Em busca de uma Clarice Lispector no vacilante renascimento do LSD no Brasil
Clarice Lispector, Rita Lee, Maria Alice “Tapa na Pantera” Vergueiro. Paulo Mendes Campos, Fauzi Arap, Antonio Peticov, Luiz Carlos Maciel, Jorge Mautner… Talvez o leitor não saiba, mas há um denominador comum nesse grupo, além da fulguração nos anos 1960/70: LSD.
A dietilamida do ácido lisérgico, significado em alemão das três letras célebres, era fornecida pelo laboratório Sandoz a médicos e pesquisadores, até abril de 1965, quando interrompeu a fabricação do remédio Delysid, caído em desgraça. Um dos experimentadores mais ativos, no Brasil, foi o psiquiatra Murilo Pereira Gomes.
Gomes promovia sessões terapêuticas com a droga no consultório e em casa, das quais participavam alguns dos artistas que iluminaram aqueles anos escuros da ditadura militar. Os detalhes sobre as sessões experimentais de Gomes estão no minucioso trabalho de Júlio Delmanto, “História Social do LSD no Brasil — Os Primeiros Usos Medicinais e o Começo da Repressão”.
Agora disponível em livro (Editora Elefante), a tese de doutorado orientada por Henrique Soares Carneiro, que li para escrever meu “Psiconautas — Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (no prelo pela Editora Fósforo, com lançamento em maio), fala de um tempo em que o LSD não fora ainda demonizado pela histeria conservadora proibicionista. Ao contrário, era uma promessa da medicina, como agora volta a ser.
O relato de Delmanto, apoiado em pesquisa admirável, mostra que o entusiasmo com o ácido precede em muito a consagração pela contracultura. Embora contemporâneo e combustível da geração beat nos EUA e logo no Brasil, lá e cá o LSD virou a cabeça dos psiquiatras.
Nos anos 1950, eles viam no composto criado pelo químico suíço Albert Hoffman duas décadas antes uma oportunidade de tornar a psiquiatria uma disciplina mais experimental, pois acreditavam que ela permitia deslanchar um transtorno psíquico artificial em quem a tomava. Antes de ser conhecida como droga “psicodélica” (reveladora da psique, alma ou mente, como queiram), ela era vista como “psicotomimética” (imitadora de psicose).
O primeiro a publicar algo sobre as virtudes do LSD, segundo levantamento de Delmanto, foi Eustachio Portella Nunes Filho, do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (depois UFRJ), em 1954. Em São Paulo, ainda nos anos 1950, Clóvis Martins administrou LSD a dezenas de pacientes do Instituto de Psiquiatria da USP, tema de sua tese de livre docência em 1964.
Mais ou menos na mesma época, o ácido caía nas graças de poetas e escritores como Roberto Piva, Claudio Willer e Raul Fiker, na esteira dos beatniks americanos Allen Ginsberg e Ken “Um Estranho no Ninho” Kesey. Foram os precursores da contracultura no Brasil, por assim dizer, popularizada de 1969 a 1972 pela coluna “Underground”, de Luiz Carlos Maciel, no saudoso jornal alternativo Pasquim.
Kesey e Ginsberg, ainda nos anos 1950, haviam sido apresentados ao LSD por um projeto da agência americana de espionagem americana CIA, batizado MK-Ultra, voltado a descobrir um “soro da verdade” ou meios de fazer “lavagens cerebrais”. Deu no que deu, inclusive numa morte trágica, como retratado na série da Netflix “Wormwood”. Semearam vento e colheram as tempestades beat e, em seguida, hippie.
A vertente brasileira dessa revolução nos costumes e nas mentalidades, da qual somos todos herdeiros, está bem documentada em “História Social do LSD”. O livro de Delmanto também aborda a saga lisérgica americana, mas quem quiser se aprofundar deve ler “American Trip — Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana — Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20), de Ido Hartogsohn (MIT Press).
Já tratei dessa obra aqui, pois me impressionou a extensão, para toda a cultura, da ideia de que a disposição mental e o ambiente em que ocorre o uso de psicodélicos são determinantes para a qualidade e o significado da viagem.
O paradigma psicotomimético e projetos paranoicos como o MK-Ultra da Cia fazem muito mais sentido à luz –melhor dizendo, nas trevas– da Guerra Fria, do terror atômico e do vazio existencial do American Way of Life numa sociedade racista e belicista.
O enquadramento mais libertário e psicoterápico do LSD e de drogas rebatizadas psicodélicas, por outro lado, parece inseparável do impulso emancipador do movimento por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã, assim como da antipsiquiatria, do universo beat, do redescoberto potencial da ciência (a Lua!) e da pílula anticoncepcional. Timothy Leary foi seu maior guru.
No Brasil foi um pouco mais complicado. Enquanto a juventude de classe média afluente e majoritária nos EUA empurrava a sociedade para a frente, por aqui a ditadura militar e a pobreza generalizada num país ainda rural fizeram da contracultura um movimento restrito a guetos urbanos. E os “desbundados”, como se dizia, ainda tinham de competir com a esquerda que partiu para a luta armada, numa disputa pelos corações e mentes dos poucos jovens dispostos a se rebelar nos anos de chumbo.
Não sou sociólogo nem historiador social para arriscar muitas conclusões sobre essas diferenças da contracultura brasileira com a americana –ou europeia, de resto, porque às vezes parece que intelectuais brasileiros acabaram mais influenciados pelo Maio de 1968 na França do que pelas marchas em Washington e San Francisco. Se abro a questão aqui é porque gostaria de antever se o renascimento psicodélico iniciado na década de 2010 prenuncia um vetor de emancipação ou se, no atual contexto político-cultural acabrunhante, ele se encaminha para um revertério amargo como o dos anos 1970-80, ao estilo direitista do autointitulado xamã Lobo de Yellowstone.
Se for para continuar pessimista, basta considerar o advento de Donald Trump, Jair Bolsonaro, redes sociais, fake news e o conservadorismo obscurantista terraplanista negacionista neopentecostalista criacionista antivacinista cloroquinista. A desigualdade nunca foi tão revoltante; a Covid detona a esperança de uma vida melhor, o convívio e a solidariedade; mudanças climáticas pressagiam um desastre planetário do porte da hecatombe nuclear.
A vitória eleitoral de Joe Biden parece ter interrompido o pesadelo trumpiano, a ver. Movimentos como Me-Too e BLM ecoam gritos libertários da década de 1960, apesar de algum pendor autoritário para cancelar e sinalizar virtude, e também sobra um impulso hippie mitigado no vegetarianismo que se alastra entre moços e moças.
Por outro lado, o renascimento psicodélico emerge sob o signo de nova medicalização, esterilizado pela razão científica. Diversa dos anos 1950 psicotomiméticos, sim, mas também expurgada da pulsão iconoclasta dos anos 1960. Testes clínicos controlados randomizados duplo cegos são ótimos para recompor o prestígio farmacológico de drogas como o LSD, mas não deixam de ser uma maneira de domesticá-las.
Nada contra a psicoterapia assistida por psicodélicos em ambientes controlados e sob supervisão de gente capacitada –desde que o modelo emergente não reforce o preconceito contra o uso dito “recreativo” (só quem já enfrentou peias de ayahuasca e psilocibina sabe como esse qualificativo é inadequado). Nada contra a modinha da microdosagem entre traders e nerds –desde que não expulse do arsenal a experiência psicodélica plena, com dissolução do ego e tudo a que temos direito.
Por aqui, além disso e de novo, persiste o temor de que tais ensaios de libertação fiquem restritos à esfera bem-pensante. Bolsonaro consegue, afinal, equilibrar-se apoiado no Centrão, de um lado, e no Evangelho de Resultados, de outro, com as Forças Armadas e o empresariado sociopata a reboque, no papel de massa atrasada.
Oremos, pois, pela conceição imaculada de um Joe Biden em Pindorama, pois da realidade brasileira nada comparável parece capaz de surgir. E sonhemos, por ora, com nossas futuras Clarices Lispectors.
*
Para quem não acredita em renascimento psicodélico: a revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a PNAS, publica hoje artigo de pesquisadores no Canadá detalhando as vias bioquímicas pelas quais o LSD promove a busca de novidade e o comportamento prossocial de camundongos. Resultados similares já foram colhidos com ratos por neurocientistas brasileiros, estudo sobre o qual a Folha publicou reportagem em 2019.