Anvisa aprova spray nasal psicoativo para tratar depressão grave
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou terça-feira (3) a comercialização do medicamento Spravato, um spray nasal para tratar pessoas que tomaram sem sucesso dois medicamentos antidepressivos, a chamada depressão resistente. Poucos sabem, mas a escetamina (ou esquetamina), é uma droga psicodélica.
A venda ainda depende de fixação de preço, o que pode demorar até três meses. Para tanto, o laboratório Janssen precisa que o remédio passe pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), um órgão interministerial.
Em mercados estrangeiros, como União Europeia, EUA e Canadá, o preço da dose está em torno de US$ 240 (cerca de R$ 1.300). A recomendação do laboratório é aplicação semanal nos primeiros 1 ou 2 meses, seguida de manutenção com doses a cada 1 ou 2 semanas. Uma terapia continuada, portanto, pode custar milhares de dólares.
Estima-se que 300 milhões de pessoas no mundo sofram com depressão. No Brasil, seriam 10-12 milhões, 30-40% dos quais apresentam a forma resistente aos antidepressivos mais comuns.
Um estudo de custo-efetividade concluiu que a escetamina não se presta para larga utilização em saúde pública. Para tanto, o spray teria de custar cerca de 40% menos, na estimativa de Eric Ross, do Hospital McLean (afiliado à Escola Médica Harvard).
Na realidade, não se trata de um novo medicamento. A substância escetamina é um dos componentes do anestésico cetamina (quetamina), em uso há muitos anos, que contém mistura de dois isômeros (variantes espelhadas da mesma molécula). A escetamina se constitui de apenas um deles, mais efetivo.
Ambas as drogas não são consideradas substâncias psicodélicas clássicas, como LSD e psilocibina, porque não agem sobre o sistema do neurotransmissor serotonina. Sua ação se dá sobre outro composto atuante nas sinapses, o glutamato, mas seu efeito –em geral prazeroso– também envolve dissociação psíquica, confusão mental e eventuais alucinações.
A cetamina tem sido usada para recreação na cena noturna, onde se tornou conhecida como “vitamina K” (de “ketamine”, o nome em inglês). Pode também aparecer como ingrediente de ecstasy adulterado, no qual traficantes misturam ao MDMA original coisas como anfetamina, metanfetamina e cafeína. Já se verificou que o uso prolongado de cetamina pode causar dependência.
Na forma do spray da Janssen, o remédio só poderá ser ministrado em ambientes controlados, como clínicas e hospitais, sob supervisão, pois há efeitos adversos. A droga tem outros impactos físicos, além dos psíquicos, como taquicardia e hipertensão. Por ser controlada e muito mais cara que a cetamina, espera-se que a escetamina não se converta em substância de abuso.
Conhece-se há pelo menos 15 anos o efeito antidepressivo da cetamina/escetamina, tanto que a primeira já vem sendo usada por meio de injeção intravenosa em consultórios psiquiátricos (com ou sem autorização especial da Anvisa). Uma de suas vantagens é a ação rápida, com diminuição dos sintomas de depressão em até 24 horas.
Muitos médicos a prescrevem na modalidade “off-label” (sem prescrição registrada) para prevenção de tendência ao suicídio. Mas os testes clínicos do Spravato não foram capazes de comprovar estatisticamente tal eficácia, como deixa claro a bula do remédio.
Mesmo assim, a aprovação da Anvisa inclui a indicação para quem tem ideações suicidas. A justificativa é que os estudos mostraram neles também uma melhora nas outras manifestações depressivas.
O psiquiatra Carlos Cais, especialista em prevenção de suicídio que coordena o Ambulatório de Transtornos da Ansiedade no Hospital de Clínicas da Unicamp, avalia que houve imprudência na disseminação terapêutica desse psicodélico. Entre outras razões, pela fama injustificada de ser eficaz contra tendências autodestrutivas.
“É um território sem lei”, diz ele. Na sua opinião, alguns colegas não estariam sendo rigorosos na triagem de pacientes que não devem usar cetamina, como os que têm transtorno de personalidade borderline.
Cais teme que a cetamina continue a dominar o contexto clínico, por ser mais barata que a escetamina da Janssen. Também receia que a onda conservadora no Brasil termine pondo ambas a perder, fechando uma porta que a ciência mal começou a abrir.
“Qualquer passo mal dado pode pôr tudo para trás. Tem muita gente buscando pretexto. A mistura de desinformação com leviandade pode queimar tudo”, alerta. “Não mudou o paradigma da prevenção do suicídio. O que não é surpresa, porque se trata de um fenômeno complexo.”
A Janssen afirma que a escetamina nasal funciona contra depressão por modular receptores do glutamato no cérebro que ajudam a restaurar as conexões sinápticas entre neurônios de pessoas com depressão. Seria surpreendente, contudo, se uma simples molécula pudesse, sozinha, desarmar ideações suicidas.
A explicação do laboratório se restringe ao vocabulário neurobioquímico, ainda a moldura intelectual predominante entre psiquiatras. No campo da ciência psicodélica, porém, considera-se que compostos como LSD, psilocibina e ibogaína funcionam porque a neuroplasticidade —formação de novas sinapses— abriria caminho alternativos para a pessoa que sofre contornar ideias fixas e comportamentos repetitivos.
Não deve ser diferente com a escetamina. Mas é compreensível que uma empresa farmacêutica prefira dissociar seu produto das viagens alucinantes que movimentaram a contracultura, relegando-as à condição de efeitos adversos.