Ecstasy está mais perto de virar terapia para estresse pós-traumático
Este horroroso 2020 termina com um presente de Natal para estimados 350 milhões de pessoas no mundo que sofrem com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT): o advento, talvez em dois anos, de um novo tratamento para quem não melhora com as alternativas disponíveis. É a psicoterapia assistida por MDMA (base do ecstasy, droga das baladas).
Nos Estados Unidos, o ecstasy medicinal pode chegar em 2023. No Brasil, quem sabe uma mudança de governo em 2022 venha também reabrir as portas da medicina psicodélica. Basta sobreviver a 2021 e à pandemia de Covid, que decerto infernizou ainda mais o sofrimento cotidiano dos portadores de TEPT.
A boa nova foi anunciada há poucos dias por Rick Doblin, fundador e diretor executivo da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), que levantou doações de US$ 30 milhões (cerca de R$ 157 milhões) para o primeiro teste clínico de fase 3 da terapia com MDMA. Terminou a coleta de dados do ensaio MAPP1, iniciado em 2017, com o último de 90 voluntários submetidos ao teste em agosto.
Doblin anunciou que a análise das informações colhidas demonstrou que os dados são estatisticamente significativos e que o estudo clínico, portanto, foi bem-sucedido. No teste, cada voluntário participou de 12 sessões de psicoterapia, 3 delas com administração de 80 ou 120 miligramas de MDMA.
“Os resultados obtidos pela Maps com o método de psicoterapia assistida por MDMA para tratamento de casos graves de transtorno de estresse pós-traumático consolidam essa pesquisa científica de muitos anos como um dos avanços médicos mais importantes para a próxima década”, comemora o neurocientista Eduardo Schenberg, do Instituto Phaneros.
Schenberg é o autor principal de um estudo pioneiro no Brasil com MDMA para vítimas de abuso sexual. O trabalho publicado este ano na Revista Brasileira de Psiquiatria mostrou redução de pelo menos 30% em escala para diagnóstico de TEPT, seguindo o protocolo de psicoterapia desenvolvido pela Maps.
“A saúde mental pós-vacinação [contra Covid-19] dependerá de avanços baseados nas mais rigorosas evidências científicas, e para isso será imprescindível que as resoluções da Anvisa em vigor e atualizadas neste ano sejam respeitadas”, diz Schenberg, “garantindo assim que mais estudos científicos de ponta com substâncias controladas possam ser realizados no país.”
Bessel van der Kolk, autor do livro sobre TEPT The Body Keeps the Score (o corpo registra tudo, em tradução livre) e líder da parte da pesquisa realizada em Boston, comentou: “A experiência de ter sido traumatizado altera profundamente as percepções, a experiência de si e a capacidade de planejar, imaginar e antecipar. Como os achados deste estudo espelham os resultados anteriormente publicados, podemos esperar ver mudanças fundamentais na perspectiva de nossos voluntários sobre autonomia, regulação de afetos e atitude em relação àqueles que os cercam. É preciso uma boa dose de coragem para enfrentar a própria TEPT, particularmente quando outros tratamentos já falharam”.
O teste clínico de fase 3 da Maps é o mais adiantado no mundo com vistas a sacramentar a prescrição de substância psicodélica para tratar um transtorno mental. O estudo ganhou da FDA (agência de fármacos dos EUA) o status de terapia inovadora (“breakthrough therapy”), uma via acelerada para obtenção da licença, e foi conduzido em 15 centros de pesquisa (11 nos EUA, 2 em Israel e 2 no Canadá).
“Agora podemos dizer com certeza que os US$ 30 milhões (…) serão suficientes para gerar todos os dados de pesquisa que precisamos antes de submeter uma NDA [requisição de medicamento novo, na sigla em inglês] à FDA, e depois à Health Canada e ao Ministério de Saúde israelense”, afirmou Doblin no comunicado da Maps.
“A fim de levar o potencial terapêutico da psicoterapia assistida por MDMA para TEPT aos estimados 350 milhões de pessoas no mundo que sofrem com o transtorno, a Maps está lançando agora uma nova campanha de US$ 30 milhões de fundos necessários para conduzir pesquisa de fase 3 na Europa, em busca de aprovação pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e de globalizar a autorização regulatória em vários países do mundo.”
Na visão da Maps, a aprovação abrirá caminho para que se instalem milhares de clínicas especializadas em psicoterapia psicodélica espalhadas pelo mundo. Elas começariam com MDMA e, à medida que a regulação avance, passariam a prescrever também outras substâncias controladas, a exemplo da psilocibina (composto psicoativo dos cogumelos “mágicos”), para pessoas com outros transtornos, como depressão, dependência química e anorexia.
Doblin termina o comunicado com uma mensagem de otimismo: “Nossos esforços estão abrindo o caminho, ajudando outras organizações psicodélicas e esforços de reforma de políticas de drogas psicodélicas na direção do objetivo de longo prazo de saúde mental de massa, transitando ao final para um mundo com zero trauma e aumento de espiritualidade, tolerância e cuidado com o ambiente”.
Em poucas palavras, tudo aquilo de que mais necessitamos no Brasil.