Estudo sugere DMT, psicodélico da ayahuasca, para recuperação de AVC

O campo de aplicações terapêuticas aberto pela renascença psicodélica se amplia para incluir acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e dores crônicas, além de transtornos como depressão, estresse pós-traumático ou dependência química. E na vanguarda está a dimetiltriptamina (DMT), substância psicoativa presente na ayahuasca.

O teste foi feito em ratos para investigar o potencial da DMT no tratamento do AVC isquêmico, quando se interrompe o fluxo de sangue a uma parte do cérebro e os neurônios afetados morrem por falta de oxigênio. O estudo de pesquisadores húngaros saiu em maio no periódico Experimental Neurology, e empresas já se mexem para levar a ideia a testes clínicos em seres humanos.

Além do AVC isquêmico, que representa 80-85% dos casos no Brasil, existe o AVC hemorrágico, quando uma lesão ou rompimento de artéria provoca o extravasamento de sangue para o tecido cerebral, também conhecido como derrame. A soma dos dois tipos constitui a segunda causa de mortalidade no país, com mais de 100 mil óbitos anuais.

Saiu na frente a empresa canadense Algernon Pharmaceuticals, que lançou um programa de pesquisa e apresentou pedidos de patente para AVC. Sua estratégia se baseia na capacidade do composto DMT de estimular novas sinapses e neurônios (neuroplasticidade), importante na recuperação motora de pacientes.

A neuroplasticidade, entretanto, é o componente mais frágil da evidência obtida até agora. Parecem estar em ação também outros mecanismos biológicos, como a regulação pelo receptor Sigma-1 (Sig-1R) do processo que leva à morte de neurônios na falta de oxigênio (hipóxia). Ou, ainda, o efeito anti-inflamatório da DMT, já comprovado por pesquisadores brasileiros no caso da ayahuasca.

Em paralelo, a também canadense PharmaDrug, que tem subsidiárias na área de cânabis medicinal na Alemanha e em Israel, apresentou à FDA, agência americana de fármacos, pedido de reconhecimento da DMT como “droga órfã” para tratar AVCs isquêmicos. O status especial pode ser concedido a remédios sob investigação para doenças que acometam menos de 200 mil pessoas nos EUA.

Esse reconhecimento pela FDA implica incentivos para arriscar-se na pesquisa, como o perdão de até US$ 2,4 milhões (R$ 13 milhões) em taxas para obter licença. Saindo a autorização, quem desenvolveu o tratamento ganha sete anos de exclusividade para comercializá-lo. Nos EUA, os gastos com AVC isquêmico alcançaram US$ 46 bilhões (R$ 250 bilhões) nos anos 2014-15.

No experimento com ratos, a neuroplasticidade não foi inferida diretamente, por exemplo com a identificação de novos neurônios ou conexões entre eles. Os cientistas húngaros só mediram um composto associado com novas ligações neurais, o BDNF (brain-derived neurotrophic factor, fator neurotrófico derivado do cérebro).

Rato de laboratório da variedade Wistar (Janet Stephens/Creative Commons)

Eles também mostraram, com testes comportamentais, que os roedores isquêmicos tratados com DMT tiveram melhor recuperação motora. Isso não prova, porém, que a causa da melhora foram novas conexões induzidas pela DMT.

“A expectativa para uso terapêutico da DMT no AVC estaria em seu efeito anti-apoptótico, através do Sig-1R [receptor envolvido na regulagem da morte celular], para evitar a perda de neurônios pela falta de oxigênio, ou hipóxia”, comenta Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor)

Stevens Rehen (esq.) na conferência Breaking Convention de Londres (Marcelo Leite/Folhapress 2019)

Rehen pesquisa efeitos de psicodélicos, inclusive compostos da ayahuasca, sobre tecidos cerebrais. “Reduzir fatores inflamatórios e aumentar BDNF podem sim ajudar na reabilitação, através de neuroplasticidade, mas nesse caso seria importante um estudo desenhado para esse fim específico”, pondera.

Nicole Galvão-Coelho, fisiologista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), hoje terminando um pós-doutorado na Universidade de Western Sydney (Austrália), vê bom potencial na DMT para recuperação de AVC isquêmico. Ela tem investigado tanto o BDNF quanto o benefício da ayahuasca contra inflamação.

Nicole Leite Galvão-Coelho em seu laboratório na UFRN (Divulgação)

A pesquisadora aponta que, mesmo sem essa comprovação direta de neurogênese (formação de neurônios, não só de sinapses), o progresso motor no teste comportamental é um indício alentador. Na sua opinião, os psicodélicos estão em vias de se mostrar úteis também no tratamento de dores crônicas, como no caso de artrite.

Com efeito, já estão em curso estudos para tratar enxaquecas, por exemplo, com psilocibina, substância psicoativa dos “cogumelos mágicos” Psilocybe. E, no Reino Unido, a empresa Beckley PsyTech obteve aprovação para testes clínicos do mesmo composto contra um tipo raro e incapacitante de dor de cabeça conhecida pela sigla SUNHA (em inglês, short-lasting unilateral neuralgiform headache attacks), uma das cefaleias que envolvem o nervo trigêmeo.