Artigo pede retribuição a povo mazateca por revelar ‘espíritu’ de cogumelos
Substâncias psicodélicas renascem para psiquiatria, com a psilocibina na vanguarda, maculadas por um pecado original: a ciência nunca saldou sua dívida histórica com o povo mazateca, do México. A cobrança aparece agora num artigo de pesquisadores liderados pelo brasileiro Eduardo Schenberg, do Instituto Phaneros (há um vídeo em que os autores explicam seu propósito, aqui).
O composto tem sua origem nos cogumelos do gênero Psilocybe, como o Psilocybe cubensis encontrado no Brasil ou o P. semilanceata na Europa. Até 1957, esses fungos costumavam ser classificados como tóxicos e perigosos. Suas virtudes curativas só foram reveladas para a ciência ocidental pelas práticas rituais dos mazatecas.
A revelação se deu naquele ano em uma reportagem do banqueiro e micologista amador R. Gordon Wasson na revista Life. Ele viajou a Huautla de Jimenez, estado de Oaxaca (México), e ali se iniciou nos ritos com Psilocybe mexicana guiado pela curandeira Maria Sabina, cuja identidade Wasson de início protegeu sob o pseudônimo Eva Mendez.
Poucos anos depois o princípio psicoativo psilocibina foi isolado, sintetizado e patenteado por Albert Hofmann –o criador do LSD– no laboratório suíço Sandoz, como narra o texto de Schenberg e colegas. A droga chegou a ser comercializada sob a marca Indocybin. O artigo não cita, mas cinco anos depois Wasson levou Hofmann a Huautla, onde o químico ouviu de Sabina que sua psilocibina sintética tinha “espíritu”.
O preferido das pesquisas psicodélicas nos anos 1960 era o LSD, não a psilocibina, que o guru lisérgico Timothy Leary chegou a usar e logo abandonou em favor do ácido. Não demorou para que o impulso libertário do LSD despertasse a reação conservadora, que levou a limitações crescentes que desembocariam na completa proibição do LSD.
Quando a ciência psicodélica viu iniciar-se o atual renascimento, a partir de 2000, ganhou projeção a psilocibina, menos estigmatizada. Há dezenas de estudos em andamento ou concluídos para investigar seu potencial como tratamento para depressão, ansiedade, estresse, anorexia, enxaqueca, dependência química, tabagismo, alcoolismo (cabe assinalar que se trata ainda de droga proibida no Brasil e outros países, embora os cogumelos em si sejam tolerados e venham sendo legalizados aqui e ali nos EUA).
Existem também dezenas de pedidos patentários relacionados com a droga, alguns em exame e outros já concedidos, como se vê numa listagem apresentada no artigo a partir do registro de patentes de psilocibina mantido pela newsletter Psilocybinalpha. Só a empresa Compass Pathways, cujo valor de mercado alcançou US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 8 bilhões) e que organiza um teste clínico controlado para tratar depressão, tem seis solicitações cobrindo sua formulação medicinal aperfeiçoada do composto.
Tudo indica que está em gestação um mercado bilionário para terapias psicodélicas. A questão levantada no artigo de Schenberg e colegas se centra na ausência de previsão para reconhecimento e retribuição a povos tradicionais pelo conhecimento que indicou as pistas até essas substâncias (como a ayahuasca de indígenas brasileiros e peruanos, outro exemplo).
Não é uma ligação tênue, diga-se. Os mazatecas faziam uso espiritual dos cogumelos mágicos, assim como acontece nas religiões da ayahuasca, e não faltam estudos relacionando diretamente o grau da resposta terapêutica à intensidade da viagem mística desencadeada pela psilocibina –embora se debata se o componente espiritual da experiência é necessário para dissolver a rigidez mental por trás desses transtornos.
A retribuição pelo uso de conhecimento tradicional está prevista em vários tratados internacionais, da Convenção da Biodiversidade (1992) aos protocolos de Cartagena (2000) e Nagoya (2010). No entanto, as boas intenções consagradas nessas normas raramente acabam postas em prática.
Pelo andar da carruagem dourada em que a ciência psicodélica ressurge na praça, a esta altura pode parecer ingênuo esperar que mazatecas recebam compensação digna da Compass pela tecnologia sábia de Maria Sabina e seus ancestrais. Nunca é demais lembrar, contudo, que esse ramo de pesquisa é caudatário de uma revolução libertária nos costumes e nos valores, a contracultura dos anos 1960/70, sem a qual o antirracismo e o decolonialismo jamais teriam chegado ao presente.
O Instituto Chacruna, sediado na Califórnia, promove há muito tempo discussões sobre apropriação cultural e reciprocidade com povos indígenas. Em 2017, o Instituto sediou a conferência Plantas Sagradas nas Américas, em Ajijc, no México, trazendo lideranças mazatecas para o circuito psicodélico contemporâneo.
A segunda edição está prevista para abril de 2021, quando será lançada a iniciativa Indigenous Reciprocity of the Americas, para estimular que usuários individuais de substâncias psicodélicas e novos empresários passem a considerar as raízes desse movimento e a exercer reciprocidade. “Infelizmente os ocidentais têm uma visão em geral reducionista desses temas”, lamenta Bia Labate, antropóloga brasileira que dirige o Chacruna.
“Da mesma forma que a esposa de Gordon Wasson, Valentina, foi excluída das principais narrativas do mainstream psicodélico, há pouco reconhecimento ao papel dos povos tradicionais na origem dos conhecimentos da ciência psicodélica. Também há uma tendência a um ‘mazatecocentrismo’, atribuindo a esse povo o conhecimento único e original com sobre cogumelos, quando existem vários grupos que fazem uso dessas práticas.”
“Precisamos decolonizar nossa ciência. Mas reciprocidade não é apenas doar dinheiro, e sim aprender a escutar, mover-se lentamente, criar relações duradouras e projetos horizontais, em colaboração mútua. Às vezes, aceitar que populações indígenas podem não estar interessadas nessa relação.”