Pesquisadores apontam risco de microdoses para válvulas cardíacas

No Brasil é bem fácil adotar um regime de microdosagem de psicodélicos, com ayahuasca ou com fungos Psilocybe (“cogumelos mágicos”). Mas será seguro para a saúde do psiconauta? O coração aguenta?

Nesses dois casos, pelo menos, não há risco de ir para a cadeia. A dimetiltriptamina (DMT) é ilegal no país, mas não como componente da ayahuasca. Um pouco de pesquisa na rede logo dará em páginas que vendem o chá para tomar em gotas, e não faltam cultos em que a bebida ritual é ministrada aos copos.

Status legal similar vale para a psilocibina, porque a proibição do composto não cobre os cogumelos propriamente ditos. De resto, eles crescem em qualquer pasto depois da chuva e também podem ser encomendados, secos, pelo correio, seja para empreender viagens completas, seja para buscar alegados benefícios psíquicos sem o ônus dos efeitos psicodélicos.

Esse é o espírito da microdosagem, muito praticada no Vale do Silício e em Wall Street, presumivelmente também entre faria-limers. Promessas de melhor disposição física e mental, bom humor, empatia e criatividade turbinadas, mas tudo expurgado de alucinações e do risco de dissolução do ego que vêm com as doses cheias.

Essas marcas das viagens com alucinógenos, no caso dos cogumelos secos, começam a surgir mais ou menos a partir de um grama (1 g), mas com uma enorme margem de erro. Depende muito do produto e da pessoa, a começar de seu peso corporal.

Por outro lado, é improvável que alguém tenha alucinações ingerindo 1/8 de grama (0,125 g) dos fungos à venda no Brasil. Microdosagem seria ingerir essa quantidade diminuta duas vezes por semana, por exemplo, mas fique bem claro que não há estudos científicos controlados suficientes para comprovar se isso traz de fato os benefícios apontados por entusiastas.

Substâncias psicodélicas clássicas como ayahuasca, LSD e psilocibina agem sobre os receptores de serotonina, neurotransmissor que participa da regulação de várias funções, do humor à libido. Tais receptores da família 5HT, alvo de vários medicamentos antidepressivos, estão presentes em células cerebrais e em várias partes do corpo, inclusive nos sistemas digestivo e cardíaco.

Efeitos psicodélicos estão mais relacionados com os receptores 5HT2A. Mas há pelo menos 15 variedades dessa família de moléculas, e a mais problemática parece ser a 5HT2B, em especial as que se encontram nas válvulas cardíacas. Já foram retirados de circulação vários remédios que ativam o receptor 5HT2B e comprovadamente causam dano a esses órgãos vitais.

Estrutura molecular de um receptor de serotonina, da família 5HT (S. Jaehnisch/Wikimedia)

Nenhum composto psicodélico é específico o bastante para ativar só o receptor 5HT2A, e todos acabam atuando também sobre os outros parentes do clã, em maior ou menor grau. Como ninguém toma LSD ou ayahuasca todo dia para alucinar, até porque frustraria a viagem no obstáculo da tolerância, o risco de cardiopatias crônicas não se materializa.

A coisa muda de figura com a microdosagem, quando psiconautas comedidos recorrem aos psicodélicos a intervalos curtos e por meses ou anos a fio. O alerta sobre efeitos cardíacos adversos de moléculas com afinidade ao 5HT2B foi mais uma vez lançado por Daniel Hoyer no periódico Neuropharmacology, mas em caráter genérico, abrangendo dezenas de medicamentos, não só os alucinógenos.

Bem mais específico foi o pedido de cautela formulado por Kelan Thomas na página do Instituto Chacruna, em dezembro: “Não falta hype na mídia acerca da microdosagem de psicodélicos, no momento, mas os consumidores devem acautelar-se, porque o uso crônico pode literalmente partir seus corações”.

Matthew Johnson, diretor do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência na Universidade Johns Hopkins, reiterou num tuíte a necessidade de precaução. “Muitos de nós, cientistas responsáveis pelo renascimento da pesquisa psicodélica, pensamos que há uma dúvida realista sobre enfermidade de válvulas cardíacas proveniente da crônica administração de microdoses”, escreveu.

(Reprodução)

“Não é provavelmente um risco para o modelo de tratamento psicodélico envolvendo só umas poucas sessões de dosagem. Tomando um par de vezes por semana, como na microdosagem, durante anos, provavelmente é mais arriscado. Simplesmente não sabemos ainda com certeza, mas, materialmente, o dano é certamente plausível.”

Nenhuma droga é inofensiva, desprovida de efeitos adversos –a começar por álcool e tabaco, que são legais apesar de mortais em excesso. E psicodélicos não são para qualquer um, nem em qualquer quantidade.

Antes de se empanturrar com balinhas na balada ou se exibir no escritório com microdoses, procure informação e, de preferência, converse com seu médico.