Suíços questionam papel terapêutico de alucinações e dissolução do ego
As alterações visuais e o apagão das fronteiras do self são efeitos típicos de psicodélicos clássicos como LSD, ayahuasca e psilocibina (cogumelos “mágicos”), mas não da MDMA (ecstasy). Estudo suíço com a última substância vem pôr em dúvida que alucinações e dissolução do ego sejam componentes necessários do benefício terapêutico desses compostos, atualmente sob investigação.
Todos eles vêm sendo testados como potenciais tratamentos para transtornos mentais, com destaque para a depressão. Pela ausência de “viagens”, entretanto, muitos nem consideram a MDMA um verdadeiro psicodélico, preferindo chamá-la de empatógeno (causador de empatia) ou entactógeno (facilitador de contato interior), para distingui-la dos alucinógenos.
Essas drogas atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina, envolvido na modulação de várias funções (humor, sono, libido etc.), em especial o receptor rotulado como HT2A, de onde se originaria seu efeito antidepressivo. Afetam também outros neurotransmissores, como a dopamina (MDMA ainda tem efeito sobre a noradrenalina).
Apesar dessas diferenças marcantes com os compostos clássicos, MDMA foi o que mais avançou na trilha de autorização para tratar uma condição específica, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). É o carro-chefe da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na abreviação em inglês) na corrida à FDA, agência de fármacos dos EUA, para aprovar novos tratamentos.
Felix Müller e colaboradores da Universidade da Basileia decidiram investigar a hipótese de que efeitos psicodélicos tradicionais constituam apenas um epifenômeno da ingestão dessas drogas. Vale dizer, um efeito colateral sem relação com o impacto terapêutico esperado.
No artigo publicado sexta-feira (20) no periódico Neuropharmacology eles não explicitam que viagens representam a grande fonte de preconceito contra as terapias psicodélicas, por causa da associação com a contracultura e a reação proibicionista. Mas isso tem algo a ver com a escolha do ecstasy pela Maps, assim como o TEPT –um transtorno mental de veteranos de guerra, heróis por excelência de conservadores americanos.
Os pesquisadores da Suíça esmiuçaram efeitos no cérebro de 45 pessoas que tomaram MDMA ou placebo. Fizeram isso com ajuda de imagens de ressonância magnética funcional, que mapeiam a atividade em diversas regiões e redes cerebrais.
No foco principal esteve a rede de modo padrão, mais conhecida pela sigla em inglês DMN. Esse conjunto de conexões entre áreas cerebrais está relacionado com introspecção e se mostra ativo demais em distúrbios que implicam ruminações de pensamentos e sentimentos negativos, como a depressão.
Atribui-se ao relaxamento da DMN o efeito antidepressivo dos psicodélicos, já constatado com ayahuasca em pioneiro teste clínico controlado brasileiro e também em ensaios avançados com psilocibina. Os suíços constataram um padrão semelhante de redução nas conexões internas dessa rede sob efeito da MDMA, assim como em outras áreas.
Como o ecstasy não origina alucinações nem dissolução do ego, surge de pronto a pergunta sobre a contribuição ao benefício terapêutico oferecido por essas alterações psíquicas mais características, se é que têm alguma. O conteúdo das visões, assim como a experiência mística associada à dissociação do ego, vistos desse ângulo, poderiam ser menos importantes para o tratamento do que se supôs até agora.
Não deixa de ser um reforço para a perspectiva que privilegia o enquadramento neurofarmacológico das terapias psicodélicas, do qual emergiria em destaque a MDMA. Cairiam para um segundo plano, assim, as psicoterapias psicodélicas clássicas que mobilizam a dissociação egoica como componente pivotal do que se poderia descrever como reset terapêutico.
O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, ressalva que a MDMA é também o composto menos seguro na aplicação clínica, por atuar sobre a noradrenalina, que acelera batimentos cardíacos. São conhecidos, ainda que raros, os casos de hipertermia (superaquecimento) e até mortes em decorrência do uso recreativo de ecstasy em baladas.
“Não é o caso de dispensar uma nem outra opção. Precisamos de mais pesquisas sobre os entactógenos, sobre quais casos psiquiátricos têm potencial”, recomenda Tófoli. “É importante pesquisar todos os compostos, sem desprezar o potencial terapêutico dos psicodélicos clássicos.”