Quando o Brasil vai criar seu centro de pesquisa psicodélica?
Universidades e investidores apostam em reviravolta na saúde mental, mas país corre o risco de se atrasar
É uma questão de tempo: um dia a USP –ou outra universidade brasileira de primeira linha– vai abrir uma unidade só para estudar benefícios à saúde mental de substâncias como ayahuasca, MDMA (ecstasy), psilocibina (cogumelos “mágicos”), ibogaína e até LSD. Anote aí, em especial se for investidor.
São duas opções. Uma é hesitar, render-se ao conservadoramente correto que mantém proibidas essas drogas e chegar tarde ao campo que promete uma reviravolta no tratamento de transtornos de afeto, como depressão. A outra é seguir o exemplo da Universidade Johns Hopkins (JHU, Estados Unidos), do Imperial College (IC, Reino Unido) e da Universidade de Nova York (NYU) para se tornar pioneiro na área.
Não é coisa de hippie, mas de gente visionária. Na NYU, a mais nova do clube, aterrissaram por ora US$ 5 milhões (R$ 28 milhões), doação anunciada em 5 de outubro pela startup MindMed para que o Centro Médico Langone da universidade comece a treinar os psiquiatras e pesquisadores que comporão um futuro centro psicodélico.
O IC, de Londres, obteve £ 3 milhões (R$ 22 milhões) de cinco patrocinadores e criou em abril de 2019 o Centro para Pesquisa Psicodélica, primeiro de todos. Cinco meses depois foi a vez da JHU abrir um Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência, com dotação mais alentada: US$ 17 milhões (R$ 94 milhões).
A razão para filantropos desembolsarem dezenas de milhões de dólares em drogas hoje ilícitas vem da confiança na ciência. Vale dizer, o oposto do que se pratica no palácio do Planalto apinhado de militares.
A MDMA, ou ecstasy, está na reta final (testes clínicos de fase 3) para obter aprovação da FDA, agência de fármacos dos EUA, como adjuvante de psicoterapia para tratar estresse pós-traumático em veteranos de suas muitas guerras. Calcula-se que mais de 850 mil ex-combatentes americanos sofram com o transtorno.
A psilocibina passa por ensaios clínicos de fase 2 nos Estados Unidos e no Reino Unido para tratar depressão, que aflige 300 milhões de pessoas no mundo. Seria a alternativa salvadora para um terço de portadores do transtorno que não conseguem melhorar com antidepressivos convencionais, os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, como escitalopram (Lexapro).
A DMT e as harminas da ayahuasca já se mostraram promissoras contra a depressão em estudos pioneiros da USP de Ribeirão Preto e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O Instituto de Psiquiatria da USP prepara um teste clínico com ibogaína para dependência química, transtorno cujos tratamentos têm taxas de sucesso ridiculamente baixas. Poucos sabem, mas a mesma unidade uspiana estudava o LSD na década de 1960, quando o famigerado era legal e vendido pelo laboratório suíço Sandoz sob a marca Delysid.
O benefício esperado dos psicodélicos para a vida de tanta gente infeliz e atormentada já seria razão bastante, em condições normais, para fomentar a pesquisa com eles. Em tempo de pandemia e das sequelas que o coronavírus impõe à saúde mental, torna-se uma questão ética (para não falar do enorme mercado que se abrirá para terapias e medicamentos).
Não conheço dados sobre o aumento de transtornos mentais no Brasil flagelado pela Covid-19. Nos EUA, os Centros de Controle de Doenças (CDC) publicaram em 14 de agosto relatório estimando que 31% dos americanos experimentaram sintomas de ansiedade e depressão e 26%, de estresse traumático; 13% iniciaram ou aumentaram uso de substâncias psicoativas; 11% tiveram ideações suicidas.
O Brasil de Jair Bolsonaro não fica atrás dos EUA de Donald Trump no fracasso ao lidar com o coronavírus, pois colheu mais mortos que eles em proporção populacional. Tampouco no desastre econômico e social que o Planalto prometera evitar com o estímulo ao término do isolamento social. E por aqui há o agravante da pobreza, que voltará em galope sinistro quando o auxílio emergencial acabar.
O país está para enfrentar outra epidemia, de tristeza e sofrimento. Tem, no entanto, tradição e massa crítica para se lançar de cabeça na pesquisa da promessa psicodélica, assim como gente com dinheiro para investir e cada vez menos opções de renda financeira fácil.
Verdade que o clima político e cultural não se mostra propício para lançar um centro de pesquisa psicodélica ou uma startup psiconáutica. Se os iconoclastas da academia e os empresários mais ousados se deixarem deter pelos trogloditas de plantão, contudo, jamais sairemos da situação deprimente em que o país afunda.
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Com esta primeira postagem no blog Virada Psicodélica pretendi demarcar, já de partida, o que motiva seu lançamento: a convicção intelectual e vivida de que drogas psicoativas como DMT, MDMA e LSD têm contribuição a dar para a saúde mental, diminuindo o sofrimento de centenas de milhões de pessoas, além de oferecer uma oportunidade ímpar para desenvolvimento científico e tecnológico, quiçá econômico, no Brasil.
Esse é o tema de meu livro “Psiconautas”, que se encontra no prelo e tem lançamento previsto para o primeiro semestre de 2021. Sou provavelmente o autor mais improvável para o livro e o blog: 63 anos, avô de três crianças, jornalista ultracareta de ciência e ambiente (se bem que sobrevivente de uma adolescência nos anos 1970, auge da ditadura militar, da contracultura e do tropicalismo, portanto muito próximo dos “tóxicos”, como se dizia na época).
Comecei a escrever sobre o tema em 2017, ano em que completei 60 anos, subi ao pico da Neblina (2.995m) caminhando 72 km em 8 dias e compareci à conferência Psychedelic Science em Oakland, Califórnia –todas as três experiências que convidaram a repensar muita coisa.
Não é todo ano que se descobre um novo continente –de descobertas científicas, de reportagens por fazer, de pessoas com coragem para remar contra a corrente e reabilitar para a medicina remédios usados há milênios pela humanidade e só há meio século proibidas, a pretexto de uma guerra às drogas que fracassa por toda parte, como mostrou na Folha a série de reportagens Estado Alterado.
Há muito por explorar.