Ciência psicodélica se afasta do misticismo sem perder a ternura
Viagens com LSD ou a psilocibina de cogumelos “mágicos” podem ser experiências perturbadoras, e não poucos que passaram por isso acreditam ter chegado mais perto de algum deus. Há quem diga que essas drogas podem converter ateus em crentes, ou amolecer o coração do conservador mais empedernido. Mas é melhor ir devagar com o andor do misticismo, porque os psicodélicos são de barro.
A discussão foi reaberta pelo bioeticista Eddie Jacobs na revista Scientific American, sob o título provocador de “E se uma pílula puder mudar sua política ou crenças religiosas?” (em inglês). Ele alerta para a possibilidade de que a associação entre o potencial psicoterapêutico e epifanias religiosas queime o filme das substâncias psicodélicas.
Há precedentes preocupantes, de fato. Os rótulos de misticismo e o pacifismo foram colados ao LSD pela contracultura e atingiram proporções messiânicas com as pregações de Timothy Leary. As viagens transformadoras salvariam o mundo, um maluco por vez, e quanto mais gente tomasse a droga, melhor.
A reação proibicionista dos anos 1970 acabou com esses sonhos. Só que ela baniu também, ou quase, a pesquisa científica com esses compostos para tratar transtornos mentais como depressão e alcoolismo, que também decolavam. Elas foram então abortadas e agora pelejam para voltar ao céu da ciência normal. No radar de Jacobs aparecem turbulências originadas pelos fortes ventos conservadores do presente.
Para eventualmente vingar como tratamentos autorizados contra depressão, por exemplo, o que poderia acontecer nos EUA com a psilocibina em poucos anos, psicodélicos precisam sair da lista de substâncias ilícitas. Ou, pelo menos, acabar regulamentadas como adjuvantes em psicoterapia, processo já iniciado no estado de Oregon. Trumpistas alarmados com o risco de novos antidepressivos virarem um elixir antifascista ou ateísta podem erguer sérios obstáculos nessa cruzada.
Matthew Johnson e David Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (JHU), se apressaram a dissipar o vínculo ameaçador. Publicaram na mesma revista a resposta “Não há boa evidência de que psicodélicos possam mudar sua política ou religião” (em inglês).
Ocorre que muito da associação da psilocibina com misticismo partiu do grupo da JHU que deu origem ao Centro para Pesquisa Psicodélica. Mais precisamente, do trabalho do pioneiro Roland Grifftihs, que publicou em 2006 um estudo sobre a significado espiritual das experiências de tipo místico desencadeadas pelo composto psicoativo dos cogumelos Psilocybe.
Outra pesquisa, esta do grupo de Robin Carhart-Harris no Imperial College de Londres, investigou o aumento da identificação com a natureza e o decréscimo de visões políticas autoritárias em participantes de um estudo preliminar com psilocibina para depressão. Questionários padronizados para mensurar o grau de adesão a esses valores foram empregados com apenas sete voluntários, o que equivale a dizer que não se devem extrair conclusões muito bombásticas dos dados apresentados.
Além das limitações intrínsecas a esse tipo de investigação, há que considerar o forte viés de confirmação que se pode farejar aí. Pessoas conservadoras são menos inclinadas a tomar psicodélicos ou a participar desses estudos. Também parece mais provável que os voluntários tenham experiências anteriores com essas drogas ilícitas e pertençam àqueles grupos dispostos a enfrentar riscos para ter experiências espirituais significativas.
De resto, as chamadas para tais pesquisas selecionam esse perfil de maneira ativa. Por curiosidade, outro dia me decidi a preencher uma pesquisa online da JHU sobre mudança de crenças ocasionadas por experiências psicodélicas. Logo no começo a pessoa será excluída se responder “não” a uma pergunta sobre ter passado por alteração desse quilate esotérico que atribua à droga.
A dificuldade está em como interpretar o pré-requisito “mudança”. Do modo como a questão é formulada, o participante acaba estimulado a entender como “troca” ou “deslocamento” de valores –o que não era meu caso (por exemplo, transferir-se da extrema direita para o centro do espectro político, como andam dizendo de Sérgio Moro). Alertado por outro voluntário dispensado de cara, forcei um pouco a mão e decidi que “intensificação” caberia no conceito de mudança.
Eu já era ateu antes dos psicodélicos, e assim continuei, como vai narrado no livro “Psiconautas” (no prelo, lançamento em 2021). Minha orientação política se pautava por valores como justiça social, direitos humanos, liberdades individuais e preservação ambiental –nada disso mudou.
Por outro lado, tomar ayahuasca, LSD, MDMA e psilocibina ocasiona algumas experiências espirituais profundas. Atenção: “espirituais”, e não místicas, nem religiosas. Os resultados ajudam a compreender por que os psicodélicos carregam potencial terapêutico, como indicam os testes clínicos ainda preliminares.
Aprofunda-se até quase um estado de graça o prazer de estar em contato com a natureza e poder admirar a beleza de uma ave. A comunhão com a dor de pessoas de quem nem era amigo próximo faz correrem lágrimas. Vínculos familiares se fortalecem, o medo da morte cede, a doença deixa de ser vista como injustiça malévola.
Dá para entender que essa reconexão com coisas maiores do que o ego –natureza, humanidade, semelhantes– seja sentida por alguns como experiência mística, mas não é obrigatório atribuir a condição de realidade externa àquilo que se experimenta na psique. A chave parece estar no aumento da empatia de que todos são capazes, e para isso não é preciso acreditar que amor ao próximo é um comando divino.
Duvido que um conservador ou um crente deixe de sê-lo por tomar LSD ou comer cogumelos; parece mais crível que a experiência lhe reviva os sentimentos generosos que terminaram ossificados em proibições e mandamentos autoritários. Criar conexões cerebrais e abrir caminho para pensamentos novos não fará mal a ninguém.
Tudo somado e subtraído, a promessa medicinal dos psicodélicos só tem a ganhar livrando-se do misticismo e das pretensões messiânicas. Não é um ingrediente necessário, e nem há base científica sólida para o vínculo, como em boa hora assinalam Jacobs, Johnson e Yaden.