Xamã da invasão do Capitólio dá golpe no mito do psicodélico de esquerda

Jake Angeli, símbolo do delirante assalto fracassado ao Congresso dos EUA na quarta-feira (6), se apresenta nas redes sociais como Lobo de Yellowstone, um xamã psicodélico. Suas páginas de autopropaganda já caíram, e com elas rui também a ideia de que a alteração da consciência por substâncias alucinógenas produz sempre mentalidades progressistas, de esquerda.

Seria um erro deixar-se ofuscar pela exuberância caricata de Angeli. Tirante os chifres e o pelego de bisão, até um engravatado como Ernesto Araújo poderia marchar com ele contra a alegada conspiração comunista, globalista, materialista e covidista que abala os alicerces do mundo livre. O chanceler, afinal, nem precisa de cogumelos mágicos para enxergar em Donald Trump um líder espiritual.

Angeli, um ator fracassado trintão que passou pela Marinha, converteu-se ao misticismo de direita com ajuda do fungo Psilocybe e do cacto peiote. Oferecia cursos pela internet em que ensinava como a reintegração com a natureza e a ingestão de plantas sagradas poderiam dissolver a programação cultural que conduz à destruição da pessoa autônoma e do planeta saudável, como mostrado neste vídeo gravado por Brian Pace, do site Psymposia, antes da retirada do site de Angeli do ar.

A imagem de hippie neonazista parece uma contradição em termos, mas não é. Existe antiga tradição romântica de retorno à natureza, de comunhão em uma unidade superior (Deus, Povo, Pátria, Raça –à escolha), que não raro ajudou a delinear quem são os degenerados a erradicar do mundo, como na ideologia nacional-socialista. Cunhou-se já o neologismo “conspiritualidade” para descrever seitas e fenômenos como Q-Anon.

Aquarela atribuída a Hitler mostra paisagem na região austríaca de Vent – Niedertal (REUTERS/Fabrizio Bensch)

“Infelizmente o elo entre extrema direita, Nova Era, teorias conspiratórias e psicodélicos não é novo nem único. Historicamente, há muitos exemplos de usos malévolos e manipuladores de psicodélicos”, diz Bia Labate, antropóloga brasileira que dirige na Califórnia o Instituto Chacruna. “Mais recentemente, tem sido desanimador ver como muitos seguidores do movimento #ThankYouPlantMedicine se revelaram por negar a existência da Covid, ser antivacina, rejeitar o uso de máscaras ou proclamar outras teorias da conspiração.”

“Mesmo que Jake [Angeli] não seja um caso único, ainda penso que os psicodélicos beneficiaram muito mais pessoas do que prejudicaram e que continuam a guardar potencial incrível para tratar distúrbios de saúde mental e enriquecer as vidas daqueles que buscam melhora e conforto espiritual.”

Não surpreende que a vertente Nova Era da cena psicodélica se mostre vulnerável a essa forma de paranoia. O viés do misticismo oferece o atalho mais fácil para dar conta das experiências de inefabilidade e deslumbramento propiciadas por compostos psicodélicos clássicos como o LSD, a psilocibina dos cogumelos, a mescalina do peiote e a DMT da ayahuasca.

Mesmo no meio acadêmico da Europa, onde se favorece o conceito de dissolução do ego para descrever o que nos EUA aparece como vivência espiritual, persiste uma tendência a identificar o resíduo de viagens psicodélicas com alterações da consciência na direção do progressismo e mesmo do ambientalismo. A chave transformadora estaria na empatia, que já se comprovou aumentar com o consumo de psicodélicos, tanto que “empatógeno” é um dos termos criados para designá-los.

Já escrevi aqui que não há razão para enquadrar o superávit psicodélico de empatia e de sensibilidade ambiental na moldura acanhada da experiência religiosa nem, menos ainda, para considerar que o enlevo místico seja componente sine qua non do benefício mental dessas substâncias. Existe um debate em curso entre pesquisadores que, como David Olson, não veem os efeitos psicodélicos subjetivos como necessários para o benefício terapêutico duradouro e aqueles que, como David Yaden e Roland Griffiths, pensam o contrário e, portanto, descartam a proposta de desenvolver compostos similares aos psicodélicos mas desprovidos de seus efeitos alucinógenos ou dissolvedores do ego.

Ainda que o acréscimo de empatia e o afrouxamento de padrões rígidos de ativação das redes cerebrais bastem para explicar o sucesso de terapias psicodélicas contra depressão, estresse pós-traumático etc., como parece ser o caso, há que tentar entender como é possível que essa flexibilização mental conduza também a atitudes e convicções tão autoritárias, agressivas e sociopáticas quanto as dos militantes trumpistas e Q-anonistas que assaltaram o Capitólio.

Carro com pintura alusiva ao movimento da teoria conspiratória Q-Anon (Caitlin O’Hara/AFP)

Uma forma de explicar essa derivação, à primeira vista paradoxal, seria recorrer a conceitos apresentados por Ido Hartogsohn no livro “American Trip: Set, Setting, and the Psychedelic Experience in the Twentieth Century” (Viagem Americana: Set, Setting e a Experiência Psicodélica no Século 20): a maleabilidade amplificadora das substâncias psicodélicas e a ideia de que set e setting também têm uma dimensão cultural.

Não é fácil traduzir para o português a parelha noção de set e setting, tornada seminal entre outros por Timothy Leary. Trata-se de algo como a dupla de predisposição mental e condições ambientais em que se realiza uma viagem psicodélica, normalmente entendidas como o contexto individual e o local em que se realiza a experiência de alteração da consciência. Para Hartogsohn, entretanto, o duo também deve ser entendido no contexto da cultura e do ambiente psicossocial em que os psiconautas e os psicodélicos se encontram inseridos.

Capa do livro “Viagem Americana”, de Ido Hartogsohn

Um exemplo esclarecedor da influência mais ampla da época sobre a conceituação dessas substâncias se acha na divergência dos paradigmas teóricos sobre LSD que se estabeleceram nos anos 1950 e na transição 1960-70.

No auge da Guerra Fria e à sombra dos horrores da Segunda Guerra, a amplificação mental propiciada pelo psicodélico era entendida como indutora de um estado psicótico, o que deu origem à denominação de “psicotomiméticos” para esses compostos (ou seja, imitadores de psicose). Psiquiatras entusiasmados acreditaram então que se iniciava uma era de experimentação controlada para a disciplina antes envolta nos miasmas da fenomenologia, da experiência subjetiva e suas etiologias impenetráveis.

Por outro lado, à medida que o progresso material de parte da sociedade norte-americana contrastava mais e mais com o lado escuro do American Way (segregação racial e desigualdade no plano doméstico; intervenções militares e apoio a ditaduras na esfera internacional), o movimento dos direitos civis e de contestação à Guerra do Vietnã forneceram a moldura libertária na qual os compostos, agora chamados de “psicodélicos”, foram reenquadrados como as drogas da contracultura, da liberdade sexual e do amor à natureza.

De “imitação da psicose” à “revelação da alma” vai uma enorme distância, e foi essa transição ameaçadora para o establishment que engendrou a reação proibicionista aos psicodélicos nos anos 1970 e 1980. Transcorridas quatro décadas, o set e o setting culturais para psicodélicos mudaram radicalmente, e de certa maneira se dissociaram.

Manequim em instalação do movimento Black Lives Matter (REUTERS/Lucy Nicholson)

De um lado, eles experimentam um renascimento para a medicina, em que a psiquiatria busca valer-se de sua flexibilização mental para dissolver traumas e dar acesso a conteúdos ossificados nas redes cerebrais. De outro, metade da sociedade americana –e contingentes ponderáveis em países como o Brasil– se sente ameaçada não por russos atômicos, mas por chineses industriosos e traidores nacionais alojados no Partido Democrata, nos movimentos Me-Too e Black Lives Matter, na academia e na mídia –os “comunistas”.

Psicodélicos, entrementes, deixaram de ser monopólio da esquerda. A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), mesmo liderada por um ex-objetor de consciência como Rick Doblin, teve a sagacidade de eleger a MDMA (ecstasy, um empatógeno não alucinogênico) e o transtorno de estresse pós-traumático epidêmico entre veteranos de guerra para conduzir o teste clínico mais próximo (fase 3) de entronizar um psicodélico no altar farmacológico da psiquiatria.

Pílulas de ecstasy apreendidas em ação contra drogas adulteradas (Eduardo Knapp/Folhapress-2012)

Embora conservadores de raiz ainda se inclinem pelo proibicionismo estrito, há também uma franja Nutella, por assim dizer, natureba, nativista, mística, ou simplesmente doente da cabeça, que vê neles –como os antigos hippies– uma salvação milagrosa para o mundo. Jake Angeli é hoje o mais famigerado representante da psicose conspiritualista que a invasão do Capitólio revelou para o mundo.

Na cena psicodélica, como em tudo mais, a década de 2021 começou de modo confuso, tudo junto e misturado no liquificador de ideias, crenças e tradições oferecido pelas redes sociais. Não haveria por que substâncias tão maleáveis escaparem, só elas, de um set e um setting tão perturbador quanto a nossa época. Mais uma razão para distinguir e distanciar os psicodélicos do misticismo, mas sem perder a ternura.