‘Ibogaína’ não alucinógena mantém potencial contra dependência química
Pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram a façanha de criar uma versão do psicodélico ibogaína que não causa alucinações, aparentemente, nem importa risco para o coração. Se conseguirem comprovar eficácia em seres humanos, seria uma grande promessa para o tratamento de dependência química.
Ibogaína é uma substância psicoativa derivada do arbusto Tabernanthe iboga, usado ritualmente pela etnia Bwiti, em países africanos como o Gabão e Camarões. Ela lança a pessoa num estado onírico que pode durar um dia inteiro, ou mais.
Nos anos 1960, descobriu-se nos EUA sua capacidade de diminuir sintomas agudos da crise de abstinência em dependentes de heroína e de conter a urgência imperiosa de consumir a droga (“fissura”). Apesar de proibida, alguns países –como o Brasil– admitem o uso excepcional da ibogaína como tratamento para dependência química, com taxas de sucesso que chegam a superar 60%.
O médico Bruno Rasmussen Chaves, de Ourinhos (SP), administrou o composto a centenas de pacientes, assim como o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas (IBTA), em Paulínia (SP). É mais que recomendável contar com acompanhamento médico durante a viagem da ibogaína, porque a droga afeta o ritmo do coração e pode ser fatal, cuidado nem sempre disponível em clínicas clandestinas.
Na literatura médica há registro de 22 mortes após uso da substância entre 1990 e 2015. Uma revisão de 19 casos de óbito após ibogaína indicou em 2012 que 12 dos 14 deles para os quais havia prontuários médicos detalhados envolviam distúrbios cardíacos prévios ou consumo concomitante de outras drogas, como cocaína.
O laboratório de David Olson na Universidade da Califórnia descreveu na revista Nature da semana passada como foi capaz de modificar a molécula de ibogaína e chegar à síntese de um análogo da substância que os autores afirmam não ser alucinógeno. Chamaram o composto de tabernanthólogo (TBG) e sustentam que a variante não altera perigosamente batimentos cardíacos, tampouco.
“É um trabalho revolucionário”, diz o neurocientista Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa efeitos terapêuticos da ayahuasca. “Abre a possibilidade única de investigar melhor quanto do efeito terapêutico nasce da bioquímica e quanto da experiência subjetiva em si [referindo-se ao estado onírico].”
A equipe de Olson, no entanto, testou o novo composto apenas com roedores. Outras substâncias psicodélicas que também atuam sobre o receptor 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, como LSD e psilocibina, provocam nos bichos um movimento característico da cabeça aceito por pesquisadores como correlato de alucinações.
Os experimentos mostraram que o TBG promove neuroplasticidade, ou seja, a formação de novas conexões entre neurônios que se acredita estar na origem dos benefícios terapêuticos de psicodélicos. Além disso, testes padronizados provaram que o TBG também reduz nos animais o consumo compulsivo de álcool e heroína, além de produzir efeitos análogos a antidepressivos.
O artigo indica ainda que obter TBG é mais simples que produzir ibogaína, pois a síntese química envolve apenas um passo, contra 9 a 16 para o composto original, e rende mais. Em resumo, projetaram uma droga que parece ter a mesma capacidade da ibogaína de tratar dependência química, mas desprovida do que chamam de “inaceitável perfil de segurança” –só falta comprovar isso em seres humanos.
“Ratos não têm experiências místicas”, brinca Araújo, da UFRN, para indicar que o trabalho de Olson e colegas toca num ponto nevrálgico do renascimento dos psicodélicos como drogas alternativas promissoras para tratar transtornos mentais: pressupõe-se que os conteúdos psíquicos produzidos ou aflorados durante as viagens sejam imprescindíveis para o progresso terapêutico.
Um estudo sobre ibogaína de Thomas Brown, Geoff Noller e Julie Denenberg no periódico Journal of Psychoactive Drugs defende que o efeito onirogênico da droga é decisivo para quebrar a dependência, ou pelo menos tão importante (pelas memórias e traumas que permite aflorar e que ficam disponíveis para elaboração psíquica das raízes da dependência) quanto o efeito farmacológico (neuroplasticidade).
A pergunta que Olson suscita é se, ao supostamente deletar o impacto alucinógeno, a TBG também não arriscaria cortar pela metade o potencial terapêutico antidependência. Restando apenas a modulação bioquímica, centrada no receptor serotoninérgico 5HT2A, o sonho de livrar-se da dependência talvez não se materialize em pessoas.
Araújo conta que, no caso do estudo de seu grupo que mostrou efeito antidepressivo rápido e duradouro da ayahuasca contra depressão, ambos os ingredientes –farmacologia e vivência subjetiva– parecem contribuir para o resultado terapêutico. Além disso, o efeito psicodélico não se resume ao alvo 5HT2A, e substâncias psicoativas atuam sobre vários outros receptores e sistemas, cada uma com um perfil peculiar.
O neurocientista brasileiro aponta, para reforçar seu raciocínio sobre a complexidade dos efeitos, que há mais serotonina espalhada pelo organismo do que no cérebro. No entanto, psicodélicos agem mais sobre a mente do que no restante do corpo.
Nicole Galvão-Coelho, coautora de Araújo na pesquisa sobre depressão, já demonstrou a capacidade da ayahuasca de modular tanto a neuroplasticidade quanto níveis de cortisol (hormônio do estresse) e um efeito anti-inflamatório.
O LSD, por seu lado, tem forte influência sobre a dopamina. Cetamina e escetamina, sobre o glutamato. MDMA, sobre a noradrenalina.
“Efeitos psicodélicos não estão necessariamente associados só com o receptor 5HT2A, é uma simplificação. Existem vários antidepressivos que atuam sobre a serotonina e não provocam experiências visuais”, ressalva Araújo. “Há outras danças por trás dos psicodélicos.”
Argumento parecido apareceu numa série de tuítes do psicólogo Matthew Johnson, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins: “Há um pouco de debate sobre o alvo errado. [Olson] não defende que efeitos subjetivos não possam ser terapêuticos. Provavelmente há múltiplos mecanismos subjacentes à eficácia da terapia psicodélica, e formas de neuroplasticidade podem ser uma delas”.
“Precisamos nos afastar de falsos debates entre experiência/psicologia e biologia, e pensar de maneiras mais nuançadas. A experiência, afinal de contas, tem uma biologia também.”
A antropóloga brasileira Bia Labate, do Instituto Chacruna na Califórnia, se incomoda com abordagens muito reducionistas da questão: “A ciência procura separar os efeitos e chegar na suposta ‘essência’ da ‘cura’. A busca por uma droga ‘clean’, sem efeitos alucinógenos, deve ser entendida dentro de um cenário maior”, defende.
“Por um lado, uma tentativa moral de eliminar os supostos aspectos alucinógenos da experiência, que são vistos com ‘negativos’ ou ‘errados’. E, por outro, em função de interesses econômicos, isto é, patentear certos achados.”
Labate esteve em 2001 em Camarões para conhecer em profundidade os rituais da iboga. Do ponto de vista das populações tradicionais, de onde essas substâncias provêm, a cura é holística, explica.
“As concepções de enfermidade envolvem não só aspectos físicos, mas a relação dos humanos entre si, e entre humanos e não humanos. A cura advém da comunhão de plantas, que contêm múltiplos alcaloides, e da experiência mística e coletiva.”