Psiconautas temem explosão de interesse do mercado por drogas ilícitas

 

As drogas psicodélicas –LSD, ecstasy, cogumelos “mágicos”– caíram em desgraça com a voga proibicionista dos anos 1970/80, quando conservadores reagiram em pânico diante da contracultura. Agora são os herdeiros dos hippies a temer, em face da voracidade capitalista que ameaça neutralizar seu apelo libertário.

“Herdeiros dos hippies” pode soar pejorativo para os que se dedicam ao assunto intelectualmente; melhor falar em “psiconautas”. A área de estudos ficou pelo menos duas décadas submersa, mas vive um renascimento com a proliferação de estudos clínicos sobre benefícios para a saúde mental –que já atraem a atenção de investidores.

Quatro psiconautas renascentistas do Brasil participaram de um debate sobre o tema na quinta-feira (29): a antropóloga Bia Labate, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli e os psicólogos Bruno Gomes e Fernando Beserra. Promovida pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd), a discussão ofereceu boa amostra das preocupações que afligem quem não caiu de paraquedas nesse campo.

Bia fala de um ponto de vista privilegiado, desde a Califórnia, onde lidera o Instituto Chacruna, especializado em plantas medicinais como as que entram no chá ayahuasca. Ela disse no encontro virtual que o último ano assistiu a uma explosão em torno dos psicodélicos, nos EUA, na esteira da legalização da maconha medicinal e recreativa em vários estados.

Ela apontou duas vertentes para o que chamou de “verdadeiro Eldorado”. Primeiro, o avanço de testes clínicos com MDMA (ecstasy) para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e com a psilocibina dos cogumelos Psilocybe para depressão. Ambas as substâncias estão em via acelerada para obter autorização da FDA, agência americana de fármacos, o que a antropóloga previu para 2022 ou 2023.

A outra vertente se manifestou na descriminalização da psilocibina em quatro cidades americanas vanguardistas (Denver, Oakland, Santa Cruz e Ann Arbor). O movimento se encorpa agora com plebiscitos que vão na mesma direção, na próxima terça-feira (3), em Oregon e Washington DC (além de cinco outros estados que podem somar-se aos 30 em que o uso medicinal ou recreativo da maconha se tornou legal).

Multiplicam-se as conferências virtuais, documentários, manifestações de celebridades, lançamentos de empresas, cursos de capacitação, organizações não governamentais, assinalou Bia.

“Uma espiral sufocante. Os pesquisadores vão também precisar fazer tratamento para ansiedade”, brincou. E emendou, a sério: “É outro mundo, não o dos hippies. O cara que fez fortuna com cânabis medicinal agora vai investir em psilocibina para depressão”.

Dispensário de maconha em Denver, onde o uso recreativo é legalizado desde 2014 (Danilo Verpa/Folhapress)

Em setembro a empresa londrina Compass Pathways, fundada há apenas quatro anos, abriu oferta de capital na bolsa de Nova York e viu seu valor de mercado saltar US$ 544 milhões. Dona de controvertida patente para uma versão sintética cristalizada da psilocibina, COMP360, lidera um dos estudos para seu uso como adjuvante de psicoterapia para depressão.

Tófoli, da Unicamp, concordou com a ideia de uma “invasão do capitalismo predatório”, segundo sua descrição, mas alertou que ainda não há comprovação completa do efeito terapêutico dos psicodélicos. Falta cumprir a etapa científica dos ensaios clínicos de fase 3 e vencer os obstáculos regulatórios para, aí sim, tentar derrubar os preconceitos que ainda sobrevivem na classe médica.

O psiquiatra antecipa que empresários possam ter dificuldade com o componente alterador da consciência dos psicodélicos, fonte do revide reacionário de décadas atrás, e que na sua opinião faz parte do pacote terapêutico. Nos EUA e no Brasil, a atmosfera não ajuda: “É romântico pensar que substâncias proscritas possam curar pessoas neste mundo doente.”

Tome-se o caso da microdosagem, que ganhou fama não como cura, mas capacitação, melhoramento. No Vale do Silício ou em Wall Street, recorre-se a doses subclínicas periódicas de psilocibina ou LSD (ou seja, incapazes de produzir efeito psicodélico) em busca de maior produtividade e criatividade. Fazer dinheiro, não viagens.

O psicólogo Fernando Beserra, um dos fundadores da Associação Psicodélica do Brasil, há cinco anos, reivindicou no debate que se retome a tradição política dessas substâncias, que corre o risco de diluir-se no seu enquadramento médico e comercial. “Será que a microdosagem tem de ser só produtivista, ou há um potencial transformador, [na linha] da contracultura?”

Beserra se preocupa com o futuro acesso a essas drogas, se e quando ficar provado seu sucesso clínico, diante das patentes e da investida empresarial. “Como vai chegar no Terceiro Mundo, no Brasil, ainda mais sob Bolsonaro? O debate político é para hoje, para agora, para poder sonhar um dia com outros cenários, outros caminhos.”

Nessa altura da discussão virtual, transcorrida quase uma hora, havia 84 pessoas assistindo. Uma delas escreveu na área de comentários: #PsicodélicosNoSUS.

O psicólogo Bruno Gomes, que mediava o debate, falou de outra explosão, a das culturas da ayahuasca no Brasil, que não se encontra mais restrita às religiões organizadas como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Ocorreu uma popularização, uma capilarização, disse ele, com vários grupos a se multiplicar, religiosos ou não.

Mencionou também uma subcultura da ibogaína, composto psicodélico extraído de uma planta africana (Tabernanthe iboga). Apesar do risco de disfunção cardíaca, tem sido usada como terapia alternativa para dependência química. “Um mercado está se formando.”

Iniciativa 81
Tabernanthe iboga, planta de origem africana de cuja raiz se extrai a ibogaína, uma das drogas que poderão ser descriminalizadas em Washington, DC (Marco Schmidt/Creative Commons)

Nem sob efeito de psicodélicos é fácil imaginar que um dia eles cheguem ao SUS, num momento em que até seu exemplar Programa Nacional de Imunização enfrenta a ameaça da polarização ideológica –bem no meio de uma pandemia, e por causa de vacinas que ainda nem existem. Mas os cisnes negros existem, como prova o que acontece com a MDMA (base do ecstasy) e o TEPT nos Estados Unidos.

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês) está perto de conquistar a regulamentação do emprego da MDMA em psicoterapia para estresse pós-traumático, e conta para isso com a simpatia de militares e policiais (veja abaixo vídeo com depoimento do veterano Nick Blackston sobre sua recuperação, em inglês). Eles formam provavelmente o maior contingente dos 11,6 milhões de americanos que padecem desse transtorno.

A Maps publicou em 14 de outubro na revista científica PLoS One artigo animador sobre a economia que essa terapia para veteranos poderia trazer, na comparação com as opções terapêuticas disponíveis hoje (ineficazes para cerca de metade dos portadores). Só com hospitalizações por TEPT os EUA despendem a cada ano estimados US$ 4,4 bilhões.

O tratamento de um americano com o transtorno pode chegar a US$ 20 mil anuais. Recorrendo à psicoterapia com MDMA, gastam-se US$ 7.500 (90% disso para remunerar os terapeutas).

Tomando por base a melhora obtida por 74 participantes em seis estudos clínicos controlados randomizados de fase 2 realizados nos últimos anos, a Maps calculou que cada grupo de mil pacientes assim tratados permitiria a economia de US$ 103 milhões –em valores de hoje, já descontados– ao longo de 30 anos.

Essa linguagem os capitalistas dos planos de saúde entenderiam, assim como, talvez, os bons administradores remanescentes no Sistema Único de Saúde. E não faltam portadores de estresse pós-traumático no Brasil, com suas taxas vergonhosas de homicídios e letalidade policial, os cadáveres da fracassada guerra às drogas; se for a mesma proporção dos EUA, 3,5% da população, seriam mais de 7 milhões de brasileiros.

Louco, mesmo, talvez se mostre NÃO pensar em #PsicodélicosNoSUS.