele vê a psilocibina com as lentes médicas, enquanto eu vejo mais um modelo de acesso, ou um modelo de terapia e bem-estar”, disse, negando ter qualquer informação sobre os alegados contatos de Goldsmith com pesquisadores de Oregon.
Eckert não acredita que os movimentos e patentes da Compass possam afetar o trajeto psicodélico de Oregon. O estado emitirá licenças para cultivadores e desenvolvedores de produtos de acordo com seus próprios padrões. Um espectro de produtos ou medicamentos será provavelmente oferecido para uso conforme a regulamentação, incluindo versões orgânicas, extraídas dos cogumelos.
“Aqui em Oregon, embora conhecedor de padrões de saúde, minha impressão é que realmente não enxergamos a psilocibina como uma droga farmacêutica e, assim, não a regulamentaremos dessa maneira. É claro que a própria psilocibina não pode ser patenteada, e, diante do marco regulatório e das provisões legais de Oregon para produtos inclusivos, patentes sobre processos específicos de produção não parecem relevantes. Você não pode realmente patentear o cultivo de cogumelos, e protocolos para produtos sintéticos ou biossintéticos estão cada vez mais em domínio público, segundo entendo.”
O principal argumento contra as pretensões da Compass se baseia, de fato, no princípio de que algo inerente ao estado da técnica (prior art) não pode ser patenteado. A psilocibina naturalmente existente tem sido usada há séculos em situações rituais por povos tradicionais <https://viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/artigo-pede-retribuicao-a-povo-mazateca-por-revelar-espiritu-de-cogumelos/> e por décadas em tratamentos alternativos por terapeutas, legalmente antes da proibição e sob o radar depois disso. Embora a empresa já tenha obtido três patentes de psilocibina nos EUA, uma maneira de contestar seus esforços de “cercamento” está em reunir num único repositório acessível toda a informação existente sobre aquela substância particular e outros compostos psicodélicos.
Pelo menos essa é a visão no Usona sobre a questão. Bill Linton, diretor executivo, deixou claro em mensagem de email que ele não é contra patentes em geral: “Acreditamos firmemente no sistema de patentes, que promove o reconhecimento de reivindicações consideradas legítimas, novas, úteis e não óbvias. Funcionários de patentes precisam se basear em dados que possam obter facilmente a respeito de informações no domínio público, de maneira a saber se devem aceitar pedidos de patentes”.
Nas próximas semanas, segundo informou, uma organização independente passará a prover um portal de referência projetado para ajudar agentes de patentes e funcionários no mundo todo a acessar facilmente milhões de documentos, artigos publicados, resultados de pesquisa científica, conferências, simpósios, bibliotecas de arquivos, notas na rede e fontes similares de informação relacionadas com terapias psicodélicas e temas associados. “Isso estará acessível para qualquer indivíduo ou organização, economizando tempo e despesas envolvidas em determinar patentabilidade”, afirmou, sem dar mais detalhes.
Um exemplo nessa linha é Freedom to Operate (liberdade de operação), organização sem fins lucrativos lançada por Carey Turnbull, que integra o comitê diretor do próprio Usona. Ele fundou a ONG com o propósito de proteger a ciência psicodélica e o desenvolvimento médico no interesse público, por meio de desafios a patentes inapropriadas –aquelas que tentam se apoderar de conhecimento preexistente no espaço público e depois vendê-lo de volta como invenção. O princípio é que patentes equivocadamente emitidas impedem a pesquisa e a inovação por outras organizações e criam ônus excessivo ou perdas para a eficiência da economia.
É o caso de perguntar se essas iniciativas não serão muito pouco muito tarde, em face do tremendo impulso ganho por investidores quando tomaram o bonde andando dos psicodélicos.
Eckert, de sua parte, nada tem de pessimista quando se trata dos vários modelos para levar benefícios de psicodélicos para quem precisa: “A aprovação da FDA para psilocibina e MDMA será enormemente positiva, e cumprimento organizações como Usona e Maps por sua tentativa de inovar abordagens baseadas em ciência aberta, melhores, talvez, do que costumamos esperar da indústria farmacêutica”.
Na sua visão, se um modelo de prescrição médica com reembolso por planos de saúde vier a ser aprovado, a infraestrutura em desenvolvimento em Oregon iria apoiá-lo e facilitá-lo, ao mesmo tempo em que continuaria a oferecer acesso seguro para um número de pessoas presumivelmente maior sem prescrições ou diagnósticos. “Ambos os modelos deveriam coexistir naturalmente dentro de um esquema integrado. Para aqueles em busca de cura psicodélica, deveria ser uma questão de conforto e escolha; todas as opções de uso responsável deveriam ser permitidas. O sucesso de cada área ou abordagem não deveria de modo algum bloquear o sucesso de outra. A coesão entre medicina, terapia e bem-estar representa o melhor serviço para o movimento e para o público.”
Em resumo: misturar o sabor peculiar do açaí com outros sorvetes na mesma cumbuca não parece ser a melhor escolha para paladares convencionais, mas todos devem ter a liberdade de fazer essa opção. A precondição para tanto é manter o açaí no menu da sorveteria psicodélica.
Uma versão deste texto foi originalmente publicada em inglês na página do Instituto Chacruna
https://www.borasaber.art.br/marcelo-leite-historia-das-drogas-para-uso-medicinal