Em 2021, psicodélicos sairão do gueto e invadirão até a tela de seu celular
Antes mesmo das agruras da pandemia de Covid se estimava que, nos países mais ricos, metade das pessoas receberão algum diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida. Após mais de um ano de isolamento e medo, males da alma como depressão e ansiedade vão piorar até virar outra pandemia, e os tratamentos disponíveis são limitados.
Neste caso, porém, não será preciso desenvolver uma vacina a partir do zero, ainda que em tempo recorde. A neurociência está ressuscitando uma classe de substâncias –psicodélicos como psilocibina, ecstasy, LSD e ayahuasca– estudadas há mais de 60 anos e montando com elas uma nova onda que já inunda a imprensa especializada e leiga, chega à TV aberta e em breve estará na palma de sua mão.
Neste domingo (3), o renascimento psicodélico aparecerá no Fantástico, programa dominical superfamília da Rede Globo. A julgar pelo teaser, mostrarão pesquisas brasileiras que comprovaram efeito antidepressivo rápido e prolongado da ayahuasca, chá psicoativo de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ponto para o Instituto do Cérebro da UFRN.
Devem aparecer também estudos que investigam a aplicação de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), flagelo de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. Embora não seja considerado um psicodélico clássico como LSD, MDMA é a droga mais próxima de obter aprovação oficial como medicamento.
Em 2021 os psicodélicos sairão do gueto em que foram confinados pela proibição, nos anos 1970, e se banharão na luz da ciência e da respeitabilidade. A certeza de que este será o ano da virada levou um trio de pesquisadores do Canadá a escrever longo artigo no periódico Pharmacological Review reunindo o que se sabe sobre os mecanismos de ação desses compostos em termos bioquímicos e neurológicos, um guia de 76 páginas para psiquiatras caretas. Dos receptores para serotonina e outros neurotransmissores às teorias inflamatórias e entrópicas do cérebro doente, está tudo ali.
Informalmente os psicodélicos já se infiltravam pelo tecido social por meio da microdosagem com psilocibina (dos “cogumelos mágicos”), ayahuasca ou LSD, ou seja, recorrer a quantidades subclínicas de psicodélicos 2 ou 3 vezes por semana. Há pouca evidência científica da eficácia dessas microdoses para aguçar criatividade e produtividade, como defendem praticantes, mas elas se tornaram o meio mais popular de buscar os benefícios mentais sem enfrentar experiências psicodélicas plenas, descasamento meio puritano e controverso buscado também por alguns pesquisadores.
Microdosagem e uso recreativo de psicodélicos, apesar de seu baixo potencial para criar dependência, não se fazem inteiramente sem riscos. Pesquisadores sérios se inquietam com a renascida popularidade dos psicodélicos, mas não são todos que preferem mantê-los sob controle estrito no cercadinho da academia.
Um dos que não temem exposição na esfera pública é Robin Carhart-Harris, que dirige no Imperial College de Londres o pioneiro Centro para Pesquisa Psicodélica. Em 2020, ainda antes de completar 40 anos e sem contar com financiamento público para pesquisa, RC-H publicou seu centésimo artigo científico.
Para 2021 ele promete divulgar os resultados de um estudo em que seu grupo comparou o efeito antidepressivo de apenas duas doses de 25 mg de psilocibina diretamente com 43 doses diárias de escitalopram. Tudo indica que um dos mais modernos medicamentos disponíveis para tratar depressão não se saiu tão bem na pesquisa quanto o rival psicodélico.
Em sua última incursão além do reduto dos periódicos especializados, Carhart-Harris escreveu um comentário para a revista Wired com o título “Big Pharma está para sintonizar [tune in] o potencial dos psicodélicos”. Além da referência ao termo médio do clássico lema de Timothy Leary (Turn on, tune in, drop out), o autor profetiza: “A medicina psicodélica vai começar a invadir o domínio estabelecido [mainstream] da saúde mental em 2021”.
Seria a terceira onda da ciência psicodélica. Na primeira, ali pelos anos 1950, predominava a concepção psicotomimética –drogas como LSD serviriam para mimetizar psicoses e permitir seu estudo controlado. Uma onda mais benigna se levantou nos anos 1960, em que a alteração da consciência mediada por psicodélicos passou a ser usada em psicoterapia e, a seguir, se tornou popular entre hippies, alavancando a contracultura, a contestação política e, por fim, a reação proibicionista.
O neurocientista britânico apoia sua profecia sobre a chegada ao mainstream (portanto o avesso do comando drop out de Leary) na explosão de artigos científicos sobre o tema, nos últimos cinco anos, e na voga de filantropos e investidores de risco que doaram US$ 30 milhões (R$ 156 mi) para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos organizar teste clínico com MDMA para TEPT e US$ 115 milhões (quase R$ 600 mi) para a empresa Compass Pathways fazer o mesmo com psilocibina para depressão.
RC-H não espera sentado pela aprovação da comunidade científica e dos órgãos reguladores aos quais caberia levantar as restrições ainda vigentes para substâncias psicodélicas. Cioso de que o uso só tende a crescer, por vias legais ou ilegais, ele fundou uma empresa e promete lançar ainda neste ano um aplicativo de celular, MyDelica, voltado para a redução de danos entre usuários.
“MyDelica oferece um marcador personalizado de progresso e um serviço de aconselhamento baseado em evidências para educar e salvaguardar jornadas psicodélicas”, promete a página provisória do app na internet. Na ilustração de como será a tela do programa no celular, acima de gráficos com marcadores e tendências de bem-estar, aparece o registro “Domingo 19 de abril”.
Não é qualquer data. Nela se comemorará o Dia da Bicicleta, para celebrar a primeira viagem com LSD, realizada em 1943 por Albert Hoffman após ingerir 250 microgramas de sua invenção no laboratório Sandoz e voltar pedalando para casa, em meio a visões psicodélicas.
Hoffman escreveu uma biografia com o título “LSD, Minha Criança Problema”. Aos 78 anos, ela enfim alcança a maturidade.