Timothy Leary prova que não se fazem mais influencers como antigamente
No começo dos anos 1970, a mudança para uma casa maior trouxe a chance de realizar o sonho dos três adolescentes: um quarto para cada um. Em lugar disso, os dois rapazes abriram mão da privacidade ao repartir um dos cômodos e concretizar no sobressalente sonho ainda mais poderoso: ter espaço exclusivo para a moçada “curtir”.
Uma das paredes foi pintada de azul escuro, e sobre ela aplicaram-se dezenas de estrelas prateadas com um molde e tinta em spray. Um colchão direto sobre o piso, coberto com colcha indiana, recebeu várias almofadas. As estampas preferidas de tecidos eram artesanais, em geral tie-dye.
Instalaram sobre estante de tábua e tijolos vazados o bem mais precioso: um conjunto de som estéreo Gradiente (amplificador, duas caixas de som e fones de ouvido) conectado ao toca-discos Garrard e ao gravador Akai de rolo. Ali se refugiavam para ouvir música, em discos de vinil emprestados (copiados em fitas BASF) por amigos mais afortunados que tinham feito intercâmbio nos EUA.
Os três jovens talvez não soubessem (um certamente não sabia), mas seguiam os conselhos psicodélicos de Timothy Leary sobre set e setting. Ou seja, queriam expandir a consciência e projetaram um ambiente acolhedor para suas viagens.
O avô de todos os influencers havia criado o lema corrosivo da contracultura: turn on, tune in, drop out (ligue, sintonize, caia fora, em tradução pobre). No Brasil se dizia “desbunde”: mergulhar na vida interior, sob influência de música e drogas, recusando o caminho previsível estudo-trabalho-família oferecido pelo “sistema”.
Ouviam-se Beatles, Pink Floyd e Traffic em meio à fumaça de maconha. O LSD prescrito por Leary era caro e raro, mas aparecia. Os mais atirados se mandavam para Arembepe ou Caixa-Prego, na Bahia; outros conseguiam alcançar a Meca lisérgica em Londres ou Amsterdã, “num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, como cantou Gilberto Gil.
Milhões de adolescentes seguiram essa trilha pelo mundo. Até hoje, meio século depois, ainda se ouvem os ecos da revolução hippie –não é por acaso que se traduziu o like das redes sociais como curtir, gíria criada na época. Filhos e netos daqueles cabeludos ainda escutam Beatles e gozam da liberdade sexual conquistada por eles.
Leary não foi o único líder de uma geração que se insurgiu contra a Guerra do Vietnã e as ditaduras militares, apenas seu profeta mais midiático. Hoje é fácil ser influencer, com YouTube e Instagram na palma da mão –e também mais efêmero. Quem acredita que daqui a 50 anos vai ter tiozão cabeça escrevendo sobre Felipe Neto ou Whindersson Nunes?
Ninguém nem sonhava com internet nos anos 1970. As ideias se propagavam de um continente a outro em LPs, livros, revistas e cartas, ou viajavam na cabeça dos abastados que conseguiam ir e voltar de avião. Leary se tornou inimigo público número um nos EUA gravando conselhos em discos de vinil e exibindo na TV seu sorriso inconfundível (no que seguia a recomendação de Marshall McLuhan, teórico pioneiro da comunicação de massa).
Leary gravou três discos de propaganda psicodélica: “Turn on, Tune in, Drop out”, “The Psychedelic Experience” e “L.S.D.” (todos disponíveis no Spotify). O psicólogo banido de Harvard pelos excessos do Projeto Psilocibina fala inglês devagar, quase hipnoticamente, com longas pausas entre as frases. Não há estridência, só convite a reflexão, suavidade e bondade. Parece incrível, ouvindo-o hoje, que tenha deixado marcas tão profundas na memória coletiva que chamamos de cultura.
Timothy Leary acabou preso várias vezes, fugiu da prisão e peregrinou pelo mundo. Um câncer de próstata o matou em 1996. Seu corpo foi cremado e, dez meses depois, sete gramas das cinzas foram lançadas no espaço a bordo de um foguete Pegasus, junto com as de outras 23 pessoas –entre elas Gene Roddenberry, criador de “Jornada nas Estrelas”.
Os luminares do renascimento atual são neurocientistas e querem provar em bancadas de laboratório os benefícios mentais que Leary e seus companheiros pretendiam espalhar pelo mundo. Fazem de tudo para se desvincular de sua pregação messiânica, e têm boas razões para isso, pois foi o potencial político subversivo que deu pretexto para a reação conservadora proibicionista enterrar a ciência psicodélica por três décadas.
Sinal dos tempos, contam até com um influencer, por coincidência outro Timothy: Tim Ferriss, coach de negócios e investidor que ajudou a levantar US$ 30 milhões para os testes clínicos de MDMA (ecstasy) contra transtorno de estresse pós-traumático, que deve levar à autorização da primeira terapia psicodélica em 2023.
Estaremos ainda falando de Tim Ferriss em 2070 como hoje lembramos de Tim Leary? Meu palpite é que não se fazem mais influencers como antigamente.
Bom 2021 a todos.