Retrospectiva 2020: ciência psicodélica tem desaceleração paradoxal
Até que o renascimento psicodélico não foi tão mal em 2020, o ano da pandemia: 498 artigos publicados até 20 de dezembro, segundo busca com a palavra “psychedelic” no diretório PubMed.
Houve retração de 34% sobre os 754 de um ano antes, é verdade, mas ainda o bastante para continuar em evidência em meio à avalanche de estudos sobre Covid (82.513 trabalhos publicados). Mesmo encolhida, a neurociência dos estados alterados de consciência demonstra grande vitalidade.
Pesquisa psicodélica era até pouco tempo, e ainda é para muitos, um beco sem saída na carreira de pesquisador. Não mais. Imperial College, Johns Hopkins e NYU criaram centros específicos para esse campo de investigação, e o Brasil ainda vai ter o seu.
Entre os mais produtivos estão justamente o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres e o Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (EUA). Neste annus horribilis, contei mais de uma dúzia de artigos publicados por Robin Carhart-Harris e David Nutt, do primeiro, e de Roland Griffiths e Matthew Johnson, do segundo –todos eles apareceram mais de uma vez neste blog (como aqui e aqui).
Muitos artigos se dedicam a difundir que substâncias psicodélicas (MDMA, LSD, DMT, psilocibina, ibogaína) são a grande voga em psiquiatria, seja em editoriais e comentários, seja com revisões sistemáticas e meta-análises. Também há vários textos alertando para o risco de ressuscitar a reação conservadora dos anos 1970, quando a pesquisa no ramo foi paulatinamente sepultada sob o peso da regulação proibicionista.
Outro debate que ganha força na literatura biomédica diz respeito à contribuição da fenomenologia psicodélica –vivências subjetivas como visões, sinestesia, estado onírico, dissolução do ego– nos efeitos terapêuticos observados, ou quanto estes dependem das viagens ou não. A massa de estudos editados, porém, se compõe de pesquisa básica sobre os compostos e sua ação –como este exemplo com pesquisadores brasileiros, ou mais este.
Não foi só nos periódicos especializados que a ciência psicodélica aconteceu em 2020, mas sobretudo na imprensa leiga (exemplos aqui e aqui). Se em 2018 e 2019 chamava mais a atenção o teste clínico de MDMA (ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático, iniciativa da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) que já levantou US$ 30 milhões para o estudo , neste ano a cena foi tomada pelo avanço dos ensaios com psilocibina para tratar depressão.
A psilocibina também agita investidores. Empresa controversa por buscar patente de uma formulação desse composto psicoativo de cogumelos Psilocybe, a Compass Pathways levantou US$ 146,6 milhões (cerca de R$ 748 milhões) em setembro ao abrir suas ações na Nasdaq. A empresa está à frente de um grande teste clínico para tratar depressão, mas terá concorrência científica de organizações sem fins lucrativos como o Instituto Usona.
Muitos investidores se movimentam, abrindo ou adquirindo clínicas e startups, para contar com uma boa posição quando o mercado se abrir de vez para a psiquiatria e a psicoterapia baseadas em psicodélicos. Empresas como Numinus, Eleusis, MindMed, Tryp Therapeutics, MagicMed, Mydecine, MindSet, BetterLife, FieldTrip, Better Plant Sciences, Beckley Psytech, Cybin, Entheon Biomedical, Champignon Brands, Mind Cure Health etc. surgem a cada dia (veja um panorama aqui).
Elas estão mais ativas em países como Canadá e Holanda, onde cogumelos “mágicos” ou “trufas” de Psilocybe gozam de certa tolerância legal, o suficiente para funcionarem clínicas e spas psicodélicos. As oportunidades crescem também nos EUA, com os recentes plebiscitos e referendos sobre drogas.
Até no Brasil os capitalistas já estão de olho. A Red Light Holland comercializa trufas na Holanda, a Disruptive Pharma investe na distribuidora online MyPharma2Go.com, e juntas elas anunciaram acordo para atuar no mercado brasileiro.
“Esperamos agregar nosso conhecimento na cultura de Trufas Mágicas com o propósito de cultivar, manufaturar e distribuir no Brasil”, disse à newsletter Psilocybin Alpha o diretor da Red Light, Todd Shapiro.
O país tem algumas vantagens comparativas nesse setor, como a tradição de pesquisa com ayahuasca, cuja autorização para uso religioso facilita estudos pioneiros. Como não vai durar para sempre o obscurantismo que dominou 2020, cientistas e investidores daqui ainda têm chance de fazer de 2021 o ano da virada.