ONU e EUA dão nova vida à maconha; Brasil elege morte por armas de fogo
A reclassificação da maconha no imaginário moral e na legislação avança pelo mundo. As Nações Unidas deram o passo mais recente na reforma de políticas de drogas, semana passada, quando sua Comissão sobre Drogas Narcóticas retirou a cânabis do Anexo 4 (Schedule IV) da convenção da ONU sobre a matéria.
A Convenção Única sobre Drogas Narcóticas data de 1961 e foi emendada pelo Protocolo de 1972 (há ainda uma Convenção sobre Drogas Psicotrópicas de 1971). O Anexo 4 relaciona as substâncias supostamente mais perigosas e causadoras de dependência, e manter a marijuana ali estava em franca contradição com a tendência liberalizante observada em várias partes do mundo –mas não no Brasil, claro.
Vários referendos e plebiscitos na eleição presidencial americana mudaram o status legal da maconha em alguns dos 50 estados. Agora são 38 deles em que o uso medicinal está autorizado e 16 em que se permite o uso recreativo adulto.
O último lance partiu da Câmara dos Deputados de lá, que retirou a planta da lei de substâncias controladas, em que figurava ao lado de cocaína e heroína, muito mais perigosas. Para que a descriminalização federal se efetive, há que aprovar a nova legislação no Senado ainda dominado por republicanos, o que parece improvável.
De certo modo mais surpreendente, vista do Brasil, foi a descriminalização de cogumelos psicodélicos Psilocybe em Oregon e Washington, DC. Isso embora as substâncias psicoativas dos fungos, psilocibina e psilocina, continuem nas listas de compostos proscritos.
As mudanças legais são impulsionadas pela pesquisa biomédica, que comprovam a cada dia benefícios terapêuticos tanto da maconha quanto de psicodélicos. No primeiro caso, para tratar várias condições, como certos tipos de epilepsia e efeitos adversos de quimioterapia.
No caso da psilocibina e de psicodélicos como DMT (presente na ayahuasca), ibogaína, LSD e MDMA (ecstasy), estão na mira transtornos mentais como depressão, estresse pós-traumático, anorexia, ansiedade, tabagismo, alcoolismo e outras formas de dependência química. Os estudos ainda são experimentais, mas cada vez mais perto de obter aprovação para uso medicinal, pelo menos os que se referem a psilocibina para depressão e MDMA para estresse pós-traumático.
Na Holanda, o micélio de fungos Psilocybe (aglomerado de filamentos da hifa que se espalham abaixo do cogumelo propriamente dito), conhecido como “trufas psicodélicas”, é vendido até em cafés, porque essa variante não está especificamente proibida e acaba tolerada. No Brasil, situação parecida faz com que cogumelos secos possam ser adquiridos pela internet (para não falar da ayahuasca, legalizada para uso religioso).
Enquanto isso, arrasta-se no Congresso brasileiro, desde 2015, o projeto de lei 399, com vistas a “viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação”. O ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, se empenha pessoalmente para que a proposta não seja aprovada.
Outra frente se encontra paralisada no Supremo Tribunal Federal. O plenário iniciou também há cinco anos o debate sobre descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal, mas, após três votos favoráveis, o tema espinhoso não voltou à pauta –é de pensar que os presidentes do STF, em condição de fazê-lo, se encolhem por temor da reação bolsonarista.
Nesse quadro para lá de retrógrado, parece impensável que entre em pauta a regulamentação de substâncias psicodélicas. Isso embora o país tenha tradição de pesquisa na área, desde pioneiros como Elisaldo Carlini na Unifesp, passando pela USP de Ribeirão Preto e, mais recentemente, pela UFRN, Unicamp e outras instituições de pesquisa.
O presidente Jair Bolsonaro não se importa com saúde e vida, como tem deixado evidente na reação à Covid-19. Faz pouco caso da tortura, do estupro, da homofobia, do racismo, da violência miliciano-policial e dos 180 mil mortos pelo coronavírus, mas vê sentido em eliminar impostos para importação de armas de fogo em meio a grave repique da epidemia.
Seu negócio é a morte, sempre foi. Só num país de gente frouxa ele poderia chegar ao poder e nele se manter por dois anos inteiros, rindo até de quem o elegeu.