Saiba por que psicodélicos da ayahuasca poderiam tratar até Alzheimer

Uma das dificuldades de escrever sobre substâncias psicodélicas está no risco de ser ou parecer entusiasta, laudatório, pouco crítico –o oposto do que deve fazer um jornalista. A cada semana são incluídas novas patologias no rol de aplicações possíveis ou já em diferentes fases de teste clínico. Até a doença de Alzheimer entrou nessa alça de mira.

Aquele desvio profissional –ou tentação, se quiserem– se combate com precisão e as ressalvas cabíveis. Alzheimer, por enquanto, é somente uma hipótese para pesquisa com compostos como dimetiltriptamina (DMT) e harmina, componentes da infusão ayahuasca, e também como LSD e psilocibina (de cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe).

A mais recente indicação nesse sentido está no capítulo “Biological and Psychological Mechanisms Underlying the Therapeutic Use of Ayahuasca” (Mecanismos Biológicos e Terapêuticos Subjacentes ao Uso Terapêutico de Ayahuasca) do recém-lançado livro Handbook of Medical Hallucinogens (Manual de Alucinógenos Médicos).

Capa do livro com capítulo de pesquisadores brasileiros sobre ayahuasca (Reprodução)

O volume foi organizado por Charles Grob, um dos pioneiros do renascimento psicodélico, e Jim Grigsby. Já o capítulo citado, de número 14 (entre 29 ao todo), é de autoria de quatro pesquisadores brasileiros que se destacam na área: Dráulio de Araújo e Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor).

“Até aqui, a evidência revisada neste capítulo apoia a noção de que a ayahuasca poderia ter usos terapêuticos para o mal de Parkinson, transtorno de uso de substância e depressão”, conclui o quarteto. “Outras aplicações terapêuticas para a ayahuasca e seus componentes estão atualmente em estudo. Elas incluem transtorno de estresse pós-traumático, câncer, mal de Alzheimer, transtornos alimentares e obsessivo-compulsivo.”

A gama avantajada de alvos terapêuticos possíveis ou sob investigação dispara todos os alarmes de um jornalista de ciência. Parece panaceia duvidosa, à primeira vista, ou pelo menos até que o repórter se aprofunde mais no campo de pesquisa. Há boas razões para que psicodélicos como DMT e harmina apareçam no radar de quem vasculha os céus da farmacologia em busca de um tratamento até aqui inexistente para Alzheimer, por exemplo.

Já faz algum tempo que essa forma de demência piscou na tela psicodélica. Quase quatro anos atrás o neurocientista Rehen comentou com este repórter, durante a conferência Psychedelic Science 2017 em Oakland, Califórnia, que a harmina da ayahuasca modula a produção da enzima DYRK1A, que tem papel na formação das placas características da degeneração cerebral do Alzheimer.

Maceração do cipó-mariri, um dos ingredientes da infusão de ayahuasca (Marcelo Leite/Folhapress)

Dois anos depois, em outra conferência psicodélica –Breaking Convention, em Londres–, o pesquisador apresentou a continuação do trabalho da pesquisadora Vanja Dakic com ayahuasca aplicada a organoides cerebrais, uma espécie de “minicérebro” que seu laboratório se especializou em cultivar. A análise do perfil de proteínas ativadas ou diminuídas pela harmina revelou também sua influência sobre vias de sinalização bioquímica associadas à comunicação celular e à neurodegeneração.

“Me preocuparia [se fosse tomado] como incentivo ao consumo do chá de ayahuasca como terapia alternativa para Alzheimer, o que obviamente seria leviano afirmar nesse momento”, teve o cuidado de ressalvar Rehen na época.

A indicação presente no capítulo recém-publicado aparece agora apoiada num minucioso mapeamento dos efeitos bioquímicos, neurológicos e psicológicos já comprovados da ayahuasca e seus compostos. Além da enzima DYRK1A, a peça central do quebra-cabeças parece ser um receptor cerebral para o neurotransmissor serotonina, conhecido como 5HT2A.

Uma das funções em que o 5HT2A está envolvido é a formação de novas conexões cerebrais, como sinapses e até neurônios novos, algo que pode ser valioso para deter e quem sabe reverter a degeneração cognitiva imposta pelo Alzheimer. Outra via importante está no reconhecido efeito anti-inflamatório dos psicodélicos, ayahuasca incluída, que pode ser uma ferramenta útil no combate tanto ao Alzheimer quanto na depressão.

Os pesquisadores brasileiros explicam em detalhe no capítulo como cada um desses fatores se manifesta no caso da ayahuasca e suas substâncias psicoativas. E há também quem vislumbre que propriedades semelhantes sejam acionadas por meio de outros psicodélicos, como o LSD e a psillocibina.

É o que propõem Simon Jones e Allison O’Kelly no artigo “Psychedelics as a Treatment for Alzheimer’s Disease Dementia” (Psicodélicos como Tratamento para Demência do Mal de Alzheimer) no periódico Frontiers in Synaptic Neuroscience. Neste caso, eles defendem que se deva testar o efeito terapêutico com base em microdosagem, vale dizer, sem desencadear o efeito psicodélico subjetivo (alteração da consciência, dissolução do ego, alucinações).

O renascimento psicodélico para a psiquiatria, mais que modinha ou hype, é um movimento de base científica sólida, que retoma no século 21 tradição de pesquisa interrompida nos anos 1970 sob pressão do conservadorismo proibicionista de Richard Nixon e sua obsoleta Guerra às Drogas. Alteradores de consciência, usados com cuidado e protocolos lastreados em evidência, têm potencial para livrar muita gente de sofrimento para o qual a medicina não tem boas opções de terapia no presente.

Para conhecer mais sobre essa renascença e a parte que lhe cabe no Brasil, Stevens Rehen organizou uma sessão da Cátedra Hertha Meyer para as 15h desta segunda-feira, em que ele e eu debateremos o assunto com Marília Zaluar Guimarães, da UFRJ, e Júlio Delmanto, autor do livro História Social do LSD no Brasil.