Editorial alerta para risco de ciência psicodélica descarrilar de novo
O melhor sintoma de que a febre psicodélica está em alta aparece no suor despendido por pesquisadores pioneiros da área na defesa da pureza científica. O apelo mais recente saiu quarta-feira (2) num editorial da Jama Psychiatry, uma das publicações da Associação Médica Americana.
“Psicodélicos em Psiquiatria — Evitando que o Renascimento Saia dos Trilhos” é o título do comentário assinado por Roland Griffiths e David Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins, com Mary Yaden, da Universidade da Pensilvânia.
O renascimento a que se refere o artigo consiste na enxurrada de ensaios clínicos com psicodélicos como a psilocibina de cogumelos, a DMT da ayahuasca e a MDMA do ecstasy, em especial a partir de 2000, para testá-los como tratamentos alternativos de vários transtornos mentais, com ênfase na depressão.
Os autores começam assinalando que o campo de pesquisa, retomado em meados da década de 2000, alcança agora a mesma idade de sua primeira encarnação, nos anos 1950-60, até ser abortada pela proscrição dessas drogas na voga reacionária diante da contracultura. E expõem o temor de que o sequestro de seus avanços científicos pela esfera da cultura e da política leve de novo ao limbo em que vegetaram por quatro décadas.
“Um trilho à frente favorece o mesmo tipo de exuberância, pensamento utópico e abordagens clínicas irregulares que contribuíram para interromper o período prévio de pesquisa”, alertam. “Combinada com a tendência contemporânea de politizar a ciência, a possibilidade de uma repetição dos anos 1960 representa uma preocupação significativa.”
Griffiths e os Yaden defendem caminho alternativo nessa encruzilhada: “Um outro trilho à frente, mais cuidadoso e sistemático, envolve a integração apropriada de tratamentos psicodélicos em paradigmas psiquiátricos existentes, baseados em evidências, tais como psicoterapia e farmacoterapia.”
Quando Griffiths fala, recomenda-se ouvir. Ele é uma das cabeças-brancas do ramo, líder e autor de vários dos estudos responsáveis pela reabilitação da pesquisa psicodélica na corte da ciência respeitável, como o trabalho de 2006 sobre experiências místicas desencadeadas por psilocibina. Nessa condição, Griffiths já apareceu mais de uma vez neste blog, como no seguinte vídeo (em inglês):
O risco existe, de fato, em especial quando se considera a onda conservadora que se abateu sobre os EUA, o Brasil e outras nações –ora em crise, se espera, com a derrota eleitoral de Donald Trump.
Todos os psicodélicos permanecem como substâncias proscritas em acordos internacionais e várias legislações domésticas, o que dificulta muito a pesquisa. A reversão desse status legal mal começou, na esteira da maconha medicinal, com os referendos sobre psilocibina em cidades e estados americanos.
Não há indícios gritantes de que a história vá se repetir, entretanto. Em lugar de hippies, militantes por direitos civis e contestadores da guerra, alguns dos apóstolos da psicodelia no presente são yuppies do Vale do Silício, de Wall Street e da Faria Lima adeptos da microdosagem de LSD e psilocibina.
Também brilham na renascença os neurocientistas sem preconceitos, filhos e netos daqueles cujo sonho acabou nos anos 1970. Uns e outros, nas mesas do mercado financeiro ou nas bancadas de laboratório, vislumbram ganhos polpudos com as startups que começam a brotar das universidades.
Parece um pouco exagerado o temor de gatos escaldados como Griffiths. Num reflexo muito comum da academia, ao ver seu objeto de pesquisa escapar do cercadinho das publicações científicas e de seu jargão obscuro, denunciam preventivamente a própria divulgação de seus trabalhos.
“Numerosos e recentes livros de editoras populares, websites, podcasts e reportagens na mídia têm promovido acriticamente os benefícios presumidos de psicodélicos”, acusam. “A demanda de pacientes está aumentando, assim como o interesse na população em geral, com a possibilidade de que expectativas ultrapassem os dados atuais sobre quais resultados podem ser previstos com confiança.”
“Psicodélicos não são nem cura para transtornos mentais nem saída fácil para uma vida incompleta e não devem ser apresentados como panaceia. Subculturas pró-psicodélicos, de modo agourento, estão fomentando de maneira crescente visões utópicas para a sociedade com base em achados de pesquisa que, embora intrigantes, ainda devem ser considerados preliminares.”
Em 2017, quando assisti a uma palestra de Griffiths na conferência Psychedelic Science em Oakland, ele não reagiu mal aos aplausos de hippies envelhecidos na plateia quando mencionou que ateus participantes de um estudo seu com psilocibina tinham deixado de sê-lo. Além de poucos pesquisadores corajosos como ele, foram esses psiconautas do submundo que impediram uma vitória completa do proibicionismo retrógrado.
Decerto há charlatães e irresponsáveis, numa franja de terapeutas esotéricos, prescrevendo psicodélicos em doses inadequadas ou até para quem não devia tomá-los, como pessoas com tendências ou histórico de psicose. Tampouco faltam oportunistas vendendo lotes no paraíso artificial em que a modinha “welness” encontra o misticismo de butique.
Meter essa fauna no mesmo saco de divulgadores do calibre de um Michael Pollan, como fazem os Yaden e Griffiths na Jama Psychiatry ao não dar nome aos bois, equivale a cuspir no prato em que se comeu. O livro “Como Mudar sua Mente”, de Pollan, fez provavelmente mais para ressuscitar o prestígio da pesquisa psicodélica do que uma dúzia de artigos em periódicos especializados.
Pollan, assim como outros jornalistas de ciência que fazem a quente a crônica do renascimento psicodélico, não são propagandistas. Ancoram-se nas publicações científicas de neurocientistas para separar o joio do trigo, mas também se valem de experiências pessoais com psicodélicos para descrever com propriedade o que nelas se vislumbra de potencial terapêutico –o mesmo fazem muitos pesquisadores do ramo, aliás.
Este blog também enfrentou restrição em sua estreia. Receio que meu livro “Psiconautas” (no prelo, programado para 2021) receba o mesmo tipo de reparo. Repito aqui, preventivamente, o que respondi então:
A função do jornalista é noticiar o que for relevante para possíveis tratamentos de transtornos mentais. Claro, sempre ressalvando que ainda são pesquisas experimentais, não autorizadas para uso disseminado.
Cabe ao psiquiatra e ao pesquisador fazerem o mesmo, seja para repórteres, seja para pacientes. Todos os três –jornalistas, cientistas e profissionais de saúde– precisam caminhar juntos na direção de esclarecer o público sobre o funcionamento da ciência.
Acrescento agora: o caminho é longo e nos fará suar muito, mas não há como se desviar dele, nem parece correto lançar companheiros de viagem debaixo do trem.
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ADENDO em 05.12.2020: Depois de publicar esta nota, assisti ontem à noite ao minidocumentário “A História da Johns Hopkins” (42 mins.), primeiro capítulo da série Foco em Pesquisa Clínica, da Horizons. Muito bom, sobretudo as entrevistas esclarecedoras de Roland Griffiths e Matthew Johnson. Mas percebo algum ruído entre as cautelas adiantadas por Griffiths no editorial da Jama Psychiatry (comentado acima) e a apresentação bem entusiasmada dos estudos clínicos sobre potencial terapêutico de psicodélicos para depressão, anorexia, Alzheimer, alcoolismo, tabagismo… Pode parecer panaceia, algo que Griffiths pede que NÃO se pregue.
Além disso, ele também deu muita ênfase no minidoc para a qualidade mística da experiência psicodélica, outra marca registrada dos tempos da contracultura, movimento que teria desencadeado a reação conservadora proibicionista e inviabilizado a pesquisa.