Ilusões psicodélicas não são patológicas e podem até fazer enxergar melhor

Aborrecido com a conversa interminável, um homem de seus 60 anos deixa o grupo, caminha poucos metros pelo caminho de terra e para debaixo de uma árvore. Faz três horas que tomou cerca de 150 microgramas de LSD –uma dose cheia, mas não heroica, do psicodélico. Seu olhar é atraído para cima, e ele duvida do que vê.

A árvore está viva, viva demais. Claro, toda árvore vive, diz para si próprio, mas é mais que isso. Não há vento. Uma seção do tronco se move de forma lenta e lânguida, como uma serpente enorme. A casca da madeira tem padrões geométricos de amarelo, marrom e verde. Sabe que é uma ilusão, e se alegra com a chance de ver a árvore como se fosse a primeira vez que vê uma.

Passam alguns segundos de embevecimento confuso. A serpente vegetal ganha aos poucos os contornos de uma mulher. Os desenhos geométricos coalescem como estampa de sua blusa. A realidade real se impõe de modo brutal na visão de uma bermuda jeans. O momento mágico se desfaz: ele está, de fato, diante de uma moça que subiu na árvore, uma das companheiras de viagem no sítio da Grande São Paulo. Ri –de si mesmo, da convicção poderosa e fugaz propiciada pela visão.

O que são essas visões mediadas por psicodélicos, afinal? Quais mecanismos psíquicos lhes dão origem? No que elas diferem ou se aproximam das alucinações produzidas não por drogas, mas por transtornos psiquiátricos como os do espectro da esquizofrenia ou por distúrbios neurológicos como certas formas de demência? Como podem os psicodélicos carregar potencial terapêutico, por exemplo para tratar depressão, se seu efeito reproduz sintomas similares aos de graves patologias?

A neurociência ainda não tem repostas completas para essas questões, ainda que venha dando passos decididos nessa direção. O Consórcio Internacional para Pesquisa de Alucinações (ICHR, na sigla em inglês) mapeou o que se sabe sobre a matéria em vários níveis, da farmacologia às imagens funcionais do cérebro e das áreas envolvidas, passando pela fenomenologia, isto é, os relatos de experiências vividas por pessoas que têm visões ou alucinam.

Não seria o caso, aqui, de entrar nos detalhes do artigo publicado, no periódico Schizophrenia Bulletin, por Pantelis Leptourgos e uma penca de colaboradores, com o título “Alucinações sob psicodélicos e no espectro da esquizofrenia: Uma comparação interdisciplinar e multiescalar”. O leitor terá de se contentar com um resumo muito superficial e imperfeito, mas fica a recomendação para enfrentar o estudo original (em inglês).

A primeira semelhança descrita entre os dois tipos de alucinação, o psicodélico e o psiquiátrico, está uma redução na integridade e na estabilidade de redes funcionais do cérebro. Ou seja, uma espécie de relaxamento nos padrões de disparos simultâneos de neurônios em diferentes áreas cerebrais quando a pessoa se encontra em determinados estados (sono, vigília, atenção, introspecção etc.).

Uma rede importante aqui, da qual muito se ouvirá falar neste blog, é a rede de modo padrão (mais conhecida como DMN, na sigla em inglês). Ligada à introspecção, ela normalmente só fica ativa quando silenciam outras redes mobilizadas na realização de tarefas, com atenção voltada para o exterior –é o que se chama de anticorrelação, ou ortogonalidade, um funcionamento mais ou menos excludente que também se enfraquece durante a emergência de alucinações na esquizofrenia e com o uso de alguns psicodélicos, como a psilocibina.

Outra similaridade apontada no artigo é a atribuição às visões do que os autores denominam como forte sentido metafísico. As vozes ouvidas pelo esquizofrênico são percebidas por ele como vozes reais, não fabricações suas. O tronco coberto de desenhos geométricos que se contorce lentamente aparece na viagem psicodélica como revelação da verdadeira essência viva e feminina do vegetal, embora não passe de uma mulher que trepou na árvore.

Há algumas diferenças marcantes, porém. Psicodélicos turbinam disparos principalmente em áreas de córtex sensorial primário, enquanto na psicose a superativação afeta redes associativas. No primeiro caso, são transitórias, desaparecem com intervenção de pensamentos racionais e quando passa o efeito da droga; no segundo, manifestam-se de maneira crônica.

O primeiro estudo a evidenciar a ativação de córtex visual primário por um psicodélico –no caso, ayahuasca– foi realizado por brasileiros e publicado em 2012, no periódico Human Brain Mapping, pelo grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN. O artigo de Leptourgos, incrivelmente, não cita o trabalho pioneiro.

Alucinações e ilusões psicodélicas são predominantemente visuais, em geral geométricas, mas sem perda completa do senso de realidade. Já as psicóticas são comumente auditivas, vozes que o doente não consegue distinguir de vozes reais. Nas duas situações, porém, as visões vêm carregadas de intenso significado.

Leptourgos e colegas consideram alguns modelos teóricos que poderiam explicar o funcionamento normal do cérebro e o que nele se altera no curso de alucinações. Para eles, em ambos os casos ocorrem perturbações do mecanismo computacional identificado como processamento preditivo, vale dizer, das funções cerebrais que mobilizam conteúdos prévios para interpretar o que chega pelos sentidos e decidir o que fazer ou pensar a respeito. Desfeita a perturbação, a árvore-mulher maravilhosa volta a ser uma simples mulher na árvore.

Pense no cérebro como um filtro. Uma cacofonia de dados sensoriais tem de ser processada para ganhar sentido, na forma de hipóteses que vão sendo testadas com base em tudo que fixou na memória do que a pessoa viveu e aprendeu, até que ela ou ele conclua algo a respeito (não necessariamente de modo consciente). A trama do filtro que peneira as associações se compõe das redes de neurônios que se habituaram a disparar juntos para gravar o que se viveu e aprendeu de forma significativa.

Reprodução de Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology.

Outro artigo esclarecedor sobre o tema, “Unificando teorias sobre efeitos de drogas psicodélicas”, foi apresentado em 2018 por Link Swanson, da Universidade de Minnesota, na revista Frontiers in Pharmacology/Neuropharmacology. O modelo do processamento preditivo, mostra Swanson, é apenas uma de várias construções teóricas fundadas na metáfora do filtro –uma história de mais de um século de tentativas de explicação da consciência e suas alterações que vão sendo aperfeiçoadas e abarcam de William James a Henri Bergson e de Sigmund Freud a Aldous Huxley.

O cérebro entrópico proposto por Robin Carhart-Harris, do Imperial College de Londres, está entre elas. Nessa concepção, a mente em condições normais se encontra num equilíbrio ótimo entre ordem e desordem, com redes como a DMN flexíveis o bastante para permitir adaptação do sujeito a novas circunstâncias e estáveis o suficiente para manter a unidade do self (ou do ego, como diria Freud).

Esse tipo de modelo permite também ir além do paradoxo na oposição entre o terapêutico e o patológico que as alterações visuais colocam para as substâncias psicodélicas, que por muito tempo foram chamadas também de drogas psicotomiméticas, pois induziriam uma imitação de estados psicóticos. Esse paradigma foi abandonado, em grande parte, a partir dos anos 1960, quando as diferenças entre a alteração da consciência nas “viagens” psicodélicas e o delírio psicótico foram ficando evidentes e as terapias psicodélicas ganharam espaço.

A explicação envolvendo a DMN sugere que, em transtornos como a depressão, a rede como que entra em parafuso, entregue à rigidez e repetição de pensamentos negativos, por assim dizer um excesso de ordem que culmina na ruminação incessante. O potencial terapêutico dos psicodélicos adviria, então, justamente de sua capacidade de relaxar a DMN, vale dizer, de reduzir sua integridade e estabilidade (aumentando a entropia), ao mesmo tempo em que arrefece a anticorrelação dela com redes mais voltadas para execução de tarefas e atenção voltada ao exterior.

Muito simplificadamente, uma atividade cerebral menos balizada pela ordem permitiria a emergência ou construção de novos percursos mentais. Caminhos alternativos, lampejos incomuns, hipóteses mais ousadas que não são descartadas de pronto como irrelevantes, deixando assim de sucumbir ao filtro implacável das memórias marcadas a ferro e fogo na psique, não raro por traumas incandescentes. Abrem-se frestas por entre as quais, como nas alucinações lisérgicas, interpretações impensáveis podem aparecer banhadas na luz da realidade.

Há uma mulher na árvore, e é verdade. A mente capaz de entender que há mais de um sentido nessa afirmação e de discernir o que é emocionante do que é apenas real e, mais, que não há contradição necessária entre uma coisa e outra –eis a mente de uma pessoa com mais chance de ser menos infeliz.